Não tenho encontrado tempo para escrever, mas apetece-me muito. Talvez eu não saiba investir tempo. Escrever é como ser artesão e dedilhar o tempo com as mãos. Eu com certeza perdi essa noção vagarosa do tempo, perdido entre as coisas que no meu tempo levam as pessoas a perderem-se. Vamos chamar-lhe futilidades. Eu prefiro ilusões breves, mas talvez sejam na verdade futilidades.
A cidade traz-me muitas vezes o que escrever. Se o Tejo não se esgota de água também não me esgota a inspiração. Vão nascendo dentro de mim. Muitos morrem. Aprendi tarde, mas bem, que escrever é ser Deus, logo é um acto blasfémico. Não devíamos poder escrever, a escrita aproxima-nos da criação e logo de Deus. E Deus não deve estar próximo, mas presente, ainda que de esguelha, naquilo que escrevemos.
Esta aura de criação e de criacionismo que envolve a escrita seduz-me como uma bebedeira de licor de chocolate ou como um Domingo de sol passado na Pena. Viajo várias vezes ao passado para criar. Algumas ao passado de mim, muitas ao passado dos outros. Os outros são sempre mais interessantes porque os seus segredos são confessáveis. Os nossos nunca!
Andam por aqui algumas personagens. Felizmente são poucas e dão-me o trabalho que me chegue. Tenho sobre elas uma visão completamente paternalista e isso já não me incomoda. Não são minhas: são eu. São parte intrínseca de mim, foi de mim que as arranquei. (Ainda que tudo isto surja como um cliché, os clichés também se sentem). Ando é com falta de vestidos no armário para elas. Têm andado nuas e ainda assim parece-me que passam bem. Lamento é quando elas ainda são disformes ou quase nada. Por vezes surje serem assim. Elas pedem-me muitas coisas. Nem sempre acedo.
Estou constantemente fascinado comigo próprio quando crio ou penso criar. Descobri-me. É um processo pouco modesto e quase sempre arrogante. Algo em contrário foge à verdade. Ao real foge-se sempre quando se cria. Mesmo para depois retornar. Há saídas nos movimentos fenemenológicos e a composição das letras, que constroem a composição das personagens, é talvez a maior das divagações.
Mas para tudo é preciso tempo. É uma certeza bíblica que o Eclesiastes nos garante. Quem me dera saber tecê-lo. Talvez me faltem Ulisses que me ofereçam tempo mais do que amor. Lá fora, felizmente, ainda não deixei de me deslumbrar. Lá fora. Quase tudo é lá fora. Mesmo quando é cá dentro. Fenemenologias da escrita. Hei-de ser artesão. Mais tarde, quando houver tempo. Por agora nascem pelas ruas, sedes das igrejas onde Deus sou eu.
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