segunda-feira, junho 30, 2008

Anseio

Oh morre, morre! Para que eu possa pensar em ti como se tivesses sido meu!

(Mas vive, vive. Para que possa ver-te, e vendo-te desejar que morras e dizer-te nunca dizendo as palavras que te guardo costuradas na minha boca.)

Há um canto na quinta

Na quinta há um canto onde gosto de jogar à bola. Só gosto de jogar à bola hoje! É que tu odeias jogar à bola e por inclinação eu amo tudo o que tu odeias (como mais posso fugir de ti?).

Sempre sozinho, porque quero estar sozinho, embora haja as estátuas do jardim nesse canto da quinta (já quase todas sem cabeça).

Chuto a bola com força e a terra salta aos meus olhos enquanto cavo com o pé um buraco involuntário no chão. Há folhas de relva que dançam com o sol aos meus olhos. Esperei sempre por isto. Agora posso lembrar-me dos teus olhos.

Velhas noites em lua nova

Em noite de espiga podre
Meu coração te assa e te renega
Em entranhas voltadas para fora.

E cada palavra é como um ódio
Demasiado grande
Para que em verdade te odeie.

Como a noite, como os passos de Hécate,
Como a dança cruel das Harpias
Te esperem as Parcas em cada encruzilhada que cruzes.

Que os seus pássaros te furem os olhos
E que a sua ira te rasgue roupa e carne
Como se fora minha ira.

Apenas para que te segure
À luz do primeiro sol
E tomando-te em meus braços
Cure teu corpo das minhas feridas
Enquanto a tua alma perdida
Se joga à minha, em jogo de metal fundido,
E nela se funde sem retorno que nos salve.

domingo, junho 22, 2008

A criança e o estendal

Lá dentro a criança ajuda a mãe. As suas mãos pequenas e espertas afundam-se na máquina de lavar e vão tirando peça por peça com uma gentileza ensaiada. A criança olha para a mãe, uma mulher imensa, e passa-lhe cada roupa como se tudo se passasse num ritual muito sério e importante onde a ela lhe é confiado o primeiro dos papéis. A mãe, presa do desagrado das tarefas do quotidiano, olha-a com carinho. Recebe cada peça de roupa e pendura-a no estendal estendido ao longo da marquise da cozinha. A criança não tem pressa como a mãe. Diverte-se neste jogo de brincar às pessoas crescidas. Encanta-se de ser adulta pelos momentos em que passa, peça por peça, a roupa para que a sua mãe a ponha a estender.

terça-feira, junho 10, 2008

Estória breve do gato que queria um colo

Ao Pipoca.

O gato, demasiado gordo e decididamente anafado, espia pelos olhos bem abertos cada colo. Tem as patas retraídas e cada pessoa tem as pernas traçadas (são três pessoas) o que fecha para o gato cada colo. Mas o gato, gordo e anafado, é demasiado esperto para se deixar estar. Pelos olhos bem abertos seduz, uma a uma, cada uma das três pessoas. Namora um colo fofinho onde possa enroscar o seu casaco de peles XXL.

Perante um par de pernas descruzadas ele não vem directo, mas direito e manso, ainda dengoso, ainda gingão, e como se cada colo fosse um canto natural de se estar, lá ele se enrosca, demasiado gordo, decididamente anafado e demasiado esperto.

A barriga faz ron-ron em cima das nossas pernas e as almofadas de Arraiolos estão cheias do seu pêlo. É porque afinal a casa pertence-lhe!

Emigração Holandesa

Porque há-de desligar a aparelhagem cada vez que eu ouço a Bethânia? Irra, que qualquer dia emigro para a Holanda! (Enquanto, os gatos dão algumas voltas pela coffetable da sala maior).

sexta-feira, junho 06, 2008

Digo as casas de Babilónia

Em Babilónia também há casas onde te possas fazer crescer.

A Tribuna do Teatro

Era quase indecente, aquele olhar perturbador em provocação. Como se do palco visse apenas a tribuna onde ele se sentava. E o corpo rodava em rodopios como se fora só para ele que ele lá estava. Cada vez mais belo, cada vez mais belo, cada vez mais belo.

E perdeu a cabeça: levantou-se da tribuna e saiu anseando pelo toque do seu corpo cada vez mais próximo, cada vez mais próximo, cada vez mais próximo.