sábado, dezembro 29, 2007

Escrever

Escrever sobre nós e sobre aquilo que sentimos não guarda nada em si de extraordinário. Qualquer um é capaz de escrever sobre o que tem aflorado na pele.

Escrever sobre o resto, tudo aquilo que existe além de nós, é bem mais difícil. Criar outros Eus (qualquer personagem criada por nós é sempre um alter ego) implica ao mesmo tempo uma catábase e uma anábase em nós mesmos, porque a escrita, como qualquer forma de produção artística, é o melhor exemplo do acto fenomenológico. Nada do que existe para nós pode ser exterior a nós mesmos, o que não impede que muitas dessas coisas nos sejam estranhas. A viagem à percepção dessas coisas que temos interiorizadas mas em campo inexplorado representa em simultâneo a dor profunda de arrancar algo de nós e a alegria maior de nos conhecermos mais profundamente.

Qualquer personagem nasce das dores do seu criador, porquanto qualquer personagem é uma parte desse mesmo criador a que foi dada forma e nome concreto. A partir do momento que algo tem nome é real e existe! A Palavra define tudo.

Quem escreve, escreve assim para ser Deus não de si mesmo, mas em si mesmo.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Duas janelas ou Espaço de se ver o mar

Ambas chegam até onde o mar começa
E na maioria das vezes vão até onde o mar acaba.

Por onde- as palavras

Para Rosa de Medeiros Carreiro em certa noite

Pensei em dizê-las,
Um sorriso, em sussurro,
Correndo em riacho, torrentes,
por onde- as palavras...

domingo, dezembro 16, 2007

Talvez ou Viagem Breve em torno das ideias

Servília em viagem. O corpo na liteira, largado como as peles de leopardo largadas sobre o corpo frio. Busca do calor. Lá fora o mundo. Por uma nesga, uma cortina. Diáfano.

Gustavo e o excesso. A busca de algo entranhado. O páteo certo. Talvez o mar do Meco e as medidas exactas de um páteo branco. Como que algas nos seus pés. É uma dança em torno de si mesmo. Haverá tempos? Quantos aoristos? Onde se encontra Gustavo na verdade? A casa, a árvore, o mar. Por aí andará Gustavo.

Lucília quase por nascer. Demóstenes segurando-lhe a mão. Amedrontad(). Mais eu do que ela. Não há paisagens que lhe descreva. Talvez as mãos, o cabelo, por certo o corpo quebrado em contorno na cintura. Lucília, como um prazer desenrolado na língua. Para quando?

Depois Tristão Vaz da Cunha e Gabriel Tavares, ainda longe, mais que muito incertos, aquém das ideias, mas já além de mim mesmo. Como que existem sem mesmo eu conseguir que existam. Quem dirá deles alguma coisa? Quem poderá fazê-lo?

Começo pelo corpo. É sempre preciso dar-lhes um corpo. Mais tarde talvez a vida.

Poesia d'Inverno

Tempo d'Inverno,

Sem palavras, sem sol, até mesmo sem sombras.

É como tactear às cegas num quarto de luz.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

O Início de outra história ou Tempo vigilante das saudades

Para a Sofia Palma Baracho, que me fez lembrar os cheiros. Para as minhas avós e todas as tardes em que tudo começou assim.

- Não mexa nisso Margarida! Já sabe que não gosto que mexa nisso. Era da minha mãe.
(Tem o ar calmo. Lá fora pela janela o dia é mais ou menos idêntico. As mãos são já máquinas automáticas de fazer tempo cada vez que segura as agulhas.)

-Tu tens mãe, avó!?
(O ar breve e marcado do espanto natural.)

-Claro que sim Margarida. A mãe da avó é a avó Luísa.

Fala por sorrisos. Margarida encontra um lugar rápido nas pernas cansadas da avó. As mãos mansas que a acolhem já largaram as agulhas. Que se diria de Penélope nesta cena?

quarta-feira, novembro 28, 2007

Elisa

For the charming young lady Reynolds, who has inspired these words.

Elisa; que fascínio! Vê-la, pudesse eu vê-la como ontem, como antes, como há dias! Branca, bela e breve, longa, lisa e leve. Quando ela passa, passa e ao passar traz encanto.

Admirá-la é ganhar tempo. Enquanto as suas mãos pousam ao seu colo Elisa é também os seus olhos. Que palavras para os olhos de Elisa? Que sonho quando nos olha com seus olhos sonhadores. A gente mergulha e s'entorna em seus recatados pudores.

De Elisa dir-se-á que é bela. Que ela é bela é nela um estado de existência. Elisa. Que nome, que insistência. Elisa!

Elisa em brevidade, Elisa em sonho, em cratera, em porvir.

Elisa meu sonho manso, deleite de meu descanso, Elisa do meu devir.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Palavras de um amor que já não é mais ou Pequeno episódio trágico dos quotidianos

De ti tenho nojo e abstracção. Que há mais entre nós agora que viciámos as palavras?

Nunca mais te poderei dizer nada de belo e não voltará a haver horas entre nós agora que encheste o silêncio de vazios.

E ainda assim insistimos os dois neste mundo de coisas não-partilhadas, nesta cama descoberta e desfeita onde agora só dormem dois corpos.

Houve um tempo em que soubemos ser um. Mas o tempo do mito foi há muito tempo.

Fomos comidos pelos dias e não temos senão as sobras parcas de um quotidiano exausto.

Já não há mais nada em mim que te dê.

Já não há nada de ti que eu espere na lonjura dos dias.

Não esperes o meu corpo esta noite deitado ao lado do teu.

domingo, novembro 18, 2007

O milagre da existência das coisas ou Espanto em contínuo que me corre as palavras

Eis que o dia ligeiro se acomoda.

Sob os raios da primeira luz
As coisas existem plenas de espanto
Em ser elas mesmas.

As tuas mãos, um mistério

Sei sempre onde encontrar
Os caminhos das tuas mãos.

São segredos à tarde.

Longos, brandos, mansos,
Chegam cedo.

Ficam.

Restam.

Lá no caminho das tuas mãos
Que ainda joga calmamente
O jogo das minhas coisas
No demorar certo de todas as horas.

Palavras que perco

Onde, por onde,

Mais longe, cada vez mais...


Palavras minhas que correm soltas

Em espaços que ficam

Para além dos dedos das minhas mãos.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Segredos que se perdem nas palavras do silêncio

Porque me pedes algo de maior

Dir-te-ei o silêncio

De cada coisa

Que fala sempre nas horas perdidas

Para que saibas do espanto e da verdade

Em tudo o que existe.

Palavras brancas ou Poemas em branco

Espanto

Quando a palavra ganha corpo

Na exactidão da página branca.

Como é certa

A linha traçada

E ainda assim eu resto aquém

De tudo aquilo que guardo para dizer.

Esperança clássica

E agora, ó Parcas, que vos dizer de mim?

Tarde é a hora dos deuses, jovem a hora dos Homens.

Que sabemos nós do sonho de Adriano ou do canto perdido da Sibila?

Declinação em torno do outro ou Ligeiro cansaço ao estudo do Grego

Podia pois discorrer sobre todas as declinações do seu nome.

Como se numa brincadeira descobrisse para si o jogo da sua essência.

Passeio pelas salas de uma casa que mal existe

O silêncio da casa violenta-me os sentidos. De lento, exploro. Em cada quarto explode uma confissão.

Em baixo nas salas há o cheiro novo da tinta. Inspiro. Alguém apaga passados.

Cansado, busca as camas em cada quarto. Quem dera pudesse o meu corpo dormir em todas elas numa mesma noite.

Um retrato na mesa ligeira sorri. Quem poderá dizer que estórias ele guarda? Somos todos felizes nos retratos. Quem não sorri para um retrato?

A casa dança uma dança interminável de escadas. Vão dar a todos os sítios possíveis, mas quase sempre onde não queremos ir. Não há portas a não ser as que levam para outros quartos.

Enfado. Um tédio brutal e de morte invade-me. Acomoda-se. Jogado sobre uma poltrona velha. Que há para entender nesta casa?

Não há cor, não há brisa, não há linhas. Desespero, angústia e tanto cheiro a coisas perdidas.

É um banho de suor que me acorda.

Divagações sobre um Inverno próximo

Pudera eu ser como tu. Atenta como antena escutas o poema indizível até que se diga por completo ao teu ouvido.

O pateo é branco como uma manhã de Inverno e certo como a névoa e o frio. Perdidas no suor da tarde as aranhas desenham calmamente o seu labor.

Há uma delicadeza de orégãos pelo ar. Cheira a tempo novo.

A tua mão poisa de súbito sobre o espanto das coisas. Eis que acordam!


Há muito tempo foi o tempo do mito.

terça-feira, novembro 06, 2007

Palavras para um velho amigo

Ao meu Pedro.

Velho amigo,

Os fins de tarde já são longos agora. A noite chega mais cedo. Talvez devesse dizer como fomos felizes antes. Nos tempos em que era de dia quando era dia. Há quem diga que sim...

Preocupa-te com outras coisas. Não te assustes com elas. Não reconheço qualquer ausência do Verde nestes dias mais escuros.

A horas certas chamo e continuas a vir. Sinto mais saudades do teu abraço do que antes. Talvez seja por isso que hoje ele me sabe melhor.

Continuas quente. Continuas no meu quotidiano.

Tenho orgulho em ti. Caminhos que traces. Metas onde chegas. Ensinaste-me o esforço de todos os dias.

Ensinaste-me os tempos do silêncio e as palavras que o silêncio mede.

São dias novos, velho amigo.

Não há nada de bom em continuar a viver bons tempos, mas antigos. Entusiasmante é atravessar contigo, por onde quer que andes, todos os tempos que nos cheguem.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Carta aberta a um amigo

-Tenho pensado muito no que me disseste. Custa-me tanto tudo. Pensei que não ia ser assim, esperei que não fosse. Mas custa-me.

-Estás magoado comigo, é isso?

-Não contigo, com aquilo que tu disseste.

-Isso é exactamente a mesma coisa. Nós somos aquilo que dizemos. Existimos na medida das nossas palavras. Podemos ficar aquém do que dizemos, mas nunca além. São as palavras que nos moldam, que nos fazem. O que eu te disse é o que eu sou.

-Mas as tuas opiniões sobre mim, sobre o que eu sou...

-As minhas opiniões não são sobre ti. Não foi isso que me pediste, não foi isso que eu te dei.

-Mas é igual ao que disseste. São sobre algo que eu sou, algo que em tantas coisas me define. São contra o que eu sou.

-São contra uma parte de ti. Uma parte importante, é verdade. E não é que seja fácil transpor o que eu acho sobre isto e passá-lo para ti. É como se eu preferisse que tu existisses à parte disso. Mas não pode ser assim.
Tens razão. É contra uma parte de ti. Que eu não entendo, nem aceito.
Não é fácil. É muito difícil.
Mas olha para mim. Eu não posso existir além de todos estes anos. Eu sou aquilo que fiz de mim mesmo. Mas aquilo que fiz de mim mesmo não deixa de ser influenciado pelos sítios por onde andei até agora. E foram tantos anos...
Tu indignas-te e julgas-me porque eu não aceito. E eu? Eu devo aceitar que tu não me aceites? Porque tu não me aceitas. Nem me entendes. Ao menos eu procurei entender-te.
Mas tu, tu chegaste cheio de certezas das tuas filosofias democráticas. Tu vieste com os teus chavões e os teus rótulos. Foste tu o primeiro a acusar. Quem foi mais justo de nós os dois?
Podia dizer-te que gostava de não pensar assim. Não é verdade. Gostava de não ter que pensar nisto. Gostava que não fosses assim.
Mas és, e eu gosto de ti. Não é fácil. É muito difícil. Mas eu estou a tentar. Estou a tentar mesmo. Só que resulta melhor se tu tentares comigo.
Não podemos existir além das nossas palavras, mas podemos existir além de todas as nossas partes. Apenas as palavras são o nosso todo.

E ele ficou ali. Quedo, imóvel. Quieto e à escuta. Para ouvir a chegada dos dias em que chegassem as palavras.

Dizer de palavras

Para a Luísa Vaz Ferreira, amiga de pouco tempo, mas de tantas e tantas coisas com o carinho profundo das palavras.

Leves, longas, lisas,

Assim as palavras.


Como a mão experiente

Como os frutos que colhe

Azuis como o mar

Brancas como o páteo

Breves como o Verde.


Enlaçam estranhos desenhos

Mistérios antigos.

Têm cheiro de orégãos

E odor forte de coisas que voam.


Uma viagem pelo que foi.

Velhos barcos, novas velas.

Escuta onde quebra a onda, atenta.


De baixo de água abre os olhos.

É o espanto das coisas enquanto existem.


Assim as palavras,

Leves, longas, lisas.

domingo, novembro 04, 2007

O rapaz de asas marcadas pelo fogo (L'énfant aux ailes brûlées)

O texto que aqui apresentamos foi descaradamente roubado a um amigo. A tradução que o segue surgiu do nosso fascínio por esse mesmo texto.

"L'enfant est resté là-bas. Perdu, il croise les chemins qui mènent aux sommets des volcans.
L'enfant aux ailes brûlées, essaie d'entendre le vent. Les voix des temps oubliés, des murmures qu'il ne comprend plus.
Il pleure l'Atlantique. Du feu dans son sang, du noir dans son coeur. Le corps par terre, il désire le ciel. Noyé dans sa mer, il rêve l'infini.

Je sais bien que tu me cherches. Moi aussi, je voudrais te retrouver."


O rapaz ali restou. Perdido, ele busca os caminhos que apontam ao cimo dos vulcões. O rapaz de asas marcadas pelo fogo procura compreender o vento. As vozes de tempos esquecidos, murmúrios que não entende mais.
Ele chora o Atlântico. O fogo no seu sangue, o negro no seu coração. Com o corpo por terra, ele anseia o céu. Mergulhado no seu mar, ele sonha o infinito.

Sei bem que me procuras. Pudesse, também eu, encontrar-te.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Colheita de palavras ou O esforço da escrita

Para a Susana Correia, que pediu as minhas palavras.

Digo-te

Um espaço onde se construam palavras.

Um olhar deitado ao quotidiano.


Atento, quase imóvel,

O outro, o breve,

A essência.


E assim encontro um espaço

Quase terrível,

Quase de medo

Em cada página branca onde escrevo.

A tela sobre o Tejo

Palavras que não são de escrever,

Cidade em plácido anonimato,

As pessoas que passam pelas ruas,

O sangue que flui durante as horas.


Lisboa sem retratos

Retratada de gente.

Entre os passos suas histórias,

Segredos que digam um dia.


Enquanto,

Respiro, reflicto.

A cidade, o rio, talvez o fado.

Coisas que conte depois de amanhã.


Agora

Fecho os olhos,

Descanso.

Deixo pousar

De manso

A tela sobre o Tejo.

quinta-feira, novembro 01, 2007

Carta ao rapaz atlante

Ao Ivan, em fraternas insularidades.

Rapaz atlante, era preciso que tivesse palavras para te dar. Que podes ter tu de mim que eu te dê?

Tu sabes da bruma e do cheiro que ela encerra, conheces as palavras guardadas no vento do oceano e vês para onde o açor vira as suas asas.

Eu não tenho mais tempo senão em que te diga aranha, orégão, odor. Tempo em que te fale da tarde e em que descreva as medidas exactas de um pateo grego.

Que há das máscaras, dos ditos, dos coros, que te diga em cima do palco de Dioniso essencialmente nu? Estou como quem não pode estar, na frieza de uma estátua grega de Praxíteles, certo como coluna no frontão do Templo.

Eu que sou do Branco e dórico no corpo, que há em mim que se assemelhe a teu passo invulgar de divindade celta? Não penso que haja palavras que nos possamos dizer.

A vida não é uma delicadeza que se lê numa elegância de fim de tarde.

Que posso eu que sou mar dar-te a ti que és também oceano? Atento como a onda quando quebra, escuta.

Et pourtant, est-ce que je peux aussi pleurer l'Atlantique? Je veux tellement rever l'infini.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Jantar do conde e do general

O criado fechou a porta. Entram minutos que se vão arrastar até determinadas infinitudes antes que o criado a volte a abrir. É um ritual longo, mas sobretudo arrastado pelo tempo que se prepara. Não há música e quem fosse atento diria não haver respiração. Apenas o toque constante e confuso do relógio sobre o mármore da madeira no tic-taquear infinito do tempo que guarda. São oito horas exactas e é de noite. Talvez seja Novembro. Se for, em meses será Primavera e quando os ponteiros chegarem ali será de dia. Mas serão sempre oito horas. Sem estações, sem manhãs ou noites e quase sempre sem tempo.

O general não é um homem velho. Alguma coisa acabou nele há muito tempo, ainda assim. Dir-se-ia dele o resultado dos estragos que os anos trazem, mais do que provocam. Foi um homem duro que se deixou vencer pelas durezas da vida. Vive numa lucidez que só em si é lúcida e o grande espelho por cima da lareira devolve-lhe uma imagem que só ele vê. Outros veriam um homem alto e de meia-idade. Ele verá coisas que não podemos saber. Não vemos com os seus olhos.

O conde já lá está, sentado para as janelas, perdido numa poltrona qualquer da sala. Nunca é a mesma. Há-de se sentar em todas para que o general entenda que não se pode sentar em nenhuma. Existe cada vez mais elegante, cada vez mais artificial na esperança de alguma vez existir para ele. Os olhos do general estarão sempre fixados no espelho sobre a lareira. A cada ruga uma razão, a cada traço um motivo, a cada gesto a certeza de que nada mudou. Ainda que o conde use um magnífico colete em seda selvagem pouco lhe importa. É um esforço que não há-de fazer. Um esforço que também há de ter retorno. Quantas vezes, no prolongar dum ritual vazio de sentido, tentou o conde encontrar o outro reflexo no reflexo do general?

Sentam-se. A mesa em toda a elegância da etiqueta gela o que já de si é menos que morno. Nada para o aproximar. Tudo para o espantar. Cada espaço ocupado no desejo de um olhar que se desprenda do espelho. Mas porque há-de ele olhar para outro lado que não para o espelho? Que há dele nesta sala senão o seu próprio retrato inventado na devolução do reflexo? O conde nunca olha para o espelho. Não para aquele, ou não para aquele como se fosse aquele. São tantos os seus espelhos nos seus corredores da sua casa que repetem a sua imagem cada dia mais magnífica. Um homem que veste um colete bordeaux de seda selvagem há-de ser realmente esplêndido. Que lhe interessa o reflexo? Que interesse pode ter para o general a extravagância palerma dum colete bordeaux?

A sala é ampla e branca em seus contornos. A mesa fica para lá da porta e para cá das duas poltronas que enfrentam a lareira, as janelas, o jardim. Mas as cortinas foram corridas pelo criado quando o conde se levantou. O criado já serve há muito tempo. Frente a frente o conde e o general trocam expressões delicadas. Um há-de mostrar ao outro que aquele é o seu espaço. O outro nem sequer se lembrará de pensar nisso durante todo o jantar. O olhar reprovador do general recai sobre o prato quase cheio do conde, mas mais sobre os talheres cruzados. Será que percebe que o conde lhe devolve um olhar de raiva? (Será que ambos sabem que se destroem no terror das coisas breves que se calam?)

Que criança parva é esta que brinca às bonecas neste palácio de muitas salas que a sorte mais que a morte da mãe lhe deixou? Que homem frio é este que nada sabe dos outros, ou dele ainda que fosse?

Apenas dele, nem que fosse apenas dele. Uma tarde. Que bom seria Abril. O jardim. Uma mesa lá fora. O gosto bucólico das conversas banais. Depois um abraço, um recanto. Algo onde se esconder. Ele que o protegesse.

No vai-e-vem do garfo há-de pensar que criança pequena que não soube crescer.

Não há lugar para coisas idealizadas. Não há lugar para bucolismos. Não há espaço para abraços. Há só o ar pesado e sufocante da sala. O barulho ensurdecedor do relógio. O arrastar mais que lento do tempo. A dor que os dois pagam para estar aqui. Frente a frente- o conde e o general, no braço de ferro das emoções. Que não se chegue ao outro nunca, que não se diga nunca nada. Que nesta sala não haja lugar para fraquezas.

(E se ainda assim ele visse alguma coisa no espelho. E se ainda assim ele reparasse no colete bordeaux.)

O relógio já bateu horas. O tictaquear dos tempos é mais lento, mais calmo, mas constante. Já quase se pode respirar. O conde levanta-se, o general também. Olham-se, estão frente a frente- o conde e o general. É a hora das palavras:
-Então até à próxima quarta.
-Até à próxima quarta, pai.

sábado, outubro 06, 2007

Embalo das coisas ou Variação às suas exortações

Em longas linhas leves, mas tensas
Tento
Encontrar o acordo secreto das coisas.

Acordo e é mar.
Enquanto,
Tudo se encanta de estar em seu canto.
Encantamento.
Tormento sábio, mas manso
De tudo o que existe embalado
Em seu vivo descanso.

Segredo de Francisca

De repente falou:

-Francisca.

E o sabor da romã invadiu-lhe
De súbito a boca.

Seus olhos rasos
De novo em mar.
Seu mar de corpo
De novo no espanto das coisas
Que nascem da terra.

Sua terra nascida
De um seu próprio nome
Como se ao dizê-lo
Num mesmo jogo
Lhe roubassem e devolvessem
Num mesmo instante
A magia primeira da sua palavra.

sexta-feira, outubro 05, 2007

If you love somebody set them free ou Despedida cantada em agonizando

Ao Pedro.

Pedaço distante,

Instante exacto,

Tempo constante,

Em que te vais,

Em que me perco,

Em que te alongas,

Em que m'esgoto.


Além de mim,

Além de ti,

P'r'àlém de nós,

Depois de algo,

Palavras que não diga mais.


Certezas outras,

Novas manhãs,

Velhas dúvidas,

Coisas que restam-

If you love somebody set them free.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Retrato de rapaz em algumas variações (Revisited)

Guardo uma imagem em mim:

Uma janela (alta, grande e de vidro); um jardim (que é como se a vida acontecesse além de tudo isto); ele.

Que ele exista não é mais que uma quase certeza. A banalidade do que veste torná-lo-ia real, não fosse a abstracção com que se coloca exactamente no meio de tudo.

Ele está em todo o lado (por todo o lado) sem que possa existir sequer aquém de si mesmo. Que o corpo esteja largado a uma canto (contra a janela, contra o jardim) não é mais que um pormenor. É estruturalmente clássico sem que deixe de ser desejosamente latino. É o seu corpo que o diz além do terceiro botão aberto da camisa.

Anseio mais pela sua imagem do que ambiciono o seu corpo. O mármore das estátuas é sagrado demais para que se lhe toque e o fogo dos deuses trar-lhe-ia um calor humano demais para que não se perdesse. Ele deve existir acima de tudo mesmo que para isso não deva existir.

É sumamente belo. É sumamente arrogante. É sumamente divino. (e todas estas coisas existem em consequência umas das outras)

Se vive nem quero saber. De pouco me vale aquilo que nele há de humano.

A sua imagem. Apenas a sua imagem. Continuadamente a sua imagem...

A existência dum corpo ou A probabilidade da inexistência

Tem o corpo esgarço partido contra uma coluna. Há copos à sua volta. O vidro faz barulho de encontro ao vidro. É vida que existe.

Tem olhos com que diga coisas. Não as diz. É possível que as guarde. Aguarda o tempo. As pessoas existem continuamente em seu redor. Encantamento.

Resta parado. Os outros passam. Vivem, ele observa. Talvez exista nos outros, para além de si. Não existe, não pode existir!

O seu corpo esgarço continua partido contra a coluna da sala.

Breve estória de sinhàzinha

S'engravidou-se sinhàzinha de tempo
Por não ter mais tempo por onde andar

S'engravidou-se sinhàzinha de coisas
Por onde houvesse mistérios para dizer

S'engravidou-se sinhàzinha de vida
E partiu na barca funda
Pelo anseio profundo de partir

quinta-feira, setembro 27, 2007

Coisas que a vida traz ou Pequeno episódio tragi-cómico no autocarro

Uma mulher de preto no autocarro.

"-Morreu-lhe alguém?

-O meu marido em Agosto!

-Ai, que as pessoas nascem, morrem e vão a enterrar e eu não sei nada.

-Também, sai de casa de madrugada só volta à noite..."

Será que se acordar mais tarde posso ver morrer o marido das outras?

A varanda e o seu palácio

Au jeune comte du Petit-palais, avec toute m'amitié.

-Este é o Pedro, avó.
-Muito prazer. Como está?
Há-de durar mais um tempo o constrangimento. Ele não é trémulo, mas treme. A Condessa resta inalterada. Está estática. Permanece. Ele também, mas bem gostava de não o fazer. A Condessa falhou com a sua parte do ensaio. Não houve nenhuma das suas mãos que se tenha levantado. A direita sobre a esquerda. Ambas sobre o colo. Há-de durar mais um tempo o constrangimento até que perceba que o ensaio acabou. Ainda não é hoje que ele lhe alcançará a mão.

Estão frente a frente. Francisco mais ao lado. Manso, o tio Afonso trinca o seu cachimbo maciço, esparramado na poltrona. A tia está lá por cima a atarantar a criada (a que restou) com o final das mudanças. Queixa-se do corpo fraco e sobrecarrega a criada com as dores do corpo, mas mais com as dores da alma. É possível que António esteja no quarto. Estão frente a frente, ele e a Condessa. A Condessa é mais imponente do que bonita, como convém. É imensa. A Condessa está por toda a casa, desde as lojas que cedo não serão suas às escadas e aos corredores por onde corre o sangue dos dias do seu palácio. Ele está apenas onde está. É mais alto do que ela, mas agora é quase corpuscular. Nessa noite a Condessa só lhe voltará a dedicar as palavras de despedida. Não haverá mais palavras por agora. Isso basta para que ele saiba da sua inexistência nesta casa.

-Nós vamos para o quarto.
Finalmente acabou. O corpo respira de alívio. A Condessa deu-lhe as costas. Eles já vão na porta. A Condessa murmurou alguma coisa em francês ao tio Afonso. Ele não consegue perceber o que foi, mais pela distância que pelo seu mau francês. Não há-de saber como a Condessa confessava ao filho que lhe tinha achado bom ar. Há pouco de belo na Condessa (ela não o ignora). Tão pouco teve um marido bonito e fez filhos em vez de beldades. A beleza não é senão um prazer rechonchudo de fim de tarde para as burguesinhas do Príncipe Real (que agora habitam em Telheiras). Francisco, o neto, é mais bonito do que Pedro. Mas Pedro tem bom ar. Isso evita-o à vulgaridade. A Condessa há-de lembrar-se disso.

Podiam ter ido pelo corredor, mas foram antes pelas duas salas que levam ao quarto de Francisco. O quarto de jantar guarda a imagem antiga dum fresco que cobriu as janelas antes da cal descascar-se. Agora nada disfarça as rachas. O vazio da antecâmara encerra o segredo das partilhas numa família que já guarda pouco que dividir.

Chegam ao quarto. Arejado, honesto, simples. Os livros foram uma desculpa, as mãos não. Encontram-se na excitação do silêncio. A Condessa continua a estar por toda a casa. Há que guardar o barulho para outros dias. É fim de tarde. Lá fora Lisboa. As bocas. Dos turistas que devoram vorazmente um último pedaço de pão. A respiração lenta. Dos cães que passeiam pelas esquinas da cidade. As roupas caídas. Nas montras das lojas que fecham. Os corpos deitados. De dois namorados que se encontram num banco do Camões. O grito abafado. Do estertor do eléctrico acabado pelos barulhos das ruas. Francisco salta da cama, meio nu como uma estátua. Tem um ar meio provincial de fidalgo minhoto. Tem um embrulho nas mãos. Dá-o. Pedro recebe-o. São promessas de coisas que podem existir. Francisco lê-lhe entre os beiços "Amo-te". É mentira. Ainda não é verdade. Talvez seja. Nenhum dos dois sabe. Que importa? É verdade desde que ele o disse e enquanto o outro o acreditar. O telemóvel. Uma mensagem para o António (estará no quarto?). "Fumamos na varanda?(está cá o Pedro)". O primo aparece logo. Francisco abre a vidraça. Lá fora o século XXI. Lá fora Lisboa. A varanda é curta demais para os três, mas encaixam-se. António está tão esmagado como constrangido entre os dois. Está a aprender. São tão etéreos como o fumo. Os fins de tarde de Lisboa. Talvez Francisco e Pedro. Encontram-se pelo canto que cada um ocupa na varanda. Existem além de António. Só um para o outro. Conversam. Conversam sempre. António não pode perceber. Não porque seja um segredo. Porque é um segredo apenas deles.

Pedro atravessa o corredor. Já não treme. A Condessa está onde a deixou. Não a tivesse visto falar com o filho diria que tinha ficado sempre ali. Afonso não está. Talvez com a mulher em qualquer lado do sótão.
-Até amanhã. Muito gosto.
-Boa noite. O prazer foi meu.
Sorri. Afinal ele tem bom ar. A Condessa há-de lembrar-se disso. Mas ainda não haverá mãos levantadas, pelo menos por hoje. Francisco existe meio alheio à cena. Pedro faz o seu papel que aprendeu depressa. Sem ensaios desta vez. Devolve o sorriso. Saem.
Cá em baixo na porta hão-de demorar-se até ao estertor abafado do próximo eléctrico. Lá fora Lisboa. Talvez a Condessa se lembre disso.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Just like Marie Antoinette. Retrato de elegante no Lux. (Revisited)

Leva-me a dançar ao Lux, she said just like Marie Antoinette.

Uma maravilha de betão e vidro- ela ou o loft? A chuva que escorrega pelas janelas, ela que nunca escorrega por lado nenhum. Ela existe. Há o espaço exacto do vazio da sua presença. É por lá que ecoa a sua voz. As palavras nas paredes. Algo chega até ele. Ele cuida dos gestos quotidianos: o casaco, o guarda-chuva, as chaves do carro. Ela existe. Imensa, soberana, imperial, just like Marie Antoinette.

Ela está próxima das pessoas. Nunca pode estar entre elas. As suas linhas são distantes demais para que possa existir no meio das pessoas. Há os risos, os olhares. Para ela, nunca dela. Os seus olhares não se desperdiçam e as suas palavras não são palavras, mas desejos.

Há um equilíbrio delicado (e medido) enquanto sobe as escadas. Estas ou as de qualquer rua de Lisboa. A subida de uma escada é um espaço onde a elgância pode viver. Ela é curva como os espelhos onde encontra a projecção de si mesma. Eles não lhe mentem. Ela ama-se até à infinitude do seu reflexo, just like Marie Antoinette.

Pisa o chão como quem pisa a vida, agarra o copo como quem prende algo seu entre as mãos. Despeja nos lábios algo inútil. Nunca nada será tão seu como ela própria. O corpo meio estendido sobre um dos sofás. Ela pertence, não observa. Ela também é a elegância urbana do espaço.

Vêem-na, olham-na, observam-na. Talvez a desejem. Nada a preocupa, just like Marie Antoinette. Pelo corpo um vestido de veludo escarlate, perto do peito, solto na cintura. O vestido ondula, ela não. É estática como qualquer peça dali. Caem-lhe três fiadas de pérolas e no decote uma jóia de Lalique. Pelas pernas os collants pretos e os stillettos encarnados.

Nunca se farta, mas cansa-se por vezes. Levanta-se. Outras escadas, a mesma elegância. Os seus gestos são uma repetição de todos os outros. Na pista tudo se mexe. Ela fica parada. As bolas giram depressa demais, as luzes brilham demasiado. Tudo é rápido. Ela é exacta.

As pessoas teimam em existir à sua volta. Alguém lhe toca. De repente, ouve a música. O corpo dominado desprende-se. Ela mexe-se. Uma maravilha de betão e vidro- o loft; ela derreteu por entre a pista. Agora dança. Freneticamente como as luzes. Os cabelos existem. Ondeiam. Ondulam-se. É real. Mas é só um instante. Os espelhos não mentem. Ela ama-se até à infinitude do seu reflexo, just like Marie Antoinette.

Há-de voltar ao seu elemento,

Just like Marie Antoinette.

terça-feira, setembro 18, 2007

Breve meditação sobre Sara

À Sara Guia d'Abreu que povoa os meus dias.

Uma tarde,

Um intento,

Incenso que arde devagar.

Tarde.

Luz do sol sobre os teus óculos,

Um carro numa rua de Lisboa.

Nós!

Um cheiro doce de canela,

Coisas lembradas nas esplandas da cidade.

Recantos,

Encantos fadados,

Lembrados de coisas,

Livros sobre as mãos.

Esquinas de dizer palavras.

Corpos molhados.

Rimos,

Gargalhadas.

Quadros pendurados nas paredes procuradas,

Bailados,

Janelas em que digas:

Lisboa.

Palavras deitadas à toa

À tona do corpo,

Dos lábios.

Vagueamos, vagamos lugares,

Breves sábios.

Entendimentos,

Intentos,

Incensos

Que queimamos no arrastar lento dos dias lentos.

domingo, setembro 16, 2007

Anseios do Verão


Como numa tarde d'Inverno

Como numa sessão de cinema

Como numa noite sem lua

Fico quieto, calado

À espera,

À espreita.

Pode ser que te esgueires por um buraco

E que carregues nas costas

Dias de Verão.

terça-feira, setembro 11, 2007

A nós que nos vamos dizendo

Ao Luisillo e ao Pedro.

Devo dizer-vos palavras

Se nos vamos dizendo

Em cada dia

Por onde a vida nos encontra?

Epitáfio do Verão ou Devaneio sobre algumas estações e seus sucedimentos

Esperar na linha longa do mar

Que Outubro vire Outono

E que na volta do Inverno

Haja de novo vislumbres do Verão.

Ele e Ela ou Poema dos amantes que sabem viver

Ele

Ela

Dançando, entendendo-se

Enlaçando-se

Verão, volta

Fruto.

Experimenta palavras para poesia.

Que dizer?

Ele

Ela

Seus corpos.

Haverá mãos por onde traçar mapas?

Encanto

Folha cadente

Ensaio de amor em poucas palavras.

Gemido

Gritinhos soltados em frente ao televisor.

Não sei mais.

Ele

Ela

Sabem talvez

O que se diga

Mas sobretudo por onde se viva.

Viver uma morada

Na ideia

A casa, a janela, o recanto de aldeia

Num canto chamado cidade

Onde lhe conte estórias da Sherazade.

Vislumbre, perdão

Quotidiano perdido na mesa da cozinha.

Verdade.

Ele

Ela

Sabem mais.

Ele

Ela

Sabem horas, anos, dias,

Esperas.

Pequena declaração no parapeito de uma janela de Lisboa

Anseio.

Mente de manso.

Tarde acabada num jardim.

Que dizer sobre as mãos que param de par em par à tua janela?

Devaneio sobre as cidades dos livros ou Busca incoerente de algo que se chame amor

Por hoje uma mão. Para outros instantes a outra.

Palavras
Escorregam
De
Manso.

Encanto. Sussurro na ausência das palavras: faltas-me!

Quando te direi?

Páras porque cidade? Quem te viu já nas ruas tortuosas de Alexandria?

Tens poemas como as planicies onde estão os prédios elegantes de Paris. És pouco atento ao crepúsculo.

Ondas, folhas, falas.

Falhas em alguns instantes. Faltam-te cidades. O gosto do mar.

Tens troncos e és de árvores. Talvez por algum dia perdido te falte o verde.

Faltas-me!

Para quando? Por onde? Para onde?

Meu corpo que sossega, respiração lenta, sossego.

Por hoje uma mão. Para outros instantes a outra.

Outros dias, outras luas, novas palavras.

Crónica de dois amantes junto ao rio

Para o Sérgio e o Stijn, com todo o meu carinho.

Ele estava mais calado. Talvez porque os seus olhos verdes tenham um pouco mais de rio. O outro tem mãos mais fortes e rosto construído de cidade. Tem menos palavras que diga, mas quase tantas para dar como ele. Entendem-se por vezes em silêncios longos.

Constroem dias. Apercebem-se um do outro nas dificuldades incontornáveis do quotidiano. Qual a dose de amor que pode ter uma taça de cereais deixada ao acaso da súbita falta de fome? É o instante em que se engolem as palavras. Amar é também saber calar-se.

Não é fácil a cedência, a compreensão dos limites do tu face ao intento expansionista do eu. Eles sabem que não é fácil. Não soubessem não eram construtores de dias. Têm a certeza das tardes longas e da possibilidade de um por-do-sol roubado a alguma horas de outras coisas.

Enlaçam um entendimento. Descobrem-se. Magoam-se pelo caminho. Cravam-se um ao outro perdidos entre o eu, o tu e o nós.

Mas ele tem o corpo calmo. O outro também. A tarde escorre ao lado do rio. Lisboa ergue-se no alto das colinas e o rio atlântico leva sensações do Mediterrâneo. Dois homens de mãos dadas. Uma compreensão superior a eles mesmos. Deixam-se partir numa tarde soalheira de Domingo. Haverá outras para o regresso. Haverá sempre o regresso.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Ser poeta, o que é?

À Rosa Carreiro.

Há por aí uma bela dona que me chama de poeta.

Não me insultes de maneira vil, dona rica. Não quero ser poeta, não quero.

Ser poeta é andar de cabeça perdida, sem cabeça talvez e não ver as cores havidas das coisas vividas de cada dia em mim.

Ser poeta é saber significados ocultos, palavras, tumultos, que os ferem a eles mais do que a nós. É dar nós em pontas de facas. É ser esmoleiro, alarde, aldrabão.

Ser poeta é ser vendido às coisas do havido. É ser poeta repetido e reclamar uma invenção.

Ser poeta é tanta coisa sem saber se é pouca, se muita, se tanta, se coisa alguma. É andar perdido e gostar-se de lá estar.

Ser poeta é fazer más rimas, é criticar em palavras finas as finuras d'outros que tais.

Ser poeta é soltar ais. Ais que não são nossos, dores que não podemos haver.

Ser poeta é tudo isto, é pior ainda talvez. É uma história nunca finda, viagem morta de vez.

Que'é ser poeta não sei. Não sou, não quero, não posso. Falta-me o orgulho moço de por dados a rolar em mim.

Por isso te peço bela dona não me chames poeta ainda que em tal palavra finda dar-me meu triste fim.

Criar ou O desespero do acto e da palavra

Criar.

É ainda o peso aterrador da palavra que me assusta, que me ausenta. O medo da palavra que me atormenta. Quedo, imóvel, instável, cruzo no tempo do instante a possibilidade da palavra,

Criar.

Enlaço, engano, enredo. É uma fonte de fictícias ilusões abstraídas obtidas no momento mais desesperante dos momentos, o momento errante. Errando, escrevendo, criando, temendo.

Criar.

É ainda o peso aterrador da palavra que se alevanta para o levante de inesgotáveis invenções que a palavra há-de guardar.

Lembrança do Verão

Já não é mais a tarde,
Mas a memória da tarde.

Já não é mais a música,
Mas a memória da música.

O espaço de recordar. Vivo talvez para a lembrança.

Ando perdido entre o que foi e o que me fica.
Entretanto apenas recordo.

Embaraço das horas
Contadas sendo vividas ou lembradas.
Quem sabe para que se vê?
Se para viver se para lembrar.

Já não é mais o cheiro,
Mas a memória do cheiro.

Já não é mais o Verde,
Mas a memória do Verde.

Lembro o tempo vivido
Até que o tempo vire para o viver.

Vivo para a lembrança. Talvez.

A dança dos mosquitos

O silêncio imenso da noite é quebrado pelo zumbir tremeluzente dos mosquitos. Em cada quarto cada um prepara uma orgia de sangue. É irónico que nos comam enquanto sonhamos.

Enquanto espero o fim das férias

Já não estou,

Ou por outra
Estou mas não fico.

Agora só anseio por lembrar.

sábado, agosto 25, 2007

Tarde de Primavera numa sala de retratos

Para o Ricardo Proença que me pediu uma coisa assim.

Há uma sala velha. As paredes estão pintadas de novo. Creme. Em tempos foram cor-de-rosa. No pequeno sofá semi-curvo e de canto, que também é rosa, as molas saem por debaixo do acento. Um número pouco certo e certamente alternado de almofadas esconde o que falta. Guardam em si desenhos a ponto cruz da vida oriental. Buscam conforto em coisas que não existem. Há duas senhorinhas: uma ao lado do sofá, a outro no outro canto da sala. Há também cadeiras. Tudo é rosa e tudo tem as molas a sair.

Na senhorinha do canto da sala está sentada uma mulher mais ou menos velha. Tem os cabelos longos como as suas pernas e um vestido de veludo púrpura cobre-lhe os pés como um mar. Os cabelos debatem-se entre o louro e o branco evidente. Tem de volta do pescoço um fio de lã. Faz crochet. No sofá há uma velha realmente velha. Magra, cadavérica. Os braços, que são ossos, estão destendidos sobre o sofá. Usa um vestido leve de flores. Ao piano, que fica na outra parede da sala, uma criança de dez anos toca uma sonatina furiosa. Tem os cabelos em ouro, molhados e ondulados e veste um fato de banho. Toca com uma calma complacente, mas a música que sae do piano é imensa.

A sala é pejada de retratos antigos a preto e branco. Nos dois maiores uma senhora e um senhor olham-se e cumprimentam-se. Não têm braços com que se tocar. Lamentam-se. Noutro decorre um piquenique. Uma rajada de vento ameaça fazer voar os chapéus de pluma das elegantes senhoras que seguram os chapéus com uma mão e as saias com a outra. Um rapaz de fato à maruja olha curioso para as saias das primas. O bebé que está no outro retrato cai e chora por uma mãe que não lhe pode valer, por não existir naquele mesmo espaço. A noiva do retrato pequeno rasga o vestido contra a mão imperiante do marido complacente e espectante. O comendador assusta-se com o bolor que já lhe come as pernas no seu retrato.

De súbito, a mulher mais ou menos velha suspira:
- A Primavera outra vez.
A velha do sofá parece despertar por um segundo para voltar a ficar absorta outra vez. As figuras dos retratos descobrem-se. Cumprimentam-se, parentes que não se veem há muito tempo. Talvez há tempo demais. O bebé pára de chorar vendo a mãe e o pai que lhe vão fazendo caretas que divertem todos. Todos riem. As três mulheres na sala não estão ausentes, mas distantes da cena. Permanecem. Trocam-se estórias, anedotas de salão e novidades de coisas que podem ter-se passado há um século.

A Primavera entra pela sala. As cortinas brancas tornam-se imensas até cobrirem tudo. Há o silêncio. Um silêncio feliz de quem viveu muito.

As cortinas retornam. A sala continua velha e pintada de novo. A criança terminou a sonatina. Já nenhuma das três tem um ar fantasmagórico e já não existem cabelos estendidos até ao joelho. Uma mulher de sessenta anos bem passados põem a mão sobre o ombro da criança:
- Vamos lanchar? Há refresco de maracujá, sussurra como um segredo.
-E a Titi, perguntam os olhos da criança num tom naturalmente subido.
-Adormeceu.
As duas contemplam a mulher nonagenária que dorme ausente no sofá. Saem por uma porta. A velha fica a dormir com a cortina esvoaçando.

Dentro de mim

Para o meu Pedro Miguel.

Há um recanto onde há palavras,
Tardes de segredo.

Em quantas manhãs esvaziámos boca e alma?
Quantas vezes nos percorremos um ao outro
Na busca do que o outro é?

Questionámo-nos ao longo das noites
Em rumos obtusos de significados
Como músicas sussurradas em lábios
Que encerram dentes cerrados.

Perdi-te, achaste-me. Foi ao contrário
Também.

E agora há um dia em que estamos parados na elegância
De Lisboa,
Há uma mesa de café verde e há as nossas mãos
Que nos desenham entre as nuvens de Monet.

Busca-me até ao Tejo,
Dentro de ti
Como tu estás dentro de mim.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Conto de Servília (1ª parte)- Corpus et Verbum

O conto de Servília baseia-se na minha leitura de As memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar. Não tem assim nada de original na sua essência. Contudo, também não foi minha intenção plagiar a autora. O que aqui se apresenta é o resultado do acto fenomenológico da escrita.

Maruliano meu avô acreditava nos astros. Gastou os últimos dias de uma vida calma perdido no seu observatório achando pela primeira vez para si astros que outros haviam encontrado. Foi nesses anos de criança e com Maruliano que me apercebi da importância de descobrirmos em nós mesmos aquilo que já outros descobriram. Só aí é que as coisas passam a ser verdadeiramente nossas. Foi debaixo da sua capa que encontrei o mundo que ficava do outro lado do portão da nossa villa. O mercado era o centro buliçoso da cidade e como todos os lugares de negócio era interdito às mulheres. Só àquelas que não podiam traçar os seus antepassados até épocas longínquas é que se permitia perderem os dias atrás de uma banca qualquer. Mais tarde apercebi-me da diferença entre quem compra e quem vende: o vendedor pode até exercer uma certa pressão sobre o comprador, mas quem vende precisa desesperadamente mais de quem compra do que o contrário. Esta verdade revelou-se-me ao longo dos anos nas caras dos muitos mercadores que encontrei pelos mercados onde estive.

Não sei se alguma vez acreditei nos astros. De resto, isso foi de pouca importância no correr da minha vida. Era mulher demais para me dedicar à astronomia, era patrícia demais para me perder na astrologia. Encontrei-me em outros campos. O meu corpo foi o primeiro e o mais importante. Nunca fui capaz de amá-lo porque nunca fui capaz de entender essa filosofia que encontra no corpo um ser ao mesmo tempo estranho e íntimo, companheiro de jornada, exterior a nós mesmos. Só os homens podem amar os seus corpos porque só eles podem procurar a sua ascese. As mulheres não têm tempo para isso. A sua sobrevivência insiste num jogo diário que decide quem ganha e quem perde, quem continua e quem cessa de existir. Ao meu corpo domei-o sempre sob jugo forte.

Adriano, meu primo, amou os corpos nessa profundidade filosófica. Encontrei sempre beleza nas suas palavras, mas já não fui capaz de a reconhecer nos corpos que teimava em divinizar. Adriano, meu imperador, gabou-se de ter melhorado a vida das mulheres. Nunca lhe censurei esta vã-glória. Era a sua condição natural de homem e não algo que ele pudesse contornar que o impedia de ver o breve alcance das suas leis. Também não tentei explicar-lho nas muitas cartas que trocámos. Não é para o mundo dos homens perceber o mundo das mulheres. Os homens andam por estradas longas e abertas, as estradas com que construíram o mundo. As mulheres movem-se por becos tortuosos, quase sempre sem saída. Tão tortuosos que atrevo-me a dizer que é mais difícil morrer velha e patrícia em Roma que velho e imperador. O casamento e a minha partida para o Lácio trouxeram-me a certeza de que não há lugar para as mulheres no mundo que é Roma. Mesmo as grandes patrícias devem nascer sob a sombra paterna, viver sob a sombra matrimonial e morrer sob a sombra dos filhos. A glória que foi reservada a algumas não foi senão o resto da glória dos homens a quem se ligaram e que tantas vezes ajudaram a construir.

Foi esta certeza da minha dificuldade de mulher que me fez olhar para o meu corpo. Tirei dele tudo o que ele me pôde dar. Tive a sorte, mais que a inteligência, de ter tido olhos sempre tão claros como os espelhos que me reflectiam e vontade de me ver neles. Soube pesar o tempo em medidas tão exactas que pude usar o meu corpo consoante cada época que a vida me trouxe. Na minha juventude levei-o em jogos perigosos de sedução em que se promete nada, perde-se muito e compromete-se tudo. Mas soube orientá-lo bem nos sentidos que me interessavam e não houve homem, enquanto a minha pele foi fresca, que me tenha resistido. Cedi poucas vezes às tentações do corpo. Talvez tenha sido o bocado de estoicismo que me sobrou da minha educação: não aceitei nenhum senhor, nem mesmo esse. Lamento-me, no entanto, dessas fraquezas que me seriam breves de esquecer não fosse a imensa vergonha que me trazem. Essas são as cicatrizes do meu corpo.

Hoje tenho a certeza, que também já esboçava na altura, de que o meu corpo foi o meu melhor aliado político nas poucas ambições que tive com o meu marido. Achei sempre extraordinário que duas criaturas que nutriam uma profunda indiferença uma pela outra se entendessem tão bem na política. Talvez porque ele tivesse a masculinidade necessária e eu o conhecimento induzido dum mundo tão parecido com o das mulheres. Não acho que seja por acaso que a palavra política é feminina. Tivémos os dois uma ambição medida e sem grandezas e sobretudo uma consciência clara da nossa posição enquanto primos do imperador. De quase nada valia em Roma o nosso parentesco com Adriano a não ser para nos granjear inimigos que quase nunca conhecemos em aberto, mas contra os quais tivemos que lutar até ao fim da vida. De resto, em Roma nunca conheci diferença entre ter-se a cabeça a prémio ou ostentar-se o título imperial.
Talvez esta fosse uma razão secreta para Adriano ter estado tão pouco tempo em Roma, perdido nos seus ímpetos criadores. Ou talvez porque foi o primeiro homem a aperceber-se que Roma era já todo o mundo aonde chegavam as estradas e o latim e não mais essa capital, em tanto já decadente, que agonizava longe dos seus adorados Júlios e Antónios, esses patrícios que traçavam as suas ascendências além da realeza até aos casamentos celestes. Não havia lugar na Urbe para os imperadores nascidos de homens. Esses tinham o seu lugar nas estradas que saem das sete colinas a construir o mundo novo. Adriano soube-o melhor que outros.

Os meus receios políticos ligaram-me desde o início a Plotina, a imperatriz de Trajano, e a quem Adriano me recomendara. Quando a conheci Plotina vivia já nessa casa pequena onde morreu à margem da cidade e à margem da vida. Trajava nos seus véus de luto a única soberba que lhe conheci: a de ser uma matrona romana dos tempos da Respublica. A sua vida marginal não fez dela na sua viuvez, no entanto, uma mulher desatenta do mundo. O espaço da sua casa tinha o tamanho dos seus aposentos no palácio imperial. Confessou-me mais tarde que isto não se devia ao acaso e menos ainda à humildade: este era o espaço preciso em que se habituara a governar. Com Plotina entrei realmente no mundo das mulheres. No mundo das mulheres encontrei os limites do meu corpo e aprendi com dura facilidade que o que nos ganha o mundo dos homens perde-nos quando o mundo passa a ser no feminino. O nosso não é um mundo de corpos, mas da palavra. O mundo das mulheres é o mundo da palavra. O dos homens o mundo das palavras. Os homens, que são senhores do tempo, podem perder-se na busca ascética que cada palavra encerra num significado único que a singulariza e a torna ao mesmo tempo distante e próxima das outras palavras igualmente únicas. Para nós, que vivemos de bocados de tempo, cada palavra encerra o significado do universo. É preciso ter a atenção das mãos que vagueiam pelo tear na escuta das palavras das mulheres. As suas palavras são um código antigo de múltiplos significados em poucos significantes. O instante da palavra mal entendida pode deitar a perder o mundo de uma mulher.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Versos pouco inspirados para os dias de férias

De mar e ondas, novas verdades.

Intensos caminhos, rios,
Riscos corridos sobre as ondas
Da manhã que tarda em chegar.

O dia começa às onze
Com o corpo estendido sobre a cama.
O sol existe na extensão da alvura
Dos meus lençóis.

As coisas gozam uma existência
Calma, cálida, breve,
Temperada.
O tempo é medido em proporções diferentes do ser.

Existimos de outra maneira.
As tardes são como os avessos de nós mesmos.
Longos instantes sobre o calor abrasador
Em que o nosso mundo vive
Das praias onde as horas nos permitem chegar.

De mar e ondas as noites,
Com cheiro de sal e coisas das ilhas.
A elegância dos turistas passeia-se
Nos múltiplos promenades das ruas.
São festas de vestidos brancos e ondulantes
Com encantos musicais
Que se pode dizer surgirem dentro de nós.

De mar e ondas e cores
Os sonos, os sonhos,
Vagos, distantes, confusos,
Linhas blândulas, obnubiladas,
Existências vagueantes, calmas,
Plácidas.
Segredos de agora, depois,
De amanhã, de outros dias.

De mar e ondas os tempos...

sábado, julho 14, 2007

Poema de Pedro e Catarina

Dizes-me noites de poemas magoados
Para que eu os entenda.

Vive em ti um mistério confuso
Como se de uma vez duas árvores nascessem enroladas.

Procuro chegar-te nas calmas completas
Das tardes de praia
Quando em Julhos soalheiros
O teu corpo cabe debaixo dos meus braços.

Perco-te tantas vezes
Nas horas confusas que te assombram
E te levam em demandas de cabelos soltos,
Cavalos largados ao largo de chãos infinitos.

Hei-de saber esperar-te.

Nas horas do consolo
Eu me acalmo
Para que haja paz
Em teu estar confuso
E magoado de viver.

Envolve-me em teu corpo,
Prisão dos cheiros que de ti me prendem.
Sou teu chão onde plantes alicerces
Fundos como a profundidade
Dos momentos em que de súbito és minha.

Porque eu quero-te,
Quero-te além das palavras.

segunda-feira, julho 09, 2007

Poema dum operário que perdeu a esperança num dia de pouco mar

Quase nada
Um resto de pouco

Um viver adormecido
Sobre o cais de amanhã

Pouco pão
Pouco sol
Muita luta

Braços molhados
De longos mares outonais
Corpos caidos de cansados
Que sobram
O Mundo,
Uma existência triste,
Enrolada em tiras
Do seu cabelo espalhado ao vento

quinta-feira, julho 05, 2007

Diz ao mar que passo

Não disse ao mar que passava.

Em quantas luas me esvaí?

Prados que se arrastam
Pela infinidade lenta
Da terra fecundada.

No suor dos dias de trabalho
O labor burila as horas.

Eu perdi-me em que durantes?

Os pés escavam na areia
Palavras que diga
Amanhã,
Depois do tempo.

Mas não disse ao mar que passava.

quarta-feira, junho 06, 2007

Segredos dos amantes escondidos

Para I. e A., até que chegue a Setembro.

I
Na noite quente das amoras
Escrevo-te.

Vê que há uma liberdade
Só nossa na noite.
É nosso aquilo que
Só nós conhecemos.

As minhas mãos escorrem
Pelas paredes brancas da casa.
É como se te acariciasse.

Vivo nas palavras dos segredos
Escondidos,
Guardados nas horas dos
Recantos onde desenhamos
As hipóteses dos primeiros beijos.

Amo-te como se ama o
Fim da tarde:
Ao fim de um longa espera.

II
Falo-te na manhã fresca dos frutos.
O cheiro inunda agora
A casa
Com os nossos segredos.

Compomos um tesouro feito
De palavras não ditas.
É uma música que dança
No silêncio provocado
Dos nossos corpos.

Ardo por te encontrar.
Que as minhas mãos
Sejam os meus olhos,
Aranhas que traçam
Teias sobre o teu corpo.

Desenho-te no espaço
Ensaiado das horas
Em que te espero

Permaneço. Anseio-te.

terça-feira, junho 05, 2007

Homero talvez

Homero talvez,
Um encanto de fim de tarde.

Ilha grega:
Teu corpo,
Minhas mãos.
Intenções.

Repouso a cabeça
Sobre o teu peito,
Hora dos ritos.
Construção das tardes
Iniciáticas
Dos nossos dias longos.

Árvore,
Homero talvez.
Palmeira de Delos.
Fruto, sonho.

Mergulho.
O mar é mais azul
Quando se guarda o Mediterrâneo na boca.
As tuas mãos seguram os meus
Tornozelos.
Nado.
Busco a unidade.

Ânfora, coisa d'alma,
Homero talvez.
O encanto de um
Pateo branco
Sobre um porto
Breve.
Recriação,
Começo,
Cais.

Partimos.
Viagem incessante
Das mãos.
Altar.
Teu corpo, terra de
Imolação.
Primícias.

O vento vem do mar
Leve, forte,
Preciso.
A casa constroe-se
Na luz das suas janelas.

A minha alma é branca
Como as partes que
Conheço do teu corpo,
Homero talvez.

Dizes noite.
Música.
Os teus pulsos seguram
Os meus.
Levanto-me.
A força dos meus braços
Ergue-me acima da
Materialidade das coisas vivas.

Espanto,
Homero talvez.
Vinho, vinha, vento.
Barco, branco, breve.
Mar Mediterrâneo.

Desafogo.
Teus olhos,
Terras de oliveira.
Doce labor dos azeites
Que me escorrem pelas mãos
Na tarde das aranhas.

Orégão.
Trinco os frutos verdes
Da areia pedregosa.
Sal.
Há uma saída
Além nas grutas,
Homero talvez.

Ulisses, Aquiles, Heitor,
Minha Tróia feita
De muros caídos.
Anseio constante
De estrada que sobe.
Soneto medido na
Perfeição do templo.
Minha coluna dórica,
Meu espaço idílico,
Centro de mim.

Projecto fabrico
Real festa enfeite
Vida,
Homero talvez.

Mesa de estudo

As horas não te trouxeram:
Levaram-me.

O tempo não perdoa:
Ditador.

Ficam as minhas palavras,
Já soltas,
Perdidas.

Encontra-as, acha-as
E fala-me delas,
Espantos que me digam coisas
Do cair da noite.

sexta-feira, junho 01, 2007

Desabafos literários ou O milagre da criação das coisas exteriores a nós

Não tenho encontrado tempo para escrever, mas apetece-me muito. Talvez eu não saiba investir tempo. Escrever é como ser artesão e dedilhar o tempo com as mãos. Eu com certeza perdi essa noção vagarosa do tempo, perdido entre as coisas que no meu tempo levam as pessoas a perderem-se. Vamos chamar-lhe futilidades. Eu prefiro ilusões breves, mas talvez sejam na verdade futilidades.

A cidade traz-me muitas vezes o que escrever. Se o Tejo não se esgota de água também não me esgota a inspiração. Vão nascendo dentro de mim. Muitos morrem. Aprendi tarde, mas bem, que escrever é ser Deus, logo é um acto blasfémico. Não devíamos poder escrever, a escrita aproxima-nos da criação e logo de Deus. E Deus não deve estar próximo, mas presente, ainda que de esguelha, naquilo que escrevemos.

Esta aura de criação e de criacionismo que envolve a escrita seduz-me como uma bebedeira de licor de chocolate ou como um Domingo de sol passado na Pena. Viajo várias vezes ao passado para criar. Algumas ao passado de mim, muitas ao passado dos outros. Os outros são sempre mais interessantes porque os seus segredos são confessáveis. Os nossos nunca!

Andam por aqui algumas personagens. Felizmente são poucas e dão-me o trabalho que me chegue. Tenho sobre elas uma visão completamente paternalista e isso já não me incomoda. Não são minhas: são eu. São parte intrínseca de mim, foi de mim que as arranquei. (Ainda que tudo isto surja como um cliché, os clichés também se sentem). Ando é com falta de vestidos no armário para elas. Têm andado nuas e ainda assim parece-me que passam bem. Lamento é quando elas ainda são disformes ou quase nada. Por vezes surje serem assim. Elas pedem-me muitas coisas. Nem sempre acedo.

Estou constantemente fascinado comigo próprio quando crio ou penso criar. Descobri-me. É um processo pouco modesto e quase sempre arrogante. Algo em contrário foge à verdade. Ao real foge-se sempre quando se cria. Mesmo para depois retornar. Há saídas nos movimentos fenemenológicos e a composição das letras, que constroem a composição das personagens, é talvez a maior das divagações.

Mas para tudo é preciso tempo. É uma certeza bíblica que o Eclesiastes nos garante. Quem me dera saber tecê-lo. Talvez me faltem Ulisses que me ofereçam tempo mais do que amor. Lá fora, felizmente, ainda não deixei de me deslumbrar. Lá fora. Quase tudo é lá fora. Mesmo quando é cá dentro. Fenemenologias da escrita. Hei-de ser artesão. Mais tarde, quando houver tempo. Por agora nascem pelas ruas, sedes das igrejas onde Deus sou eu.

segunda-feira, maio 21, 2007

Anseios de Lisboa ao fim da tarde

Para a Raquel Lemos, a Ana Ferreira e a Migui Carvalho-Salgueiro.

O rio passa lento
Sobre o meu corpo.

Deixei-me afogar
No mar de gente
Que povoa o fim da tarde
Entre as ruas.

Algures as vidas passam
Em minha volta.
Levam o encanto de viver em Lisboa.

Cidade/rio,
Descanso primaveril,
Cavalo, palavra, cerca em aberto.

Grandes arcos
Arqueiam ideias.
Suspiros vagos,
Vivos,
Corpos esperando a
Cidade.
Anseios.

O Sol ainda existe
Atrás das casas.
Amarelas as casas
Nos raios de sol,
Janelas brancas de Lisboa.

Olhar com que se ama o rio,
As janelas,
As pessoas.

sexta-feira, maio 18, 2007

Jogo das coisas ao longo das ruas de Lisboa

Espera pelo fim da tarde, há uma magia na luz que traz. Guarda os olhos bem abertos para a veres.

Lisboa dir-te-á um poema, um consolo, ao ouvido, de mansinho. E há uma sala fresca na elegância dos apartamentos do Saldanha. Lá dentro a tarde escorre pelas paredes brancas da casa. O poema constrói-se em cada divisão: da casa, do corpo, de ti. Uma música chega-nos e o cheiro intenso da cozinha impregna o ar. É o cheiro da vida que chega do pateo de trás. A vida passa-se aí, nos pequenos recantos dos prédios de Lisboa. O cheiro traz-te leves recordações de infância como os acordes de um perfume. A vida é um jogo de peças modeladas pouco a pouco.

Com o fim da tarde tu esculpes a memória até daquilo que ainda não aconteceu. Perdes-te algures nos corredores brancos da casa. Ligeiramente à deriva. Tudo te leva à porta, à rua, à vida. Procura uma esquina do Chiado que te agrade. Saberás dizer que restos aí sobram da vida das pessoas? Para e constrói. Olha atento a vida que desfila à tua frente como uma tela de museu. Há seiva nas coisas, nas pessoas. Nada é estático. Tudo é estético. A vida consumida na elegância de se viver.

Vai. Algures além dum arco Lisboa oferece-se a quem a sabe ver. Algures alguém há-de morrer na cidade. São ainda as peças do teu jogo que se resolve pouco a pouco. Agora deixa-te guiar pelas palavras, ruas secretas, escondidas, oferecendo a possibilidade de sol. Afinal, tu andas contra o fim da tarde. O sol ameaça por-se. O jogo resta por terminar. Tu não descansas. Os olhos continuam deitados sobre as coisas que te envolvem. Buscas a estética perdida das coisas. Crias elos em cadeias que começam a fazer sentido dentro de ti. Quase tudo é natural, como o espanto das coisas sobre elas mesmas.

Lentamente a fadiga acorda-te: as pessoas não param de existir. Quantas peças já recolheste? Agora sabes mais da vida das gentes do que elas mesmas. Tens algo que elas não têm: a atenção por sobre o que passa. A estrada oferece-se longa. Mas é preciso continuar. Entregue às sombras que agora tomam os bocados de todos os recantos não te entregues. Continua. Hás-de chegar à porta da casa. Lá dentro a noite instalou-se. O poema continua a dizer-se ao longo das paredes brancas, é Lisboa que se canta. Senta-te. Espera de mansinho que as palavras que agora moram em ti se venham dizer.

quinta-feira, maio 10, 2007

Os amores da filha do marquês ou Gentil despedida experimentada em rimas

Encanto guardado com graça,
Recato primaveril.
Espanto de tudo o que passa
Em seu viver juvenil.

Cabelos loiros voando,
Vontade amarrada ao cais.
Idos de quem vive amando,
É uma aristocracia que vai.

Talvez regresse na vinda
Tal belo e jovem inglês.
Talvez seja uma história finda,
Os amores da filha do marquês.

Mas espera ainda, gentil dona,
Que em esperar há bem razão.
Pois por certo que a este cais torna
Quem naquele barco te leva o coração.

sexta-feira, maio 04, 2007

Kirsten Dunst


No recentemente estreado filme Homem-Aranha 3 há apenas uma coisa que vale mesmo a pena ver: o desempenho de Kirsten Dunst.


Na sua beleza encantada de mulher petite Kirsten mostra-se mais uma vez como a actriz das pequenas coisas. Nela guardam-se os pequenos sorrisos do quotidiano e os gestos leves que desenhamos sem pensar. Se ela os pensa ou não, não sei e tão pouco me importa. Ela encanta-me e é isso que eu busco nela. Não admira portanto que a actriz seja um dos fetiches da brilhante Copolla que busca precisamente as pequenas pequenezes do quotidiano. E é toda uma naturalidade que nos apresenta em Marie Antoinette (até hoje o seu mais genial desempenho) que continua a oferecer-nos em Homem-Aranha 3 apesar de todas as limitações oferecidas por Mary Jane Watson.


Verdade que Dunst está ainda longe do brilhantismo. Falta saber transpor a sua naturalidade das pequenas coisas para aquelas maiores. Ainda teatrais restam muitas das suas cenas de choro e dor ou de profunda paixão, um cliché americano que acredito seja difícil de largar para qualquer actor. Mas Kirsten lá vai guiando a sua carreira com cuidado, como a delicadeza dos seus gestos, escolhendo um filme aqui e outro ali, ora mais comercial ora menos. Eu continuo à espera que ela me continue a surpreender!


(Não deixem de ver, se ainda não viram, O Sorriso de Mona Lisa e Marie Antoinette, as suas duas melhores actuações)

domingo, abril 29, 2007

Crescendo

Sabes quantas voltas há no recomeço?

Passeiam por mim as horas incontáveis

Enquanto espero viver
Segundos que não acabem.

Reescrevo o sentido da vida.

As águas trazem-me de volta.

Digam-se as palavras:

Pedra, planta, fruto.

A tarde aquece-me
Com inspirações de verde.

Agora busco as ruas
Por onde deves ter perdido a minha poesia.

Lembra-me para não te voltar a dar
Intimidades.

quarta-feira, abril 25, 2007

Poema da espera

Não sei mais que te diga

A não ser esperar por ti

Até que a tarde vire noite.

Amando-nos

Dá-me palavras, segredos, espantos.

Enlaça-me em teus cabelos, cavalos soltos.

Encantos distantes, valsas.

Teu corpo, bocado de terra, país.

Meu corpo, descanso e casa.

Acasala.

Murmúrio, meu ouvido,
Secreto, suspiro.

Inspiro-te,
Teu odor leve,
Tua força bruta,
Tuas mãos,
Tua virilidade tão ferida e aflorada.

Desinquietas-me,
Enfrentas-me.

Nosso amor não é algo sossegado,
Não tem lago,
Nem água.

Destreza das tuas mãos
Prendendo as minhas.

Eu rendo-me,
Tu entras-me.

Quietos
Respiramos.
Os corpos violentos
Inclinam-se, lutam-se,
Perdidos, onde (?),
Ficamos
Amando-nos.

Mediterrâneo

O poema diz-se enquanto a tarde se instala
Através das paredes nuas da casa.

A média-luz do início faz-nos lembrar
Que o branco
É um estado mediterrânico de ser.

O corpo do mar é longo e calmo
E repousa sob o sol
No pátio quadrado da casa da ilha.

Há algures o cheiro novo dos orégãos
E do azeite.
Nas ânforas guardadas na rua
Restam as esperanças antigas
Do dia de amanhã.

As aranhas trabalham desafogadamente,
Enquanto vem a tarde,
No seu labor de séculos.

O sumo das laranjas frescas
Refresca-me.

Tudo é natural e bom
Na tarde branca e fresca da ilha,
Como se as coisas vivessem
Espantadas de ser elas.

Lar antigo dos deuses,
Pátio da eterna recriação,
Viagem à Hélade antiga
Em busca de algo que perdemos
E não conseguimos lembrar,
Memória das tardes brancas do sol.

segunda-feira, abril 16, 2007

Poema do homem bucólico

Às angústias que nestes dias me angustiam.

Ligeiros chegam os fins-de-tarde de Abril
E trazem consigo os primeiros crepúsculos do ano.

Abril fala-me sempre da Primavera,
Dum chão novo
Que os deuses renovam para nós.

Tu és como as manhãs calmas de Sol
Ouves atentamente o que eu digo
Como se as minhas palavras fossem de beber.

Bebes os sonhos que te conto
De coisas distantes que encontras nos momentos
Escondidos das tardes e das flores.

Tu és como o riacho manso e de água doce-
Corres devagar, mas sabes por onde andas
E para onde vais.

Tens uma sede de coisas maiores
Que procuras sofregamente
Saciar nas minhas palavras.

Não percebes que todas as minhas palavras
Cabem em ti;
Em ti onde me esgoto, onde me começo,
Onde me renasço.

Súbita Primavera constante,
Que toldas minhas tardes de uma alegria
Feita de gestos simples e certos,

Como desenhos de crianças quando chega o Sol,
Breves e duradoiros reinos de luz.

Não sabes que sabes das cores
E das coisas que elas ensinam.
Tudo em ti é tão natural e simples
Que não te permites pensar,
Mas apenas viver as coisas,
Os dias,
As horas.

Sabes apenas que queres mais,
Assim como eu sei que te quero a ti.

quinta-feira, abril 12, 2007

Peter Pan

A mim.

Wendy: "Acabaram-se as tuas aventuras, rapaz!"

Peter: "Não! Viver é ainda a maior das aventuras!"

quarta-feira, março 28, 2007

Prenhes

É ainda possível dizer que é tarde?

Já lancei os dados, mas algo
Continua a rolar incesantemente na minha cabeça.

Começo a ficar prenhe de ti.

O teu mundo é natural e verde
Como as tardes de junho que espero nesta primavera
E trazes em ti segredos solares.

Eu sou feito de betão,
Tenho alma de cidade
E no peito uma insensibilidade que o prova.

Tu moras algures dentro de mim.

Procuro-te por dentro,
Não te acho,
Mas sei-te e
Isso é um tormento.

Vives na minha sombra
Mas levas mais luz que eu.

Não tenho nome que te chame
E se chamasse
Não virias.

Vives além das palavras ditas,
Vives num chão de terra cultivado
E colhido nas primeiras chuvas de setembro.

Pudesse eu ser fértil como tu!

Assim saberia como se constrói uma vida
E quantas gotas de suor fazem
Um dia de labor.

Tu sabes do chão,
Eu sei do mar.
Tu és dos meus olhos verdes
Mas eu ainda não tenho lugar em ti.

Quando chegar a noite
Pede ao teu corpo
Que se emprenhe de mim.

Rememoriar



São elegâncias passadas que raramente nos visitam. Tardes de sol e corpo molhado entre os banhos na praia e os lanches na sala antiga. Memória de uma infância guardada no zelo das primeiras horas e constantemente revivida, reinventada, readquirida. Nomes ditos de cor pelo prazer de chamar os que já não estão, mas que ficam sempre. Tardes de um Agosto distante que, espero, chegue depressa.

O nu de Radcliffe e as suas curiosidades



Com tanto falatório em torno desta polémica do jovem Radcliffe aparecer nú nos cartazes de propaganda da sua primeira peça (bem como na peça em si), não quis deixar de deixar em nota o que acho.

De facto, o nu é um fenómeno curioso. Usei durante muito tempo no MSN uma imagem de Gale Harold e Randy Harrison (Queer as Folk, the american series) representando as suas personagens, Brian e Justin, em pleno acto sexual. Confesso que o fiz por pura provocação e que obtive o resultado desejado. No entanto, esse mesmo resultado não passou de meia-dúzia de comentários mais ou menos bem-humorados sobre a dita imagem. E porquê? Porque ainda que ambos aparecessem nus e simulando o acto sexual apenas se via o bem torneado rabo de Gale Harold.

Descobri na net há relativamente pouco tempo as fotos para a propaganda da peça "Equus". As fotos são, em meu ver, de uma beleza extraordinária, com um jogo de luzes muito bom e uma brilhante encenação estética, com o jovem Daniel num ar de fria masculinidade anglo-saxónica, algo que quase poderíamos chamar de agressividade elegante e delicada.

Ora, quando tomei posse desta foto que apresento passei a usá-la no MSN, pelas razões referidas, porque me agrada o pequeno e porque sim! Pois agora não há pessoa que não critique a dita foto. E porquê? Porque é um nu!

Descobri que podemos servir-nos da pornografia na net e seus afins desde que não se vejam genitais.

Para aqueles que conseguem ver além dos desnecessários pudores fica uma foto belíssima.

domingo, março 18, 2007

Uma vez numa tarde de Domingo

Fui lá beber palavras
Encantos sonhados,
Vividos.

Sou cheio de espanto!

Aprecio estes recantos
Guardados, escondidos,
Segredos da tarde
Em meus pés cansados
De passear ao Domingo.

Tardiamente me encosto
Recostado nas letras
Seguro, secreto,
Criando as palavras
Ofício continuo,
Enquanto nos teus livros,
Cabaças,
De lento bebessem as Áfricas.

quinta-feira, março 08, 2007

Conto de Gustavo-II

Para Daniela Brigue Varela, que sente como eu. Para Filipa Tereno Nunes, que me lê como uma transparência. Para Maria Ribeiro Braga, cuja extraordinária beleza e tocante delicadeza me inspiraram.

O trânsito não avança. O relógio do carro mostra 14:11. No visor do telemóvel que começou agora a tocar pisca o nome de Artur.
-Sim?
-Olha, falei agora com a tua irmã Teresa, por causa de vir cá deixar os miúdos. Ela disse que não tinhas passado por lá.
-Sim, é verdade. Acabei por não ir lá a casa. Se eu te disser onde fui zangas-te?
-Foste aos Penedos outra vez ver os teus fantasmas!
-Sabes que não gosto nada quando falas assim. Precisava de lá ir. Precisava de ver as coisas para sentir a ausênsia das coisas.
-Eu só não sei se com essa poesia toda tu precisas de te despedir das pessoas ou da segurança que essas pessoas te transmitiam.
-Olha, quando um GNR me mandar parar o carro queres que lhe peça um tempo para te responder, ou passo-lhe o telefone para ser ele a resolver essa tua dúvida filosófica?
-Espirituoso! Ainda estás nos Penedos?
-Não. Estou parado no IC 19. Acreditas que esta porra tem trânsito a esta hora?
-Eu não acreditava era se não tivesse trânsito!
-É verdade, Artur, tu não te importas mesmo de ficar com os miúdos?
-Não me importo nada Gustavo. Tu sabes que eu adoro ficar com os teus sobrinhos.
-Então está bem. Aquilo deve acabar lá para as cinco, cinco e meia. Passamos aí por casa depois para tomar qualquer coisa: eu, a Teresa, o Inácio e o Miguel.
-Vá então, beijo.
-Outro.

Havia sempre este conflito entre os dois: os Penedos. Desde que a avó morrera há menos de dois anos que Gustavo ia pelo menos duas vezes por mês aos Penedos, a quinta dos avós em Colares.
A quinta tinha sido mandada construir por um dos vários ilustres antepassados de Gustavo lá para meados dos século XIX quando Sintra, e por acréscimo Colares, se tornaram local de férias da Família Real e logo a zona chique de veraneio a par de Cascais. Agora, com os avós mortos, a quinta restava fechada e de certa forma abandonada, não por desmazelo da família, mas por dor, uma dor imensa que atravessava todos uma vez que para eles aquele lugar não existia separado da presença dos seus patriarcais donos. Era agora uma coisa quase romântica, uma ruína deixada ao acaso, mas carregada de memórias e de imagens. Gustavo era o único que se aventurava com tanta frequência para além do grande portão de ferro dos Penedos. O que ia lá buscar nem ele mesmo sabia. Dizia a si próprio que ia despedir-se dos avós e sentir nos móveis e nos objectos que ficaram a ausência daqueles que haviam partido. Mas ao fim deste tempo, e ainda que não o chegasse a confessar, tinha que admitir que Artur estava de certa forma certo. Mas não inteiramente. É verdade que não se conseguia desligar do conforto e da segurança que aquele lugar lhe oferecia, da maneira como o transportava para o tempo idílico da infância. Mas também, por outro lado havia tanta coisa para lembrar ali. Era tudo tão mais complexo e difícil do que aquilo que Artur punha em palavras. Estava tudo tão emaranhado dentro dele. Era quase como decidir por ficar com a melhor metade de um quadro e deixar a outra para trás- simplesmente não é possível, temos que levar tudo.

Abrir o portão era sempre um rito que o gosto teatral de Gustavo por estas situações tornava ainda mais magnânimo. Era um amor pelo exagero de certa forma escondido que Gustavo só revelava a si próprio nestas coisas e que só os mais íntimos, como Artur, eram capazes de ler nele. Seguia pelas escadas que davam à entrada principal. Entrar era mais do que voltar a casa, era voltar atrás no tempo. O seu amor pelo exagero e pela grandeza atraía-o para os grandes salões da casa. Abria logo as janelas, mas deixava as cortinas corridas para que fosse tudo a média-luz, na criação de um espaço que ele queria e sabia onírico. Na sala principal da casa parava muito tempo sentado numa das poltronas frente à lareira que tinha, um de cada lado, os retratos da avó e do avô, ela de vestido comprido, ele com o seu traje de cavaleiro da Jarrateira. Antes havia sempre um ramo de flores frescas que Jacinto, o filho do jardineiro, colhia no jardim de três em três dias e punha no grande jarrão setecentista que ficava em cima da lareira. A avó adorava flores. Gustavo adorava flores. E lá restavam nesse mesmo jarrão os cadáveres das últimas flores que Jacinto lá colocara antes da avó morrer. Para Gustavo representavam mais uma fantasia romântica daquela casa. Depois levantava-se e seguia para o grande quarto de jantar. Lá estava a grande mesa com os dois candelabros de prata escola da Flandres do século XVII. E Gustavo lembrava as estórias que o avô contava sobre as muitas viagens daqueles candelabros que tinham vindo lá da Bélgica, mas que acompanharam D. Jerónimo na sua estadia na Índia portuguesa e D. Teodoro durante o seu vice-reinado brasileiro, dois ilustres antepassados da família de Gustavo. As muitas cadeiras com os lugares sempre certos para os filhos e os netos e sobre a lareira o belíssimo espelho veneziano que a avó trouxera duma das suas viagens a Turim, onde o comprara num leilão. Mas apesar do seu amor pelas grandes salas era sempre nas mais pequenas que se sentia melhor, um gosto quase vitoriano pelo recanto. A sala de xadrez, toda em madeira num pesado estilo neo-gótico com os contornos da sua imensa janela retorcidos em figuras que tinham atormentado a infância de Gustavo, dos manos e dos primos. Ao fundo o grande sofá Luís XVI, uma mistura arriscada que só o extremo bom-gosto da avó fizera funcionar. Mas era para lá da sala de xadrez que estava a sala preferida de Gustavo: a sala de música. Pequena e rectangular reservava quase metade do seu espaço para o grande Erard de cauda de 1840. No resto os confortáveis sofás de aspecto chinês para os quais a avó mandara bordar inúmeras almofadas com representações do quotidiano oriental. Ao longo da das paredes de imenso pé direito repetiam-se fotografias a preto e branco dos mais variados elementos da família. Avôs de bigodes retorcidos a fumar cachimbo, tias com grandes chapéus de plumas, avós com pentados elaboradíssimos, meninos ainda bebés usando longos vestidos no dia do seu baptizado. Eram figuras fantásticas que tinham habitado a infância de Gustavo e de quem Gustavo sabia os nomes e os hábitos como se com elas tivesse vivido. Tinham-lhe nascido nessas horas mágicas do verão, entre as duas e as quatro, quando o grande relógio da sala de bilhar, ao lado, batia as três e o mundo semi-cerrava os olhos numa média-luz que nunca demorava muito. Tinha sido a hora dos afectos em que ele se sentava aos pés da avó, que se sentava num dos cadeirões e a ouvia contar estórias daquela gente que havia vivido no seu passado. Foi o tempo dos segredos e das intimidades onde se ataram laços de seda que Gustavo sabia ninguém ser capaz de cortar. Felizmente a avó restava ainda nesta sala presente no grande retrato que ocupava sozinho uma das paredes. Era a avó, a cavalo, com quinze anos na quinta dos seus pais na Chamusca. Tinha os cabelos loiros escorridos sobre o ombro direito e nos seus olhos claros brilhava um brilho de pedra preciosa que manteve ao longo da vida. A pele apenas ligeiramente queimada, como se nela a pele teimasse em permanecer para sempre naquela alvura delicada que tinha. Encantava-o a visão da avó, no seu ar de menina, vestida naquele fato de linhas tão direitas e masculinas, em que a sua beleza, que se advinhava já estonteante, quase que explodia dentro do fato. Afinal, Maria das Dores fora sempre, em todas as idades, uma mulher de uma beleza invulgar. Gustavo gostava de acreditar que havia algo de mágico no seu nome, nome que carregava num misto de orgulho e fardo e que se repetia na sua família há gerações quase incontáveis. Eram na verdade, gerações de Marias das Dores, sempre casadas com diplomatas que haviam passado o seu nome como se ele pudesse sustentar uma família. Nome que coubera à avó fazer repetir no futuro dando à luz uma outra Maria das Dores, mãe de Gustavo, que tivera também uma Maria das Dores, que por sua vez, há quatro anos tivera a mais nova Maria das Dores da família.

Depois, lá fora, estendia-se o grande jardim da quinta e mais além os terrenos continuavam, florestas por onde Gustavo e os primos aprenderam a andar a cavalo. Ficava sempre sentado no terraço a olhar a pisicina. A visão da água fascinara-o sempre e tinha o poder de o levar a um estado de meia-sonolência. Então era como se sonhasse com as primeiras tardes de Maio, com o abrir das rosas no jardim, e os primos todos de volta da mesa do terraço, de corpos molhados, a comer sandes e a beber sumo de laranja. Mais tarde com os outros verões chegaram esses tempos confusos, que Gustavo organizava na sua cabeça como o tempo de Martinho, em que a visão do corpo molhado e semi-nu do primo, na sua beleza e musculatura perfeitas de estátua grega o fazia descobrir os primeiros prazeres do corpo no quarto de banho do pavilhão da piscina. Era tudo ao mesmo tempo tão próximo e tão distante. Como se enquanto memórias tivessem acabado de ser vividas, mas enquanto vida pertencessem já a um tempo muito distante e muito antigo de que Gustavo tinha apenas uma ideia leve.

Quando deu por si tinha já chegado a Lisboa e levava agora o carro para o Príncipe Real onde a sua irmã Teresa lhe dissera que ia haver o leilão. Andava à meses aflitíssimo por causa deste leilão sem ter bem certeza do que fazer. Só sabia que tinha que vir. Parou a custo num lugar perto do jardim e ainda perdeu dez minutos à procura da galeria. Era uma zona de Lisboa que o encantara sempre, a praça do Príncipe Real. Morando no Rato preferira sempre aquele jardim ao mais elegante jardim da Estrela. Era como se ali, numa qualquer hora mágica à qual era preciso estar atento, ainda se conseguisse viver na Lisboa oitocentista. Mas agora não havia tempo para estes devaneios. Eram já três e dez e Gustavo tinha que lá estar um pouco antes para o sempi-eterno social.

A galeria ficava num desses edifícios antigos da rua D. Pedro V por debaixo do prédio onde Teresa e Inácio moravam. Aliás, tinha sido assim que os pais tinham descoberto aquela galeria. Desde a morte da sua mãe que Maria das Dores, a mãe de Gustavo, se fora aos poucos desfazendo de algumas peças que a lembravam dela. Eram sobretudo peças que tinham estado nos Penedos ou na casa dos avós em Campo de Ourique e que tinham passado para o casarão do Rato onde Gustavo crescera e onde moravam os seus pais. Mas quando a mãe decidira vender a Pietá quase que tinha ensandecido. Perder aquela Virgem era quase como perder a avó de novo. A Pietá fora sempre a grande confidente de Gustavo, aquela que guardava os seus segredos mais íntimos desde a primeira noite, quando, cheio de coragem, se esgueirou para espreitar Martinho e ela fora o seu único consolo. De certa forma, era um outro lado da avó a quem fazia as confidências que estavam para sempre proibídas à sua maior confidente que fora sempre a avó Maria das Dores. Discutira várias vezes com Artur se devia comprar a imagem da Virgem. Artur achava-a belíssima, mas de certa forma temia aquilo que ela representava para Gustavo e tinha mesmo ciúmes dela por saber que aquela Virgem guardava mais segredos de Gustavo do que ele algum dia iria saber. Em suma, tinha-se decidido que não seria Gustavo a comprar a Pietá.

Lá dentro a sala da galeria estava convenientemente aquecida com os ares condicionados, nada daqueles calores exagerados quase a roçar os trópicos que se fazia sentir na biblioteca da faculdade. Os frios rigorosos de Novembro chegavam agora apesar das tardes esplêndidas com que o sol decidira honrar Lisboa nas últimas duas semanas. Enquanto descalçava as luvas encontrou Teresa e Inácio.
-Então e o Miguel?
-Ainda não chegou.
-A Maria não vem mesmo, pois não?
-Não. Disse que achava que já era masoquismo a mais e que não aguentava mais nenhum leilão com peças da família. Eu vou-lhe ser honesta Gustavo, eu também não sei quanto mais é que aguento. A mãe teima em fazer isto aos bocados sei lá porquê. Parece que se anda a purgar duma culpa qualquer. Eu já estou como dizem os ingleses "a person can only suffer so much"!
-Sim, sim, é claro que tem razão, mas adianta falar com a mãe? E depois o pai com aquela filosofia de "nas coisas da sua mãe eu não me meto". Enfim... Por falar nisto tenho que ir dar um beijinho aos pais.
Num dos cantos Sebastião e Maria das Dores Lemos da Cunha restavam discretamente trocando algumas palavras. Maria das Dores agora sempre com um tailleur preto deixando escapar no pescoço um colar de pérolas brancas. No seu porte altivo habitual não era senão uma sombra daquilo que fora a beleza e a presença da mãe. Sebastião Lemos da Cunha estava muito direito, aliás como sempre, no seu ar de militar, esplêndido no seu fato italiano. Gustavo aproximou-se dos pais para os cumprimentar.
- Gustavo, a mãe pede-lhe mais uma vez, não vá fazer nenhum disparate! Não se atreva sequer a licitar a peça.
-Sim, mãe, já tínhamos resolvido esse assunto, não já?
-Espero que mantenha o combinado. Está ali a Amélia Brandão de Lacerda. Desculpem, mas tenho que lá ir cumprimentá-la.
Com a saída da mulher Sebastião afrouxou um pouco a sua pose sempre rígida para dizer a Gustavo:
-Agradeço-lhe tanto que venha, filho. Eu sei como estas coisas são difíceis para si, aliás para a família toda. Mas apesar da mãe não dizer a vossa presença dá-lhe uma grande segurança.
Gustavo sorriu. Era impresionante como o pai o continuava a espantar. Ninguém que não pertencesse ao núcleo mais íntimo da família seria capaz de perceber o marido dócil e atento e o pai extraordinário que Sebastião era por detrás da figura do rigoroso Coronel Lemos da Cunha.

Os pais sentaram-se à frente. Gustavo, Teresa, Inácio e Miguel, o marido de Maria das Dores que entretanto chegara, sentaram-se um pouco mais atrás. Gustavo começou a suar das mãos, sinal claro de nervosismo. Mal ouviu o homenzinho da galeria dizer que se ia licitar uma belíssima Pietá de artista desconhecido, mas certamente português, do século XVIII. A base de licitação era de €5.000. As licitações subiam, €6.100. As mãos a tremer. A voz do homem parecia cada vez mais irritante. A Pietá à sua frente como naquela noite. €7.650. De súbito, a voz calma de Teresa, a sua mão sobre a de Gustavo:
-Sabe que mais, borre-se na mãe.
Levantou-se de repente:
-Trinta e cinco mil euros!
E um alívio enorme percorreu-lhe todo o corpo enquanto se sentava. Estava feito, não se voltava atrás. Agora era só aguentar os sermões que se iam seguir ao olhar reprovador que a mãe já lhe lançara. Mas comparado com a alegria de ter comprado a sua Virgem isso era coisa de pouca monta. Resolveu o que tinha a resolver, levantou a imagem, despediu-se do pai e entrou no carro.
-Sempre vamos para sua casa, perguntou Teresa.
-Claro, então agora ainda mais. Ligue à Maria e diga que está intimada a ir lá jantar.

Gustavo mal viu o caminho que o levou do Príncipe Real ao seu apartamento na Andrade Corvo. Chegou eufórico, mal conseguindo esperar pela irmã e os cunhados. Teresa estacionou o carro.
-Agora é passar pelo Artur.
-Não, eu até acho que, de certa maneira, ele já sabe.
Entraram no belíssimo edifício dos anos quarenta. Foi Teresa quem abriu a porta.
- Chegámos, disse Teresa.
-Mãe, gritaram as crianças enquanto corriam para a abraçar.
-Entrem, entrem, respondeu Artur. Estava com os miúdos na cozinha a fazer umas tapas para agora. O Gustavo disse-te que estamos sem escrava?
-Oh, Artur, coitada da senhora.
-Olha, que é do Gustavo?
-Temos uma surpresa, espreitou Gustavo pela porta.
-Então quanto é que o teu irmão deu pela Pietá, perguntou Artur a Teresa.
-Meus Deus, mas tu sabes sempre tudo?
-No que toca a ti Gustavo, sim!
-Hum, então se calhar isto é amor, disse Gustavo com um sorriso irónico e de gozo enquanto ele e Artur se beijavam e Teresa ia já a caminho da cozinha para acabar de fazer as tapas com os filhos.
-Tinha pensado em pô-la no escritório.
-Acho bem, passas lá mais tempo do que em qualquer lado da casa.
O escritório era pequeno e estreito mas com uma janela imensa que o inundava de luz. Verde, a cor preferida de Gustavo, com uma grande cadeira de braços em vime para a secretária e duas iguais noutra ponta com uma mesa de canto. Uma estante apinhada de livros correndo uma das paredes. Gustavo colocou a Virgem em cima da secretária. Sentou-se. Artur enroscou os braços em torno do pescoço de Gustavo enquanto olhavam a Virgem.
-Vieste guardar os teus fantasmas?
-Não Artur, vim soltá-los dentro de mim e aprender a viver com eles.

quarta-feira, março 07, 2007

Desejo-te

Teu corpo,
Uma delícia revelada
Por entre as coisas
Que imagino.

De súbito
As minhas mãos
Perdem-se
Na seda das tuas
E a minha língua
Viaja-te,
Itenerário leve
De cadências longas.

Meu corpo,
Uma fantasia
Que tu descobres
Nas voltas do teu relógio,
Teu tempo próprio.

Invades-me
Enquanto me deixo tomar,
Cidades de muros caídos.

Lisboa que te sente a falta

Para Sérgio Dias de Figueiredo, com saudade.

Que diz a Cidade da tua ausência?

Diz das tuas mãos que não a tocam
Dos teus pés que não a caminham
Dos teus risos que não tos ouve.

Porque te demoras nas tardes
Agora que chegou a Primavera?

Não sabes que Lisboa nos ama a Todos
E embala o rio como o choro
De seus filhos distantes?

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Conto de Gustavo

A medo abre a porta do quarto devagar. Esperou meticulosamente de olhos abertos a chegada desta hora que o relógio do quarto parecia fazer demorar. Os pés descalços, para não fazer barulho, entram no corredor. Nas paredes altas repetem-se os quadros de avoengos antigos, presenças assustadoras de uma infância ainda há pouco vivida, que de novo parecem semi-cerrar os olhos para lhe lembrar que o que faz é mal feito. Felizmente que ao fundo resta a grande imagem da Pietá, consolo eterno da avó, e em segredo também seu. Para si foi sempre ele nos braços da Virgem em vez do Cristo morto. Ele nos braços da mãe, não no fim da vida, mas numa espécie de vida fetal ainda por nascer.

Uma porta, outra porta, mais duas. Por fim, o grande quarto de hóspedes. Ele resta breves minutos indefinidos numa infinita espera. As mãos arriscam a maçaneta por várias vezes sem nunca a agarrar, até que se sente invadido por um surto de coragem e abre a porta. Todo aquele momento gira na sua cabeça fazendo dançar um turbilhão de ideias. Como se vem tornando habitual vive e pensa os instantes tudo ao mesmo tempo o que torna tudo mais confuso. Em si resta um misto de terror e de auto-reprovação apimentado por uma curiosidade de descoberta, descoberta que é mais sua do que de qualquer outro. Mas ainda que pense este momento serão ainda precisos alguns anos para que uma maturidade crescente lhe permita arrancar estas conclusões à memória. Será preciso passar a calma acastanhada dos outonos cadentes e os rigores frios de um Inverno que se anuncia cada vez mais próximo até chegar a uma Primavera (que por ora ele nem imagina que possa existir) libertadora e fulgurante culminando com o seu corpo nú nas águas de uma praia nesse Verão catárquico que há-de chegar. Mas isto são tudo coisas que se avizinham nas estações e que moram no seu futuro.

De mansinho, Gustavo abre a porta do quarto de hóspedes. Como uma terra prometida a imagem tão ansiada: o corpo nú de Martinho estendido sobre a cama sem qualquer coberta. Revela-se numa beleza fria de estátua ao mesmo tempo desejável e distante, provocatória sem que em si Martinho faça nada para o ser. Afinal, o primo dorme na tranquilidade do seu sono nú e talvez seja isso mesmo que faz dele ainda mais belo e ao mesmo tempo (felizmente) intocável. O corpo de Gustavo cede naturalmente e o sangue começa a correr com mais força. Mas não há em si nenhuma vontade de se tocar. De certa forma isso estragaria a intensidade deste momento. Este é afinal um instante de descoberta e de alguma maneira, ainda que vaga, Gustavo tem já noção disso. Não é como aquelas tardes quentes de verão em que a visão do corpo semi-nú e molhado de Martinho o faz correr para o toillette do pavilhão da piscina na quinta dos avós. Gustavo descobre com algum prazer que este não é um momento físico. Enquanto a penumbra o vai permitindo ver o corpo nú do primo e os olhos se habituam à escuridão Gustavo estuda cuidadosamente cada bocado de Martinho. É como um exercício analítico em que o estudo do corpo nú de Martinho lhe vai permitindo conhecer o que lhe agrada ou não. Martinho serve de primeira base para uma definição do seu gosto. Este gosto que agora se torna claro e vai adquirindo os seus moldes e que faz Gustavo entender que embarcou numa viagem sem regresso possível. Não que alguma vez a caravela tivesse prometido algum regresso, mas só agora, perante o corpo nú de Martinho, símbolo de tudo aquilo que ao mesmo tempo esconde e anseia, é que se apercebe disso.

Demora-se no quarto um tempo que ele próprio preferiu não contar. Sempre junto à porta, tentando o mais possível manter-se imóvel e sem fazer barulho. Felizmente Martinho não acorda. Nunca saberá desta noite nem da importância desta noite na vida do seu primo Gustavo. Gustavo por seu lado percebe muitas coisas. Fecha a porta. Em volta, no comprido corredor, já não há nada de acusativo nos olhos pintados nas telas dos avoengos, reflexo das acusações que se fazia a si próprio. Mas ao fundo a Pietá ainda resta como imagem de consolo, mãe para sempre carinhosa e protectora que o amparará num mundo que acaba agora e num outro que começa. O mesmo silêncio de volta ao seu quarto, os pés deslizando de mansinho sobre o tapete. A porta fecha-se. Gustavo volta para os seus lençóis. Como sempre a janela resta aberta (marca do seu medo infantil do escuro). Nunca Gustavo ansiou tanto pela chegada da manhã. Saberá mais tarde que a nova manhã trará o seu Outono e por vezes desejará um outro tempo até que as manhãs repetidas lhe tragam um novo Verão.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Amar e um piano

Os dedos esguios buscam nas teclas frias do piano o calor da carne dela enquanto ela se contorce sobre si mesma numa dança lenta, mas contínua. É como se ela se entregasse a ele entregando-se ao piano e à música que ele desenha sobre as teclas. Ele busca-a incessantemente no piano e conhece cada curva do seu corpo através de cada nota.

Ela tem um corpo esguio e magro. É como se fosse uma flor de cristal e a todo o momento restasse o perigo de partir os braços. Mas os braços não se partem voam. Ou esvoaçam parecendo que voam. Ela embebeda-se na música dele, doce, suave, calma, como uma primavera que de súbito tivesse chegado mais cedo. Os dedos dele nunca se alteram só a música cresce e se transforma, agora intensa, depois não tanto. As musas vêm buscá-la. A música transporta-a a algo divino, ascético. O corpo não pára jamais. É como se continuadamente fizesse amor com a música, com o piano e por fim com ele. É como se ele lentamente a conhecesse, a masturbasse e finalmente a penetrasse em cada tecla.

Ele toca, ela dança. Olham-se, anseiam-se, desejam-se, mas jamais se tocam.

E se o verão de súbito regressasse?

Talvez te diga das cartas,
Das folhas,
E do chá nas tardes calmas de Inverno.

Porque a minha vida é como o livro manso
Que resta na mesa de cabeceira.

Leio(-me) devagar .

Invento nos livros uma mitologia
Nova e minha.

Não tenho mais que te diga. Tu procuras tanto de mim.

De súbito peço: esgota-me.
Levanta o livro da mesa e lê-me vorazmente.

Que saudades do verão que volta com a tua voz
Enquanto tu enches o quarto de mim,
Palavras que buscas nos livros.

Traz de volta o sol e o encanto de ser feliz sem roupa
Enquanto deixamos o corpo adormecer
À beira-mar.

É à beira-mar que cultivamos nossa terra de sonhos,
Desejos que escreves na areia
E que o mar apaga.

Aguardo.
As horas rasgam os dias
Sem sequer pensar em nós.

Só um mês,
Mais uns dias.
Agora a primavera.
Depois o verão.

Enquanto,

Anseio...

sábado, janeiro 27, 2007

A escrita

"O alívio que deriva do género de trabalho que produzo com o cérebro e o coração reside nisto: só no silêncio activo do pintor ou do escritor é que a realidade pode ser reelaborada e revelada no seu aspecto verdadeiramente significativo."

Lawrence Durrel in O Quarteto de Alexandria I. Justine.

Em dias que guardamos para nós

Hoje abandonei-me do mundo. Vim viver um bocado em mim. Deixei-me ficar na turbulência deliciosa e mansa de quem acorda e adormece entre as primeiras horas de sol. Dormi sem ninguém à minha espera e acordei quando esperava por mim.

Li, li muito, deixei-me ler. Perdi horas de livro na mão, enquanto subitamente andava lá por Alexandria entre uma Grécia que já não existe e uma cidade que só nós fazemos existir. Perdi-me por lá e demorei a voltar.

Voltei para escrever. Fui buscar palavras às salas da casa que ainda deixei na penumbra dos estores meio corridos. Achei-as em breves raios de luz que furavam caminho. Sentei-me para escrever cartas e escrever sobre escrever. Que encanto pensar em nós num dia que para nós guardámos e saber como gostamos do que fazemos.

Ouvia. Algures pela casa, nos caminhos do corredor, chegavam-me as vozes das divas que de manso me cantavam Vinícius. Deixei-me embebedar de leve numa dança que ainda não conheço, mas que o meu corpo soube bem desenhar.

Com a tarde regresso. É preciso espreitar o mundo pela janela e deixar a luz correr pelos estores agora abertos. Lá fora o dia, a vida- encontro-me.

Enquanto me olhas nas horas da escrita

Das palavras que toldo, que temo
Transformo.

Enquanto te digo encanto,
Te danço, te arrasto, te rasgo.

Enleias meu labor.

Teus cabelos,
Cavalos vagueando em torno do meu pescoço.

Meus olhos entornam vagas de amor
Que a ti tornam.

Desenho,
Descrevo,
Teu traço,
Te escrevo.