quinta-feira, setembro 27, 2007

A varanda e o seu palácio

Au jeune comte du Petit-palais, avec toute m'amitié.

-Este é o Pedro, avó.
-Muito prazer. Como está?
Há-de durar mais um tempo o constrangimento. Ele não é trémulo, mas treme. A Condessa resta inalterada. Está estática. Permanece. Ele também, mas bem gostava de não o fazer. A Condessa falhou com a sua parte do ensaio. Não houve nenhuma das suas mãos que se tenha levantado. A direita sobre a esquerda. Ambas sobre o colo. Há-de durar mais um tempo o constrangimento até que perceba que o ensaio acabou. Ainda não é hoje que ele lhe alcançará a mão.

Estão frente a frente. Francisco mais ao lado. Manso, o tio Afonso trinca o seu cachimbo maciço, esparramado na poltrona. A tia está lá por cima a atarantar a criada (a que restou) com o final das mudanças. Queixa-se do corpo fraco e sobrecarrega a criada com as dores do corpo, mas mais com as dores da alma. É possível que António esteja no quarto. Estão frente a frente, ele e a Condessa. A Condessa é mais imponente do que bonita, como convém. É imensa. A Condessa está por toda a casa, desde as lojas que cedo não serão suas às escadas e aos corredores por onde corre o sangue dos dias do seu palácio. Ele está apenas onde está. É mais alto do que ela, mas agora é quase corpuscular. Nessa noite a Condessa só lhe voltará a dedicar as palavras de despedida. Não haverá mais palavras por agora. Isso basta para que ele saiba da sua inexistência nesta casa.

-Nós vamos para o quarto.
Finalmente acabou. O corpo respira de alívio. A Condessa deu-lhe as costas. Eles já vão na porta. A Condessa murmurou alguma coisa em francês ao tio Afonso. Ele não consegue perceber o que foi, mais pela distância que pelo seu mau francês. Não há-de saber como a Condessa confessava ao filho que lhe tinha achado bom ar. Há pouco de belo na Condessa (ela não o ignora). Tão pouco teve um marido bonito e fez filhos em vez de beldades. A beleza não é senão um prazer rechonchudo de fim de tarde para as burguesinhas do Príncipe Real (que agora habitam em Telheiras). Francisco, o neto, é mais bonito do que Pedro. Mas Pedro tem bom ar. Isso evita-o à vulgaridade. A Condessa há-de lembrar-se disso.

Podiam ter ido pelo corredor, mas foram antes pelas duas salas que levam ao quarto de Francisco. O quarto de jantar guarda a imagem antiga dum fresco que cobriu as janelas antes da cal descascar-se. Agora nada disfarça as rachas. O vazio da antecâmara encerra o segredo das partilhas numa família que já guarda pouco que dividir.

Chegam ao quarto. Arejado, honesto, simples. Os livros foram uma desculpa, as mãos não. Encontram-se na excitação do silêncio. A Condessa continua a estar por toda a casa. Há que guardar o barulho para outros dias. É fim de tarde. Lá fora Lisboa. As bocas. Dos turistas que devoram vorazmente um último pedaço de pão. A respiração lenta. Dos cães que passeiam pelas esquinas da cidade. As roupas caídas. Nas montras das lojas que fecham. Os corpos deitados. De dois namorados que se encontram num banco do Camões. O grito abafado. Do estertor do eléctrico acabado pelos barulhos das ruas. Francisco salta da cama, meio nu como uma estátua. Tem um ar meio provincial de fidalgo minhoto. Tem um embrulho nas mãos. Dá-o. Pedro recebe-o. São promessas de coisas que podem existir. Francisco lê-lhe entre os beiços "Amo-te". É mentira. Ainda não é verdade. Talvez seja. Nenhum dos dois sabe. Que importa? É verdade desde que ele o disse e enquanto o outro o acreditar. O telemóvel. Uma mensagem para o António (estará no quarto?). "Fumamos na varanda?(está cá o Pedro)". O primo aparece logo. Francisco abre a vidraça. Lá fora o século XXI. Lá fora Lisboa. A varanda é curta demais para os três, mas encaixam-se. António está tão esmagado como constrangido entre os dois. Está a aprender. São tão etéreos como o fumo. Os fins de tarde de Lisboa. Talvez Francisco e Pedro. Encontram-se pelo canto que cada um ocupa na varanda. Existem além de António. Só um para o outro. Conversam. Conversam sempre. António não pode perceber. Não porque seja um segredo. Porque é um segredo apenas deles.

Pedro atravessa o corredor. Já não treme. A Condessa está onde a deixou. Não a tivesse visto falar com o filho diria que tinha ficado sempre ali. Afonso não está. Talvez com a mulher em qualquer lado do sótão.
-Até amanhã. Muito gosto.
-Boa noite. O prazer foi meu.
Sorri. Afinal ele tem bom ar. A Condessa há-de lembrar-se disso. Mas ainda não haverá mãos levantadas, pelo menos por hoje. Francisco existe meio alheio à cena. Pedro faz o seu papel que aprendeu depressa. Sem ensaios desta vez. Devolve o sorriso. Saem.
Cá em baixo na porta hão-de demorar-se até ao estertor abafado do próximo eléctrico. Lá fora Lisboa. Talvez a Condessa se lembre disso.

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