quarta-feira, abril 16, 2008

Palavras de coisas do Oriente ou Anseios por cidades tão distantes

Onde os horizontes de Edo e Kioto?
Perdi-os nos olhos fechados do teu sono.

Oh, diz-me agora
E outra vez de Edo e Kioto para que os sonhe
Como em ti são lembrados.

Poema das tardes dos pássaros

E se houvesse pássaros?
Até onde voariam as tardes, até onde se alongariam as horas?

E se houvesse pássaros em vez de crepúsculos?
Que triste seria o para sempre.

segunda-feira, abril 14, 2008

Varandas sobre o Tejo ou Canto crespuscular da cidade numa casa de Alfama

Duma varanda donde se veja o Tejo
Numa tarde

Duma tarde em que se embale em palavras
Numa varanda

Agora Lisboa, ainda de dia
Depois logo à noite, quando for noite

Mas ainda palavras
Como ruas
Pelas ruas
Palavras de dizer coisas nuas

como uma

Varanda donde numa tarde
Se veja o Tejo

Evocando a Lagoa de Óbidos

Digo-te assim

Prazer e mar


De teu corpo-lagoa

Riacho, atraso


Perdido de tempo

De espaços e de palavras que digam


Talvez, fruto, pedra, planta,

Horas


De quem se guarda em devaneios junto da água

Num qualquer dia primeiro de Primavera

sexta-feira, abril 04, 2008

Palavra de Viagem

Palavra de Viagem,

De coisa passada, de coisa vivida,

De cheiro que dorme e que nasce na gente

A cada reviver.


Palavra de Viagem

É palavra que desperta,

Que alegra, que chama,

E que anda com a gente pelas ruas da Cidade.


Palavra de Viagem,

Que vai onde não vou

E volta de coisas que têm sempre voltar.

Poema da Viagem

Sabes versos antigos?

Entãos diz-mos em mansidão agora que a Cidade se prepara para dormir.

Tu buscas os cheiros da cidade. Cada pessoa tem um cheiro e cada pessoa é uma cidade.

Quantas pessoas perfazem a tua Cidade?

Agora que a noite caí sobre nós diz-me depressa, mas de manso, quantas palavras são precisas para que tu olhes e digas- Cidade.

terça-feira, abril 01, 2008

Experimentação para "Conto de Gustavo-IV"

Revirou os olhos. Que havia de dizer? Era a quarta vez que a Ana perguntava se ele não o achava maravilhoso. Não que se referisse ao aspecto, pelo menos em princípio, mas à eloquência do homem. Porque para Gustavo era isso que ele era: um eloquente.

Lá estava, gordo e transpirado, com uma grande linha quase nas fraldas da camisa a marcar o suor. Tinha um lencinho de bolso que tirava mais vezes do que se desejava e limpava a testa molhada arrastando as mãos pequenas e sapudas de um lado para o outro como se estivesse a puxar lustro. Estava a falar há quase quinze minutos e ainda não dissera nada que valesse a pena ouvir. Vagamente percebia-se que falava de Tácito. Ia alternando o seu discurso barroco e bacoco ora com evidências óbvias ("A noite em Tácito é fundamental"), ora em emaranhados vazios ("Há que entender a questão não só do ponto de vista histórico e filosófico, como igualmente perante a necessidade de ser literário"). Era, enfim, um eloquente. Um homem de muita sabedura, mas muito pouco saber. Lá que lera Tácito e o seu latinório nem Gustavo punha em causa. Lá que ele não dizia nada que na Sorbonne ou em Oxford ou Princeton já antes não se tivesse dito era bem verdade.

Ainda assim, a Ana continuava a espetar-lhe o dedo no ombro de forma cada vez mais furiosa conforme a sua excitação aumentava. E eram gritinhos de "Fabuloso!" ou "Muito bom!" a cada nova balela que o gordo empapado em suor soltava.

O Artur gostava de dizer que a Ana era uma freira com falta de homem. As coisas eram, contudo, mais complexas. A Ana era, nas palavras de Gustavo, uma vítima do sistema. Licenciada em Estudos Clássicos com média de 18,7 valores passara o curso agarrada às saias das professoras que a passeavam e elogiavam como uma mãe vitoriana quando o filho diz a primeira palavra ou aprende a primeira habilidade. A Ana era esperta, tinha boa cabeça e boas ideias. Tinha era a cabeça muito enfiada nos livros e era pouco livre em relação a eles. E das poucas vezes que voava, lá iam as boas professoras, quais fadas madrinhas, impedi-la de voos tão altos que ferissem a menina. E assim a Ana foi-se adaptando àquela maneira académica de estar, comezinha e banal, do pequeno palanque e do pequeno poder. Mestrou-se com uma tese sobre Catulo, tão gémea da tese da sua orientadora, que não trazia nada de novo. Depois, com os trabalhos de doutoramento e a docência universitária trazida pelo mestrado a Ana instalara-se. Agora, às portas de defender a tese, era um produto acabado do sistema: servil e pouco ambiciosa, bastando-se nos seus conhecimentos escolásticos que ia buscar ao saber sacrossanto dos livros que a Sorbonne regorgitara nos anos setenta. Mas não era má miúda. Os alunos adoravam-na e ela adorava-os e a verdade era que os protegidos da Ana eram por norma mesmo muito bons, como as grandes professoras de ballet que, incapazes de terem elas mesmas uma grande carreira, têm, ainda assim, olho para aqueles a possam vir a ter. E depois era divertida e no meio daqueles salamaleques todos da faculdade era bem desempoeirada. Claro que tantas vezes era demasiao infantil, dessas crianças que as bibliotecas conservam para sempre crianças por falta de ver o mundo. O Artur bufava cada vez que a sabia lá em casa para jantar. Era certo que ia ter uma noite repleta de todos os pormenores mais íntimos da faculdade e dos meandros dos seus departamentos, desde a última tese ao último escândalo. Mas Gustavo gostava dela e o sentimento era bastante mútuo.

"Brilhante, brilhante. Muito, muito bom!", gritava a Ana enquanto batia as mãos uma contra a outra. O presidente da mesa começou nos agradecimentos e acabou nas perguntas. Gustavo não ia aguentar mais nada daquele homem. Enquanto arrumava as coisas na pasta largou um beijinho no ar à Ana e, o mais silenciosamente possível, esgueirou-se pela porta direita do Anfiteatro III. Desceu as escadas num repente e atravessou o longo corredor em passo largo. Pegou no telemóvel. 13h28. Aquele papalvo do coimbrão eloquente tinha-lhes comido vinte minutos a mais e ainda estava lá para cima a despejar idiotices. Virou no corredor do Departamento de História ainda indeciso entre ser apanhado no corredor da secretaria pela Dona Ifigénia ou no átrio central por um aluno ou colega qualquer. Decidiu-se pelo átrio e atravessou-o a toda a pressa oferencendo aos alunos que o cumprimentavam sorrisos distantes e pouco convidativos. Desceu os degraus da porta principal da faculdade e olhou para trás. Lá estava Letras, igual há dez anos atrás, senão um pouco mais podre e mais suja pelos cantos.

No telemóvel tocou uma mensagem. Era o Artur "Demoras?" O Artur não tinha um doutoramento, nunca lera Tácito e de Latim sabia dizer E pluribus unum e Pisces conam furant. Mas dava-lhe a certeza de uma vida além de todas estas coisas de que ele gostava. O Artur era, em grande medida, o que o impedia de ser como a Ana. E ao menos o Artur suava por razões melhores que o jagunço de Coimbra.