Espera pelo fim da tarde, há uma magia na luz que traz. Guarda os olhos bem abertos para a veres.
Lisboa dir-te-á um poema, um consolo, ao ouvido, de mansinho. E há uma sala fresca na elegância dos apartamentos do Saldanha. Lá dentro a tarde escorre pelas paredes brancas da casa. O poema constrói-se em cada divisão: da casa, do corpo, de ti. Uma música chega-nos e o cheiro intenso da cozinha impregna o ar. É o cheiro da vida que chega do pateo de trás. A vida passa-se aí, nos pequenos recantos dos prédios de Lisboa. O cheiro traz-te leves recordações de infância como os acordes de um perfume. A vida é um jogo de peças modeladas pouco a pouco.
Com o fim da tarde tu esculpes a memória até daquilo que ainda não aconteceu. Perdes-te algures nos corredores brancos da casa. Ligeiramente à deriva. Tudo te leva à porta, à rua, à vida. Procura uma esquina do Chiado que te agrade. Saberás dizer que restos aí sobram da vida das pessoas? Para e constrói. Olha atento a vida que desfila à tua frente como uma tela de museu. Há seiva nas coisas, nas pessoas. Nada é estático. Tudo é estético. A vida consumida na elegância de se viver.
Vai. Algures além dum arco Lisboa oferece-se a quem a sabe ver. Algures alguém há-de morrer na cidade. São ainda as peças do teu jogo que se resolve pouco a pouco. Agora deixa-te guiar pelas palavras, ruas secretas, escondidas, oferecendo a possibilidade de sol. Afinal, tu andas contra o fim da tarde. O sol ameaça por-se. O jogo resta por terminar. Tu não descansas. Os olhos continuam deitados sobre as coisas que te envolvem. Buscas a estética perdida das coisas. Crias elos em cadeias que começam a fazer sentido dentro de ti. Quase tudo é natural, como o espanto das coisas sobre elas mesmas.
Lentamente a fadiga acorda-te: as pessoas não param de existir. Quantas peças já recolheste? Agora sabes mais da vida das gentes do que elas mesmas. Tens algo que elas não têm: a atenção por sobre o que passa. A estrada oferece-se longa. Mas é preciso continuar. Entregue às sombras que agora tomam os bocados de todos os recantos não te entregues. Continua. Hás-de chegar à porta da casa. Lá dentro a noite instalou-se. O poema continua a dizer-se ao longo das paredes brancas, é Lisboa que se canta. Senta-te. Espera de mansinho que as palavras que agora moram em ti se venham dizer.
1 comentário:
burro
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