sexta-feira, dezembro 26, 2008

Experimentação para Conto de Gustavo-IV ou Conversa sobre Tejo e Tágides

Debruçado sobre o varandim esvoaçou a mão para afastar o fumo do cigarro.

- Que mariquices! Agora nem na minha varanda posso fumar, perguntou Sara brincando enquanto apagava o cigarro.
- Vês ao fundo? É preciso que nos curvemos um pouco e que empoleiremos aqui a barriga para ver o Tejo. Dói e custa manter este equilíbrio, mas quem pensa nisso assim que vê o rio? O Tejo é tão azul. Hoje como em Agosto. Tem princípio mas é tolo dizer que tem fim. Onde acabará o Tejo?
- Já me fazia falta essa tua maneira de falar. Diz-me um poema, dizes?
- Ao longe é rio e ele vai até ao país das fadas. Porque não podemos lá ir nós também? Vês quantas perguntas faço hoje? Hoje é noite de construir poemas e dir-te-ei quantos quiseres. Porque moras em Alfama e debruçado da tua janela vejo o rio. Isso deixa-me feliz. E deixa-me feliz partilhá-lo contigo porque sabes o que é ter uma janela para o Tejo. Nós temos olhos de ver o país das fadas, não temos Sara?

Sara passou a mão levemente pelo cabelo de Gustavo enquanto lhe dava um beijo no rosto.

- Temos, porque tu e eu sabemos construir palavras de ver coisas d'alma.

A rapariga tinha o braço esticado, o corpo flectido e apoiado no varandim.

- Vês lá longe, aquela luz? Porque não dizer que aí resta o país da fadas?

domingo, dezembro 14, 2008

Estórias de Anícios e Petrónios do antigamente ou Um dia de mudar a vida das coisas antigas

A mulher fala-me. Não é muito bonita, mas é de certa forma elegante. Sorri e acena muito em concordância. Gosta de mim e eu gosto dela como estas coisas se dão entre académicos: gostamos das ideias um do outro.

Ao fundo Anícia Demétrias, ainda com catorze anos, empuleira-se no vão da escada e deixa cair pelo grande fosso a carta de São Jerónimo. A avó, matrona grave, olha-a em repreensão. A criança quase freira sorri mostrando por trás do véu da castidade uma beleza louvável no mundo dos vivos. Sexto Cláudio, espreita-me do alto, soberano, enquanto Hermoginiano acompanha o homem que vem confirmar que é real tudo aquilo que se passa.

A mulher e o homem falam e combinam coisas e acertam pormenores, meio alheios à minha existência, enquanto a decidem. Não podem ver a agradável corte que os cerca. Anícios e Petrónios do antigamente, ainda meio apagados, ainda meio etéreos. Hermoginiano já está de novo ao lado dos pais, espreitando-me do cimo das escadas. Vieram todos e espreitam com o seu ar desconfiado de romanos o rapaz que lhes faz promessas. Só Demétrias não está com eles, ainda empoleirada no vão da escada. Escorrega por ele e desce com graça os últimos degraus. De súbito, a sua mão no meu ombro. Pouco antes de acordar olho-os a todos e ouço dizê-la ao meu ouvido "Agora, dá-nos voz!"

terça-feira, dezembro 09, 2008

Estória em tom menor

Tem o beiço caído e o corpo jogado no cadeirão frente à janela. Da cidade e do Tejo algum enjoo.

A mulher abeira-se dele.

"Dói-me a cabeça como a noite."

Lá fora há noite e escura e densa.

Rosário, pensa: como pode doer a cabeça como a noite? Onde estão as palavras que faltam?

sexta-feira, novembro 21, 2008

Poema do fim da tarde

Para Stijn Luyten.

Pois tu dirás pedra
Para que eu diga mar.

A vida é um dia de sol
Quando jogamos no degrau da
Entrada
Este secreto jogo
De silêncios.

Tua advinha de palavras d'alma
É cidade
Onde diga
Luz, casa e amigo.

sexta-feira, novembro 14, 2008

Uma noite numa livraria de Lisboa

Um dia mais ingénuo, como em ramos de árvore.

É de noite e alguém fala numa livraria de Lisboa.

Naufrago agora nas letras e de súbito sou derrotado pelo livro.

Vivo em extâse!

Coisas de dizer

Mais uma vez repito:
Entre nós os dois há o silêncio!

(Os teus olhos rodopiam ferverosamente irritados)

Há o teu sorriso quando me vês
E o teu abraço frente ao rio
E um sim constante em todas as horas
E uma coisa rebrilhante de teatro de ser coisa quotidiana.

Nem pedra, nem fruto, nem arca,
Ou estória ou dia ou parábola.

Ouves agora as palavras no nosso silêncio?

Rua da cidade ou Evocação de Sara

Dizias alma
Como se cada palavra fosse tua para dar.

Tu eras uma rua estreita e sem sentido certo.
Eras Lisboa sem Tejo, prédio arruinado.
E eras homem e mulher de pedir esmola e coisas do cair da tarde na cidade.

E amei-te tanto que em cada palavra
Calcetei nova pedra
E foste rua nova frente ao rio.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Tarde erotisante na sala do piano ou Viagem dos antigos

Na sala do piano meu corpo aguarda por ser tocado em teclas frias.
Teclas brancas ou negras, mas frias.
De corpo roçagante no rosa do sofá, de alma perdida na viagem continua de cada moldura.

quinta-feira, novembro 06, 2008

Um brinde ao Presidente B.H. Obama

Ontem fez sol de manhã. E eu sentei-me na minha sala. E ouvi todas as músicas, os baladeiros de Abril. E li todos os poetas. E abri uma garrafa de Madeira. E o Ary, o Gedeão e tantos outros vieram beber comigo. E deixei-me mergulhar em tudo isto. Sentado na minha sala embebedei-me de música e poesia e livros e filmes.

Ontem foi um dia de acreditar. Hoje talvez já não, mas ontem sim. O dia de ontem é nosso para sempre. O dia em que o mundou soube voltar a acreditar e em que a democracia falou alto até às fronteiras de tudo. Ontem sonhei, bêbedo do mundo, e acreditei em tudo o que é bom acreditar.

Não sei o que será hoje. Mas sei o que foi ontem. E ontem soubémos e sonhámos que o sonho comanda a vida. E que este homem sonhou para que o mundo pulasse e avançasse como bola colorida por entre as mãos duma criança.

Soul Mates

Para Daniela Varela, ela há-de saber porquê.

Fico aqui, à beira de ti. Namoro docemente a tua voz. Por onde vou ou por onde ando, tu sabes. Já olhaste para dentro de mim.

A tua música é gémea da minha alma. Às vezes ouço-te e gostava que o mundo se vestisse de nós.

Não desisti. Lentamente murmuro às águas "Oh, quero ver, quero mais e sonho, depois do rio o que é que vem?"

Tenho uma infância como tu e não a esqueço. Moldo-me e olhamo-nos dentro um do outro.

A tua alma é gémea da minha!


http://www.myspace.com/flordelisbanda

quarta-feira, outubro 29, 2008

Desabafo ou Palavras diárias sem linha mas com fio

A música em flor-de-lis. A falta do Tejo. O teu corpo que não me pertence. Petrónios e Anícios de há tantos tempos. Escrever incessantemente. Voltar a escrever depois.

Não me ligues sempre se faz favor. A mim também me dói e perco tempo para te consolar. Tomar conta de crianças adultas, tormento. Ser genial, ser mais genial, ainda ser genial. A falta do Tejo. Eu sem Lisboa.

Montras, lojas, roupas. Desejos. Pessoas, jantares, almoços, palavras. Ocupem-me que bem preciso!

E tardes e computadores e coisas para escrever. Fadiga. E tu ligas. E ele também liga. E falam um do outro. E eu que penso em mim e no outro que não é o mesmo outro.

Eu arvorado em Prima-Donna. Sim, é mesmo tudo sobre mim. O blogue é meu!

Eu arvorado em Prima-Donna. Milhares de episódios de Anatomia de Grey. Milhares de sexo platónico. Alguma masturbação. Pornografia.

Cansaço. Grande cansaço.

E as noites, noites sempre de noite, sempre escuras enquanto é noite e de noite. Amanhã. Palavra e desejo constante. Vou esquecer tudo e construir amanhãs como num filme qualquer.

Mas por onde é que eu ando!?

terça-feira, outubro 28, 2008

Estória das duas cidades com rio ou Conversa entre coisas que nos rodeiam

Para Ana Garcia e Sara Borga, porque me inspiram .

A. senta-se numa cadeira perto do lago. A. descobriu agora a vida em Lisboa e isso entusiasma-a. Este é um prazer conquistado: A. senta-se numa cadeira do Relógio d'Água com uma fatia de bolo. O jardim Amália Rodrigues é agora um dos seus sítios preferidos. Há gente e vida assim como ela queria que houvesse. As pessoas têm em geral um ar feliz e o jardim é quase sempre verde. Outubro é agora escaldante nas suas tardes. E isso agrada-a. Ver as coisas acontecerem fá-la sentir que faz parte delas. A. está sentada na sua cadeira mas viaja em torno de si e dos outros.

Enquanto, S. lembra-se de Lisboa e do jardim Amália Rodrigues dos tempos em que morava no Bairro Azul. Era mais nova, mas já tinha os olhos abertos. A mãe levava-a a passear pelo corredor verde. Uma bicicleta ocasional parece-lhe agora ridículo, como antes lhe parecia fantástico. Em Gent, frente ao rio, são várias as bicicletas, todas ocasionais, porque para todas as ocasiões. Outubro tem agora tardes enregelantes enquanto S. se habitua aos rigores do Norte. Os gestos são uma chamada de atenção constante e S. deixa-se levar. Desenha incessantemente para captar a vida da pequena cidade à sua volta. Porque nas tardes de Outubro S. tenta entender a vida da cidade enquanto se senta numa café junto ao rio.

A. e S. têm normalmente vidas distantes. Partilharam uma vez algumas palavras e uma peça de teatro, uma tarde no São Luiz. A. e S. amam a vida da cidade e têm sede. A sede fá-las procurar novas nascentes. No metro, ou a caminho da faculdade numa bicicleta. Na aula de economia financeira ou frente a uma tela. Ao som dum cavaquinho ou ao som de qualquer que seja o instrumento típico dos belgas. A. e S. dão saudades porque vão fazendo a vida loge de mim, mas sobretudo guardam em mim esperanças de outras sedes.

sexta-feira, outubro 24, 2008

Passeio do pequeno conde ou Viagem em redor de outros

Esta gente aqui sentada é sempre algo estranha. O mundo passa veloz lá fora, tão mais veloz quanto tudo anda mais rápido. E passam as luzes e vagueamos no escuro a 200km/h até que se ouve uma claro som, quase sempre sobreposto aos outros, que anuncia: "próxima paragem...".

Esta gente aqui sentada não tem pressa, mesmo quando tem. Há quem bata um pé nervoso e vá dando estalidos com a língua. Outros bufam constantemente. Alguém há-de ter a culpa por chegarem atrasados onde hão-de chegar. Alguém que não eles. Todos nós os outros. Mas o tempo não passa, só o nervosismo deles aumenta. O comboio continua estagnado enquanto viaja à velocidade da escuridão.

O pequeno conde senta-se alheado e distante numa cadeira a um canto. Um homem, à sua frente, tira da mala uma sanduíche. Trinca-a em grandes nacos que mastiga com vontade. Ver alguém abrir uma mala é sempre uma surpresa, uma interrogação e um verdadeiro acto de coscuvilhice, porque é simplesmente impossível resistir à curiosidade. É assim como um Kinder Surpresa, três desejos num só, mas numa versão adulta, melhorada e que não faz mal aos dentes embora não comporte tanto leite para beneficiar os ossos. É como dizia, resistir a olhar é quase impossível. E o momento melhor é aquele antes, em que estabelecemos um jogo de adivinhas connsoco mesmos. O que será? Ah, uma sanduíche, nota com ar aborrecido. O pequeno conde ouve muitas vezes a voz da mãe na cabeça. Que não se deve olhar, nem espreitar, nem coscuvilhar. Mas a mãe não anda por aqui todos os dias e sabe pouco desta tentação.

Mas há mais pessoas neste micro-universo que se reorganiza a cada nova paragem. São mulheres de encantos fanados e roupas justas. São crianças aspersoras que balançam o guarda-chuva molhado dum lado para o outro. São pais que berram e pais que se deixam estar enquanto a filha mama furiosamente a ponta do casaco. São novos executivos que berram muito alto ao telémovel. "Sim, estou no metro. Não, não, claro que posso falar! Diga, diga..." e aumentam a frequência em decibéis impossíveis para se fazerem ouvir. São jovens suburbanos que chegam do colégio e entrando no Rato só querem ouvir a senhora do anúncio anunciar que a próxima paragem é Odivelas.

Onde quer que pare a vida desta gente, ou Olaias ou Areeiro, ela passa e pára no Metro. E há quem não perceba e quem não pense nisso. Até o pequeno conde lhe dedica pouco tempo. Mas há perguntas que ficam. Quantas vezes ao longo da vida teremos visto a mesma pessoa no comboio sem nos darmos conta?

E há vezes, embora houvesse mais antigamente, em que o Metro pára no túnel escuro. É como se a escuridão forçada acordasse as gentes. De súbito, e por não mais tempo que isso, todos sabem do momento comum que vivem e do micro-kosmos onde se encontram. Agora há amigos dum minuto a quem dizer "E eu que estava cheia de pressa!", ou "Isto é sempre o mesmo!". Até o pequeno conde, entusiasmado, se vira para a senhora velha e gorda ao seu lado e diz "Que aborrecido, não é? Isto do Metro parar...". E a senhora torce o nariz, mas consciente de que não terá mais amigos senão o pequeno conde durante o tempo de paragem do Metro, ri, concorda acenando com a cabeça e continua a conversa.

E o metro voltou a andar. A seguir é a vez do pequeno conde sair. Não olha para trás, mal se despediu da senhora velha e gorda, não voltará a pensar nela. O pequeno conde poucas vezes voltará a pensar em todas estas coisas no correr deste e doutros dias. Mas é certo que a vida do pequeno conde há-de voltar a passar pelo metro e lá passando há-de parar nesse tempo infinito entre uma estação e outra em que se formam micro-kosmos.

quinta-feira, outubro 23, 2008

Cliché ou Noite em desabafo

Dói como uma dor estranha. Agora sei tudo o que tinha medo de saber e ainda tenho. E não estou livre, mas ainda preso. Porque ele está dentro de mim. Porqe ele é ao mesmo tempo a maior das alegrias e a mais profunda das dores. E não há como arrancá-lo porque ele e o que sinto por ele são hoje um só!


E dói e dói e dói sem nunca parar de doer, mesmo quando é bom. E não há mais nada lá fora, só ele e as suas palavras cheias de vento e de coisa nenhuma. Agora restam-me promessas que só eu entendo e esperanças que só eu tenho. E agora há dias no meu futuro que não vão nunca existir.


São dias de dizer a pele dele sobre a minha e o peito dele encostado ao meu. Mas sempre sendo dois e nunca um. Sempre perto mas vivendo a maior das distâncias, sempre desejando sem nunca saciar o desejo. E ele morre aos poucos, comido pela dúvida. E eu morro aos poucos vencido pelo cansaço de tudo isto.


E já nem escrevo e já nada do que digo presta. E já nem penso porque nada do que penso chega. E já não olho porque ando de olhos fechados para o ver só a ele. E sofro, sofro, todos os dias sofro. E eles repetem-se infindavelmente, sempre iguais e escuros, como uma lembrança de que o tempo passa, mas não cura.

sábado, outubro 11, 2008

Desconsolo ou Vitória do dia que há-de nascer amanhã

Em nada nada direi

Que não há nada que em nada se possa dizer.

E de dizer nada nada fica

Nada passa, nada marca.


Mancha imaculada

Em nada que tenha, nada comporta ou conserva

Que é nada que eu sinto agora

Como se nada tivesse sido e em dia nada resolvido

De nós mais não sobresse que algum breve resto de nada!

Renúncia do dia que não existiu ou Busca ansiada do corpo perfeito que eu criei

Aqui em vã fraqueza me quedo

Sem corpo teu ou meu que chame.

quinta-feira, outubro 02, 2008

Eça

Estranha gente, para quem é fora de dúvida que ninguém pode ser moral sem ler a Bíblia, ser forte sem jogar o cricket, e ser gentleman sem ser inglês!

In Eça de Queiroz, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres (publicado pela 1ª vez em 24 de Outubro de 1882 na Gazeta de Notícias)

segunda-feira, setembro 29, 2008

Contorno algo incerto ou Cisne barroco esvoaçando as asas

"Maruliano, meu avô, acreditava nos astros."

E repito tantas vezes, palavras mágicas.

Encontro o impensável, para dizer o indizível.

É que agora talvez já não te ame.

Recomeço

Disse-te em palavras mornas

Da mansidão em que levo a alma.

Foi Verão, Primavera e Outono nesta ordem certa.


Teu corpo quente tem um quê de se fazer frio

Quando te toco.

Há estações, mas não estações para nós.


Para nós há dias de Inverno

Em que sol e céu são apenas uma ideia

Para além das nuvens.


Para nós nem nós mesmos havemos.

Não há nada teu que tu me dês

E tudo quanto te queria dar é agora algo

Indizível, indecifrável, até mesmo para mim.


Eis palavras onde não escreverei porém.

Hoje já não há espaço para falar dos teus olhos verdes,

Ou do teu sorriso,

Ou do cheiro do teu cabelo quando enfio o nariz na tua nuca.


Hoje não há sol,

Sem sol não há tempo de nós.

Agora somos dois, eu e tu,

Sem palavras, sem risos, e de lágrimas tão cheias e secas.


E talvez por aqui haja um caminho onde seguir

E no fim

Construa um hoje que seja meu novamente.

De l'espoir (Da esperança)

O texto que se segue foi novamente roubado a um querido amigo. O texto em francês é seu enquanto a tradução livre é minha.

- Regarde, mon amour! Il y a le soleil qui se lève et la pluie qui cesse!

- C'est bien drôle, puisque l'été s'achève.

- Oui... ce seront peut-être les feuilles de nos chagrins qui tomberont cet automne.

- Je crois. Je crois en nous.



-Olha, meu amor! Eis o sol que se levanta e a chuva que cessa.

-É estranho, porque o Verão acaba.

-Sim... talvez venham a ser as folhas das nossas dores que irão cair neste Outono.

-Eu creio. Eu creio em nós.

sexta-feira, setembro 19, 2008

Pois que a eles já ninguém os rouba!

Entre os tantos tipos curiosos de gentes que o nosso país tem produzido entendo que resta falar de um a que se tem prestado pouca atenção. Falo do madeirense, esse tipo tristonho e insular a que vamos dando lugar de baixa monta.

É bem verdade que em quase nada se apresenta como um tipo de excepção: passa a vida bilhardando e resondando; não sendo introspectivo é bem virado para si; cultiva um certo tipo de mesquinhez que talvez valesse a pena estudar. Mas o que importa realmente no madeirense, o que o faz digno de nota e da escrita é a sua arte superior de evitar ladrões. Pois que o amigo mais céptico não se pasme que juro falar verdade. Descobriu o madeirense essa fórmula mágica, que o resto do povo português tanto almeja, de evitar a ladroagem. Não os pequenos entenda-se, que em se agarrar punhados de grãos de areia sempre escapa este ou outro, mas os grandes que são afinal quem importa porque roubam a valer. Senão, vejamos como o fazem.

Como vimos imediatamente há assim dois tipos de ladroagem: essa da arraia-miúda, antes com uns furtos e uns assaltos às bombas de gasolina, hoje já mais evoluída com direito a car-jackings e assaltos a bancos com reféns e tudo; aquela a que tantos chamam política, mas que na verdade não se fica por aí, pois qualquer tacho em Portugal, ainda que indirectamente ligado à política, já é bom para exercer a ladroagem. A primeira para o povo, a segunda para os espertos. E a única maneira de superar estes segundos é ser-se ainda mais esperto que os espertos. E aquilo que tem levado anos e anos aos teóricos políticos a descobrir descobriram-no os madeirenses logo nos primeiros anos da sua democracia. Qual é pois o grande motor da ladroagem dos tachos? Ora, é mais que claro: a rotação dos cargos. Ora se dá quatro anos de comer a este, depois tu esperas mais quatro enquanto eu lá vou, que a seguir já te vens encher outros quatro. E o madeirense há trinta anos que começou a acabar com isso. Primeiro, nunca mudou de Presidente Regional e conferiu-lhe sempre, em voto democrático, livre e secreto maioria absoluta. A maioria absoluta serve dois propósitos: num primeiro tempo de poder permite roubar tudo quanto se quer; num segundo tempo permite afastar esses rufiões que depois de verem os outros com a pança cheia também querem então ir encher a sua. É que se o madeirense descobriu como por fim à ladroagem, não descobriu nem descobrirá como se põe fim aos ladrões. Mas voltemos ao assunto que nos ocupa e que louva o tipo do madeirense. Depois de garantir o mesmo Presidente Regional ocupou-se o madeirense de uniformizar nos seguintes vinte anos todas as autarquias do arquipélago sobre uma mesma bandeira. Se essa é a bandeira regional ou a bandeira do PPD-Madeira é assunto de pouca monta, que afinal do amarelo ao laranja vai uma pinga de vermelho, que até serve para não virem dizer que não à esquerdismo na ilha.

E agora pensa o bom leitor que esse tipo fantástico que é o madeirense, a quem todos deviam estar gratos pela sua descoberta, viva na sua ilha olímpica uma paz dos deuses. Desengane-se então, pois que há coisas que não se mudam, como vimos. O madeirense, apesar de não se lembrar muitas vezes e de não o querer outras tantas, ainda é português. E ao povo português não se pode tirar um fado que se chore. Não, o povo da Madeira cá continua bilhardando e resondando políticios, ganhos e custos. Lá vai, num canto do autocarro queixando-se disto ou daquilo com a frase sempre generosa que ocupa a ponta dos beiços de todo o português: "isto vai mal!" frase que requer ser dita de maneira séria, pensativa e até filosófica como uma verdade assertiva ao jeito de Atlas que leva o mundo sobre os ombros. Mas ai daquele que se insurja contra o Governo Regional. Aí o madeirense não perdoa! Pois que rouba? Ora se vier outro rouba tudo de novo e este ao menos já roubou tudo quanto tinha a roubar. Pois que é mentira? Então um homem que podendo morar no belo palácio da Quinta Vigia abre antes os jardins do paço ao público e para mais de quarenta anos mora na sua pequena casa e não faz férias senão no Porto Santo. Um homem que só melhorou a Madeira e a rasgou de estradas e furados! Pois, que um homem destes mesmo que roube é santo, que os santos também são homens e lá têm tentações e seus pecados. E ao madeirense parece pouco preço a pagar pelo grande homem que em todas as eleições sentam de maneira livre e democrática na cadeira do poder.

Felizes madeirenses, atentados com tantos tormentos, que ao menos perderam esse de serem roubados em grande ladroagem. Que importa a liberdade de expressão, que importam as tramóias na função pública, ou caciquismos e clientelismos? Que importa que a isto outros chamem ditadura se ao madeirense é a democracia que melhor lhe convém? Pois paga-se tal preço para que não lhes roubem os bolsos, que esses que roubam são cubanos do lado de lá do mar, que a Madeira até vai mal e sem dinheiro que a culpa é deles e não do madeirense. Que importa se o País não deve temer ladrões, pois porque há-de temer ladrões um país que já não tem nada que roubar? Ora não senhor! O que importa ao madeirense é que lhe deixem o bolso quieto que a sexta-feira chega sempre e fim-de-semana é tempo de gastar e haja dinheiro para ser gastado sem que ninguém o faça desaparecer. Que depois segue-se a segunda onde enfiado nos bancos de autocarro lá vai o madeirense no canto culpando o cubano e afirmando a verdade máxima e última que tudo vai mal.

Isto o que Portugal precisa, e o madeirense já descobriu, é de António de Oliveira Salazar que esteve lá quarenta e poucos anos e nunca roubou tostão que fosse. Esse sim havia de guiar os destinos da gloriosa democracia lusitana a belo porto!

quarta-feira, setembro 03, 2008

Digo-te: anseio!

Para Sara Guia d'Abreu

(Procuro uma posição na cadeira para escrever. Vou escrever rápido para que as palavras não se percam. A tua música corre no computador: "Un jour triste". Eu começo)

Amanhã será dia, como hoje foi. E não será como o hoje, nem como o amanhã do amanhã. Será dia como terá de ser. Cada dia com suas palavras novas de dizer e de calar.

Digo-te: da minha janela vê-se o mar e na ilha a noite chegará em duas horas. Há nuvens e não há sol. Amanhã haverá sol? Quem sabe se na minha janela amanhã haverá palavras para que eu me debruce no parapeito e diga "Hoje é um dia de sol!"

Tenho o corpo deitado sobre a cama. Tapei a janela com os taipais da janela. É de tarde porque em mim, enquanto escrevo, já é amanhã. É amanhã como digo e estou deitado, de tapais tapados, tapando a janela. Entra uma luz fina porque as cortinas são finas como a luz. Eu estou parado na cama, de corpo para cima e a luz enche-me. Estou a criar palavras.

De onde as palavras nascem é algo que não posso dizer: se da luz que amanhã me virá ao quarto se da música que corre agora, hoje, pelo computador e por mim. Não estou ligado à máquina, mas à música e talvez da música às palavras.

Digo-te hoje, julgando que é a tarde de amanhã: palavras de ser adolescente e estender o corpo no relvado do liceu; e medo do teste que vem; e o primeiro copo e a primeira noite; e confissões e risos; e tantas coisas de ser feliz e triste ao mesmo tempo; e digo tempo de conhecer e saber; tempo de amar e de criar. E lembro com saudade e sem mágoa palavras de ontem que não voltarão a ser hoje nem amanhã, nem mesmo no amanhã do amanhã.

Lembro-as hoje, sentado ao computador com medo que fujam, ou deitado amanhã à tarde sobre a cama. E seja onde for estico o braço e tu estás lá, porque são palavras de dizer que te amo e que me lembro.

segunda-feira, agosto 11, 2008

Deambulante na cidade ou Verbos que me vêm só por pensar em Lisboa enquanto é tarde

Diz-me um fado, um canto lento. Uma história do quotidiano. Quantas janelas tem Alfama enquanto o sol se põe? Umas abrem-se, outras fecham-se.

Ruas de Lisboa onde as perdesse, por elas ande perdidamente em busca de algo que chega até ao Tejo.

Cidade, mulher, como se fosse vida, como se fosse coisa com alma. Breve jóia, breve espanto de passar momentos duma tarde olhando-te do jardim do Príncipe Real.

Chãos de Belém, além o rio. Mar de casório com cheiro próximo de sardinhas a assar na brasa.

Escadarias de Lisboa onde diga Santos, Graça, Alcântara, Chiado. Para onde nos levam quando já nem os passos nos guiam? Eis janelas que se abrem enquanto passo pelos passeios estreitos da cidade. Cada janela é uma pequena vida. Quantas hão de passar ainda pelo caminho?

Lisboa sem noite, só em luz, possa eu dormir enquanto me velas. Quieto e manso, de mansinho conta-me histórias de vidas que há dentro de cada varanda da Mouraria.

E diz-me um fado, calmo e não calado, essa coisa lusa que vem de dentro e que aperta mais nos terraços da cidade quando a noite caí e traz essa outra luz.

quarta-feira, agosto 06, 2008

Canção do amor triste ou Versos de quem não soube amar

Rasgar-te-ei teu vestido, Raquel,

Hei-de rasgá-lo com força e fúria.


E agora minhas mãos sobre teus seios

E agora teus gritos que sufoco

E agora tua alma que se rasga

Nas mãos da minha.


Rasgar-te-ei teu vestido, Raquel,

Para que minhas mãos sejam d'homem

Enquanto to devassam

Para que minhas pernas sejam d'homem

Enquanto t'entrelaçam

Para que minha alma seja minha

Assim como perdes dentro de mim a tua.


Rasgar-te-ei teu vestido Raquel,

Sem medos, sem dores, nem culpas.

E sem suavidade, direi suavemente,

Enquanto soluças,

Amo-te!

segunda-feira, julho 28, 2008

Segundo Tríptico Barroco

A Pedro Palma Baracho.


NATUREZA MORTA COM LIMÕES, LARANJAS E ROMÃS



-Não sei, mas acho que temos que mandar isto para a Asae!


PIERROT



-É a minha roupa para atravessar as cheias de Loures.


RETRATO DE MESTRE PEPJIN



-Sim, guardo-a aqui junto ao peito. Assim, não andam cá carteiristas.








domingo, julho 20, 2008

Esboço de Laura ou Escrita breve em "andante furioso"

Para Ana Garcia com carinho, paixão, orgulho e fúria.

A sala era escura. A sala era escura e isso irritava-o. Guardava um medo infantil do escuro, com lugar para monstros e papões, e isso deixava-o mal-disposto. Batia furiosamente com a caneta no apoio de madeira onde tinhas os papéis em branco. Era bom que tudo aquilo acabasse depressa.

Letícia, não era excessivamente alta e decididamente não era excessivamente bela. Era mesmo difícil confessar que tivesse alguma beleza além da vulgaridade daqueles que por um acaso não nasceram feios. Tinha um aspecto vulgar, uma estatura vulgar e um nome vulgar. Escolhera uma música vulgar.

Entrou no palco decidida como quem retoma uma velha posição deixada há muitos anos, ou na verdade uma antecipação disso: reclamava um velho lugar que era seu há muitos anos, mas que por algum acaso nunca tomara. Letícia começou a dançar quando se ouviu a música. Envolvia o corpo em gestos compassados e rítmicos num estudo acertado de expressão e técnica. Gabriel restava para ali, meio alheio a tudo, olhando uma rapariga vulgar, com um corpo vulgar, dançando uma música vulgar. Quando terá ele reparado que ela não dançava de maneira vulgar?

O corpo de Letícia subia de ritmo, como um termómetro em que o mercúrio ameaça explodir. Vinha-lhe de dentro para fora, como se de repente mãos e pés e pernas e braços e ancas e coxas fossem as formas naturais de revelar palavras ocultas, palavras de dizer senão com o corpo. Gabriel deu por si dentro daquele emaranhado de coisas em que o corpo de Letícia se transformava numa rapidez extra-temporal. Letícia era em si uma revelação de algo.

E tomou a caneta e começou a escrever com fúria sobre o papel branco. Acertava cada compasso pelo corpo dela e cada palavra correspondia assim a um gesto.

Laura era branca, como um nevão irremediável que submerge tudo. (risco) afoga tudo. Laura passeando entre as gentes como se fosse (risco) fora invisível.

Letícia agitava-se no palco ao som duma música que já não existia. Como poderia haver música, onde não havia qualquer som? Letícia já nem era a própria Letícia. Era algo exterior a si mesma. Era um corpo que se estende e contrái em gestos que eram como imensos significantes vazios de significados. E esse vazio transbordava da caneta para a folha de papel com a vontade furiosa de escrever, sem que também isso se concebesse em significado algum. Letícia agitava-se em literatura. Era como se urgisse comê-la de um trago e tirar-lhe tudo o que ela oferecia dar.

Laura e Tristão sobre o barco. Laura preparando as amarguras de outras vidas. Laura alheia a si mesma, como se fora duas Lauras.

E a sala já não era escura agora, e ele não queria que isto acabasse. Oh, que não acabasse nunca! Como se Letícia, sem ser já Letícia, fosse a fonte última de inspiração. Como se o corpo de Letícia fosse despersonalizado de toda a personalidade para poder construir esse outro corpo e essa outra pessoa, tão irreais como tudo aquilo, que era essa atormentante Laura, ansiosa e ociosa por nascer. Paria em frases soltas, sem tempo nem espaço, num espaço onde ele era alheio a tudo.

Ouviu num assombro que não se ouvia mais música. Letícia estava parada no palco, de novo Letícia, olhando-o de frente. Ainda assim, não mais poderia ser essa outra Letícia, ainda tão vulgar, ainda tão comum. Laura ali estava, escrita em frases dispersas, tão real em carne e osso como esse corpo dançante a que chamava Letícia.

Olhou o papel nas mãos e a rapariga no palco. Suspirou como quem se entrega à fraqueza.
- Mais uma vez, só mais uma vez, pediu.

Letícia agitou-se no palco. Instantes depois já ele não ouvia a música que tocava.

sábado, julho 12, 2008

Palavras, onde as busque? ou Incursão nocturna na busca contínua das palavras por que anseio

Diz-me onde há palavras que as busque.

Para que por um instante nunca mais seja dia e eu perca todas as minhas noites como se uma única fora em folhas e folhas de papel.

E lentamente, quase como se não me mexesse, a um mesmo tempo morra e renasça soterrado e erguido em palavras que eu tenha escrito em sítios onde as buscasse.

quinta-feira, julho 03, 2008

Só para não dizerem que não falei de flores

Se partirmos da premissa base que fazer ciência começa pelo acto quase reflexo do ser humano em questionar-se, então teremos que admitir que o paradigma pós-processualista que a História experimenta transforma o árduo trabalho do historiador numa tarefa, à primeira vista, mais que hercúlea. Acrescido esforço quando falamos de historiadores da Antiguidade Clássica que trabalham com documentação de origem constantemente duvidosa e que lançam as suas propostas sobre mais de dois milénios de preconceitos que chegam e afectam os mesmos historiadores. Qual a possibilidade então de se fazer ciência e logo conhecimento? Essa de acreditar que os dados de que o historiador dispõe não são apenas peças dum quebra-cabeças lúdico, mas de pouca utilidade, e sim instrumento da construção dum vocabulário de entendimento. Se nos servirmos dos conceitos que a Linguística adapta do já citado paradigma nos oferece então podemos afirmar que as fontes de que o historiador se serve para fazer História são palavras, uma vez que dotadas tanto dum significado como dum significante, ainda que extrapolando o campo da palavra escrita. O historiador é então e ao mesmo tempo decifrador e criador dos significantes daqueles significados que encontra ao longo da sua investigação. É a análise destas mesmas palavras e o estabelecer de relações entre elas que permite a criação dum vocabulário, isto é, a criação de um sistema complexo que nos permita a compreensão de determinado facto através da interrelação das múltiplas realidades que as fontes provam ser e das hipóteses que o historiador levanta faça à sua questão principal quando as lê em conjunto. Na sequência do que se disse esta compreensão não se apresenta como verdade última ou sequer como verdade em si, mas mais como hipótese de uma situação senão possível, ao menos verificável. A História não se constrói assim por verificação e comprovação, mas por aproximação e sugestão, isto é, perante a impossibilidade dum conhecimento pleno e absoluto daquilo que foi é função do historiador criar quadros de uma realidade, como se disse atrás, se não possível ao menos verosímil que permitam tanto à comunidade académica e científica como ao público em geral perceber não exactamente o que foi, mas o que poderá ter sido.

segunda-feira, junho 30, 2008

Anseio

Oh morre, morre! Para que eu possa pensar em ti como se tivesses sido meu!

(Mas vive, vive. Para que possa ver-te, e vendo-te desejar que morras e dizer-te nunca dizendo as palavras que te guardo costuradas na minha boca.)

Há um canto na quinta

Na quinta há um canto onde gosto de jogar à bola. Só gosto de jogar à bola hoje! É que tu odeias jogar à bola e por inclinação eu amo tudo o que tu odeias (como mais posso fugir de ti?).

Sempre sozinho, porque quero estar sozinho, embora haja as estátuas do jardim nesse canto da quinta (já quase todas sem cabeça).

Chuto a bola com força e a terra salta aos meus olhos enquanto cavo com o pé um buraco involuntário no chão. Há folhas de relva que dançam com o sol aos meus olhos. Esperei sempre por isto. Agora posso lembrar-me dos teus olhos.

Velhas noites em lua nova

Em noite de espiga podre
Meu coração te assa e te renega
Em entranhas voltadas para fora.

E cada palavra é como um ódio
Demasiado grande
Para que em verdade te odeie.

Como a noite, como os passos de Hécate,
Como a dança cruel das Harpias
Te esperem as Parcas em cada encruzilhada que cruzes.

Que os seus pássaros te furem os olhos
E que a sua ira te rasgue roupa e carne
Como se fora minha ira.

Apenas para que te segure
À luz do primeiro sol
E tomando-te em meus braços
Cure teu corpo das minhas feridas
Enquanto a tua alma perdida
Se joga à minha, em jogo de metal fundido,
E nela se funde sem retorno que nos salve.

domingo, junho 22, 2008

A criança e o estendal

Lá dentro a criança ajuda a mãe. As suas mãos pequenas e espertas afundam-se na máquina de lavar e vão tirando peça por peça com uma gentileza ensaiada. A criança olha para a mãe, uma mulher imensa, e passa-lhe cada roupa como se tudo se passasse num ritual muito sério e importante onde a ela lhe é confiado o primeiro dos papéis. A mãe, presa do desagrado das tarefas do quotidiano, olha-a com carinho. Recebe cada peça de roupa e pendura-a no estendal estendido ao longo da marquise da cozinha. A criança não tem pressa como a mãe. Diverte-se neste jogo de brincar às pessoas crescidas. Encanta-se de ser adulta pelos momentos em que passa, peça por peça, a roupa para que a sua mãe a ponha a estender.

terça-feira, junho 10, 2008

Estória breve do gato que queria um colo

Ao Pipoca.

O gato, demasiado gordo e decididamente anafado, espia pelos olhos bem abertos cada colo. Tem as patas retraídas e cada pessoa tem as pernas traçadas (são três pessoas) o que fecha para o gato cada colo. Mas o gato, gordo e anafado, é demasiado esperto para se deixar estar. Pelos olhos bem abertos seduz, uma a uma, cada uma das três pessoas. Namora um colo fofinho onde possa enroscar o seu casaco de peles XXL.

Perante um par de pernas descruzadas ele não vem directo, mas direito e manso, ainda dengoso, ainda gingão, e como se cada colo fosse um canto natural de se estar, lá ele se enrosca, demasiado gordo, decididamente anafado e demasiado esperto.

A barriga faz ron-ron em cima das nossas pernas e as almofadas de Arraiolos estão cheias do seu pêlo. É porque afinal a casa pertence-lhe!

Emigração Holandesa

Porque há-de desligar a aparelhagem cada vez que eu ouço a Bethânia? Irra, que qualquer dia emigro para a Holanda! (Enquanto, os gatos dão algumas voltas pela coffetable da sala maior).

sexta-feira, junho 06, 2008

Digo as casas de Babilónia

Em Babilónia também há casas onde te possas fazer crescer.

A Tribuna do Teatro

Era quase indecente, aquele olhar perturbador em provocação. Como se do palco visse apenas a tribuna onde ele se sentava. E o corpo rodava em rodopios como se fora só para ele que ele lá estava. Cada vez mais belo, cada vez mais belo, cada vez mais belo.

E perdeu a cabeça: levantou-se da tribuna e saiu anseando pelo toque do seu corpo cada vez mais próximo, cada vez mais próximo, cada vez mais próximo.

domingo, maio 11, 2008

Triptych

I

Let us be silent
Now.
Let us not say
A word.
An in this silence let us
Hear.
For it is in silence that all words
May be spoken.

II

Let us say a kiss.
Let us open our mouths for a kiss
To be said.
For when is a kiss better said
Then when
We open our mouths and you
Can hear
No sound rather
Then that
Of two mouths touching in a kiss?

III

Let us
Come out
To see both roses and sun.
Let us
See
Where birds fly when the afternoon falls.
Lets us come out.
Let us
Be out...
and slowly, oh ever so slowly,
Just let us breathe.

Tardes em crepúsculo ou Saudades do Sul

Às vezes a luz cai
Assim
Sobre Lisboa.

É o tempo do crepúsculo.

As tardes são agora
Longas e lisas
Como o voo rasante dos pássaros.

E eu guardo saudades
Do sul.

quinta-feira, maio 08, 2008

Ontem não te vi em Babilónia

Aqui digas,

Casa,

Ainda que ontem não me tenhas visto em Babilónia.

Excerto ou Ensaio para "Conto de Gustavo-IV"

Ensaiava então um gesto que lhe saia naturalmente: envolvia-lhe o braço direito em torno da cintura. Agarrava-o numa violência de amante plácido. Gustavo deixava-se ir, ainda com medo de um par de olhos que espreitasse em algum canto. Depois esquecia. Enrolava os braços no pescoço dele despreocupadamente. Nunca se beijavam nestas alturas.

De um gesto diário aos olhos em provocação

Surpreendi-lhe um gesto. Era um gesto habitual que costumava ter. Cerrava os dentes com força e quase rasgava o beiço de cada vez que o fazia. Depois parava, era como quem se recompõe. Olhava para mim, o beiço encarnado, sobejamente inchado. Olhava em ar de desafio. Era numa altura em que os olhos dele diziam muita coisa.

terça-feira, maio 06, 2008

Poema da Fertilidade

Em vaso de terra,

Em chão que é fértil

Ergue a semente nova do dia

E a cada grão repete

Vaso, terra, chão.

Em palavras

Para o Sérgio e o Stjin com todo o meu carinho.

Ainda que eu pudesse dizer-vos em palavras
Do meu agradecimento
Deixem que o silêncio fale por mim.

De cada vez que o puderem ouvir ele dir-vos-á muito mais do que eu.

"Fim d'Época" e "Geneticamente Fúteis"

Tenho por hábito passear entre a Baixa e o Chiado tanto como tenho o hábito de não escrever sobre mim e aquilo que faço, ou pelo menos não directamente. O primeiro prende-se com o meu lado de alpinista social, o segundo com o meu ar pseudo-intelectual de quem procura estar ausente à escrita que produz. Um dos sítios que encontrei para melhor conjugar estas duas facetas da pessoa que sou eu é um simpático cadeirão preto colocado de costas para a janela da segunda sala da Bertrand Chiado. É um dos espaços mais agradáveis de leitura que Lisboa oferece e já cheguei a passar tempos bem largos ai sentado, normalmente ao cair da tarde, perdido e absorto em livros, ausente de qualquer outra realidade.

A última vez que lá estive tinha de facto um propósito: ia em busca de um presente para umas primas pequenas. Presente esse que os deuses haviam guardado para mim num canto escondido da última sala- era o único volume em toda a Lisboa. E a par encontrei mais dois livros que levaram a que me sentasse no dito cadeirão: "Fim d'Época" de Lourenço Pereira Coutinho e "Geneticamente Fúteis" de Cláudio Ramos.

Uma vez que apenas li ambos en passant vou guardar as críticas e ater-me a breves comentários que me parecem interessantes. "Fim d'Época" passa-se na Lisboa da primeira década do Século XX tendo como personagem principal o Dr. Miguel Sebastião Telles de Almeida, filho dos Condes de Valverde. As descrições ricas e o tratamento cuidado da época, fundado nos conhecimentos do autor que além de historiador já publicou ensaios sobre a época, fazem da obra um agradável retrato da alta sociedade lisboeta e das suas preocupações políticas, sociais e económicas que por sua vez a torna agradável a quem, como eu, vive em paixão constante pela História Social. "Genéticamente Fúteis" passa-se na Lisboa da primeira década do Século XXI. Conta a história do assassinato e consequente investigação do crime dum afamado colunista social e da trupe que vivia em seu redor. A escrita não é das melhores e, muito num estilo da literatura-light, é pouco profunda atendendo mais às frivolidades da acção que à importância quer da descrição, quer da reflecção. Notemos agora aspectos interessantes: se pusermos as classes que cada livro representa, que pretende ser a mesma com 100 anos de diferença, nós é que encontraremos diferenças abismais. Não só a maneira de estar, mas sobretudo a maneira de ver e entender o mundo, bem como a imagem que certa classe projecta de si mesma mudou radicalmente, talvez como nunca antes tenha mudado num tão curto espaço de tempo. A família e as soirées, a arte de receber e de estar com amigos, as discussões sobre o tenso ambiente político de "Fim d'Época" são substituídas em "Geneticamente Fúteis" pelas festas e vernisages, a arte de enganar e fazer amigos proveitosos e as discussões sobre o cabeleireiro ou o último desfile daquele costureiro famosíssimo.

Dizer que prefiro um ao outro está longe do ambito desta crónica. Tenho as minhas escolhas pessoais e reservo a outros o direito de terem as suas. Note-se apenas a mudança de uma elite culta e preocupada, ainda que um pouco desfazada da realidade, para uma pseudo-elite sem ethos ou mesmo savoir-faire que o seu autor retrata como sendo de facto geneticamente fútil.

Se puderem e quiserem vão a uma livraria peguem nos dois livros, escolham um canto e tirem as vossas próprias conclusões. Só peço que me deixem o meu cadeirão contra a janela.

quarta-feira, abril 16, 2008

Palavras de coisas do Oriente ou Anseios por cidades tão distantes

Onde os horizontes de Edo e Kioto?
Perdi-os nos olhos fechados do teu sono.

Oh, diz-me agora
E outra vez de Edo e Kioto para que os sonhe
Como em ti são lembrados.

Poema das tardes dos pássaros

E se houvesse pássaros?
Até onde voariam as tardes, até onde se alongariam as horas?

E se houvesse pássaros em vez de crepúsculos?
Que triste seria o para sempre.

segunda-feira, abril 14, 2008

Varandas sobre o Tejo ou Canto crespuscular da cidade numa casa de Alfama

Duma varanda donde se veja o Tejo
Numa tarde

Duma tarde em que se embale em palavras
Numa varanda

Agora Lisboa, ainda de dia
Depois logo à noite, quando for noite

Mas ainda palavras
Como ruas
Pelas ruas
Palavras de dizer coisas nuas

como uma

Varanda donde numa tarde
Se veja o Tejo

Evocando a Lagoa de Óbidos

Digo-te assim

Prazer e mar


De teu corpo-lagoa

Riacho, atraso


Perdido de tempo

De espaços e de palavras que digam


Talvez, fruto, pedra, planta,

Horas


De quem se guarda em devaneios junto da água

Num qualquer dia primeiro de Primavera

sexta-feira, abril 04, 2008

Palavra de Viagem

Palavra de Viagem,

De coisa passada, de coisa vivida,

De cheiro que dorme e que nasce na gente

A cada reviver.


Palavra de Viagem

É palavra que desperta,

Que alegra, que chama,

E que anda com a gente pelas ruas da Cidade.


Palavra de Viagem,

Que vai onde não vou

E volta de coisas que têm sempre voltar.

Poema da Viagem

Sabes versos antigos?

Entãos diz-mos em mansidão agora que a Cidade se prepara para dormir.

Tu buscas os cheiros da cidade. Cada pessoa tem um cheiro e cada pessoa é uma cidade.

Quantas pessoas perfazem a tua Cidade?

Agora que a noite caí sobre nós diz-me depressa, mas de manso, quantas palavras são precisas para que tu olhes e digas- Cidade.

terça-feira, abril 01, 2008

Experimentação para "Conto de Gustavo-IV"

Revirou os olhos. Que havia de dizer? Era a quarta vez que a Ana perguntava se ele não o achava maravilhoso. Não que se referisse ao aspecto, pelo menos em princípio, mas à eloquência do homem. Porque para Gustavo era isso que ele era: um eloquente.

Lá estava, gordo e transpirado, com uma grande linha quase nas fraldas da camisa a marcar o suor. Tinha um lencinho de bolso que tirava mais vezes do que se desejava e limpava a testa molhada arrastando as mãos pequenas e sapudas de um lado para o outro como se estivesse a puxar lustro. Estava a falar há quase quinze minutos e ainda não dissera nada que valesse a pena ouvir. Vagamente percebia-se que falava de Tácito. Ia alternando o seu discurso barroco e bacoco ora com evidências óbvias ("A noite em Tácito é fundamental"), ora em emaranhados vazios ("Há que entender a questão não só do ponto de vista histórico e filosófico, como igualmente perante a necessidade de ser literário"). Era, enfim, um eloquente. Um homem de muita sabedura, mas muito pouco saber. Lá que lera Tácito e o seu latinório nem Gustavo punha em causa. Lá que ele não dizia nada que na Sorbonne ou em Oxford ou Princeton já antes não se tivesse dito era bem verdade.

Ainda assim, a Ana continuava a espetar-lhe o dedo no ombro de forma cada vez mais furiosa conforme a sua excitação aumentava. E eram gritinhos de "Fabuloso!" ou "Muito bom!" a cada nova balela que o gordo empapado em suor soltava.

O Artur gostava de dizer que a Ana era uma freira com falta de homem. As coisas eram, contudo, mais complexas. A Ana era, nas palavras de Gustavo, uma vítima do sistema. Licenciada em Estudos Clássicos com média de 18,7 valores passara o curso agarrada às saias das professoras que a passeavam e elogiavam como uma mãe vitoriana quando o filho diz a primeira palavra ou aprende a primeira habilidade. A Ana era esperta, tinha boa cabeça e boas ideias. Tinha era a cabeça muito enfiada nos livros e era pouco livre em relação a eles. E das poucas vezes que voava, lá iam as boas professoras, quais fadas madrinhas, impedi-la de voos tão altos que ferissem a menina. E assim a Ana foi-se adaptando àquela maneira académica de estar, comezinha e banal, do pequeno palanque e do pequeno poder. Mestrou-se com uma tese sobre Catulo, tão gémea da tese da sua orientadora, que não trazia nada de novo. Depois, com os trabalhos de doutoramento e a docência universitária trazida pelo mestrado a Ana instalara-se. Agora, às portas de defender a tese, era um produto acabado do sistema: servil e pouco ambiciosa, bastando-se nos seus conhecimentos escolásticos que ia buscar ao saber sacrossanto dos livros que a Sorbonne regorgitara nos anos setenta. Mas não era má miúda. Os alunos adoravam-na e ela adorava-os e a verdade era que os protegidos da Ana eram por norma mesmo muito bons, como as grandes professoras de ballet que, incapazes de terem elas mesmas uma grande carreira, têm, ainda assim, olho para aqueles a possam vir a ter. E depois era divertida e no meio daqueles salamaleques todos da faculdade era bem desempoeirada. Claro que tantas vezes era demasiao infantil, dessas crianças que as bibliotecas conservam para sempre crianças por falta de ver o mundo. O Artur bufava cada vez que a sabia lá em casa para jantar. Era certo que ia ter uma noite repleta de todos os pormenores mais íntimos da faculdade e dos meandros dos seus departamentos, desde a última tese ao último escândalo. Mas Gustavo gostava dela e o sentimento era bastante mútuo.

"Brilhante, brilhante. Muito, muito bom!", gritava a Ana enquanto batia as mãos uma contra a outra. O presidente da mesa começou nos agradecimentos e acabou nas perguntas. Gustavo não ia aguentar mais nada daquele homem. Enquanto arrumava as coisas na pasta largou um beijinho no ar à Ana e, o mais silenciosamente possível, esgueirou-se pela porta direita do Anfiteatro III. Desceu as escadas num repente e atravessou o longo corredor em passo largo. Pegou no telemóvel. 13h28. Aquele papalvo do coimbrão eloquente tinha-lhes comido vinte minutos a mais e ainda estava lá para cima a despejar idiotices. Virou no corredor do Departamento de História ainda indeciso entre ser apanhado no corredor da secretaria pela Dona Ifigénia ou no átrio central por um aluno ou colega qualquer. Decidiu-se pelo átrio e atravessou-o a toda a pressa oferencendo aos alunos que o cumprimentavam sorrisos distantes e pouco convidativos. Desceu os degraus da porta principal da faculdade e olhou para trás. Lá estava Letras, igual há dez anos atrás, senão um pouco mais podre e mais suja pelos cantos.

No telemóvel tocou uma mensagem. Era o Artur "Demoras?" O Artur não tinha um doutoramento, nunca lera Tácito e de Latim sabia dizer E pluribus unum e Pisces conam furant. Mas dava-lhe a certeza de uma vida além de todas estas coisas de que ele gostava. O Artur era, em grande medida, o que o impedia de ser como a Ana. E ao menos o Artur suava por razões melhores que o jagunço de Coimbra.

quinta-feira, março 27, 2008

Carta de Servília a Décimo

Não esperes que responda ao que me pedes. E não me leves a mal que o não faça. Aos oitenta e quatro anos aprendi a dizer não. Este não que descobri tão tarde não é, no entanto, igual a esse outro desses jogos perigosos de tirar e dar e que raramente quer dizer o que quer dizer. Assim, não esperes por mim. Não. Definitivamente.

Encontrei, nos campos de Lutércia, uma paz que nunca esperei e talvez por isso ela me saiba tanto melhor. Sei que os romanos urbanizados da grande Urbe acham estas terras selvagens e ermas. Não selvagens, mas virgens. Há qualquer coisa aqui que pode nascer. Perco alguns dias a pensar no que será e não chego a nenhuma conclusão. Mas sinto nesta terra uma vontade. É algo diferente desse infernal acampamento de Godorico onde conheci a verdadeira selvajaria dos bárbaros. Lutércia tem árvores altas e chãos fecundos e o mar é tão forte que o seu cheiro chega até aqui nas brisas das manhãs de Primavera.

Xenofonte levou-me a ver o mar. Esse grego velho que eu vi nascer e que é mais velho do que eu é o meu bordão de todas as horas. Na sua paciência infinita preparou tudo e num dia de Junho do ano passado meteu a sua senhora num carro e levou-me. Não te digo quantos dias levei porque prefiro acreditar que não sei esse número e que não os contei. Deixa-me que te fale do mar. Tu andaste nos barcos, mas alguma vez viste a fúria do mar? Quem pode, no resguardo do comandante, onde nos enfiam, ver a verdadeira fúria do mar? Pois eu te digo que o mar dos gauleses é solto e livre, como no fundo também eles, e que a vida de cem imperadores não bastaria para domá-lo. E prefiro que seja assim, que haja algo que fugiu à Ordem e à Norma. Não penses que me perdi nos excessos do orientalismo. Confesso-te, contudo, que gosto de ouvir os magos dos gauleses, a quem eles chamam druídas, e que tenho aprendido muito com eles. Falam-me de coisas distantes de nós e os seus deuses não são senão alma e alheios aos caprichos. Não seria melhor acreditar em deuses assim? Não penses também que aderi ao seu culto, no entanto, ou pior que virei cristã. Não. Cultivei um único ódio na vida e esse foi o ódio pelos cristãos. Não desejo nada de bom a esses semitas sujos e ao seu deus crucificado. Os cristãos trariam mais Norma do que Ordem. Se morro feliz com a idade a que cheguei uma das razões é saber que não serão precisos mais que dez imperadores, ou menos ainda, para que os nomes dessa gente nunca mais sejam escritos.

Mas fecha os olhos agora e não ouças mais os delírios desta velha. Não estou cansada da vida, mas estou já um pouco cansada de ir morrendo. Não sei se verei as folhas caírem e nascerem de novo nas grandes árvores de Lutércia e por certo Xenofonte é agora tão velho que, ainda que quisesse, não me poderia mais levar a ver o mar. E não, não voltarei a Roma. Queres que morra como uma grande matrona num leito de seda do grande palácio que construíste na Urbe? Perdoa o orgulho de uma velha que lhe toma a melhor, mas digo-te não. Uma coisa gostava no entanto, de ver-te outra vez e poisar a minha mão sobre o teu rosto. Também estás velho agora? Quantos anos passaram por ti desde que o meu rapaz se tornou um grande general do Império? Não me digas quantos pois prefiro fingir que os não contei.

Anseio apenas que na tua idade ainda não tenhas aprendido a dizer não como eu aprendi e que sejas tu a aceder ao meu pedido. Vem pelo caminho mais seguro, mas vem depressa, meu filho. Não que morra já, mas porque desejo mais que tudo ter-te a meu lado novamente.

terça-feira, março 18, 2008

Beijos por Lisboa ou Aquilo que levamos da Cidade

Para Rosa de Medeiros Carreiro e Sara Guia d'Abreu que comigo vão vivendo e amando Lisboa que namora o Tejo.


Deixa que na mesa as velhas digam a sua conversa

Lenta, cansada e sempre igual.

E os cães passam e ladram sem caravanas

E as pessoas passam pelas mesas dos cafés

Aos olhos atentos do Pessoa

E Lisboa assim é um pouco mais Lisboa no crepúsculo duma tarde.


Numa esquina ou numa escada

Escorrega as tuas mãos sobre a minha cintura

E cola a tua boca na minha num beijo

Que não quero levar mais nada da Cidade.

quarta-feira, março 12, 2008

Canto do Chegar

Diz-me de chegar

E de tardes com braços abertos

E beija-me de beijos

Que digam coisas

Que mesmo as palavras não dizem.

Lamento de Partida

Diz-me de partir

E leva-me em palavras de consolo

Que embalado em palavras dói menos ir

Onde tenho de ir.

Eu que espero por coisas belas

Canto do cisne e coisas belas,

Como tardes de Primavera e Sol.

Anseio pelo Lótus

Verei plantas e flores de lótus, génio do lago?

Diz-me se verei plantas e flores de lótus.

Retrato de rapariga em casa de praia

Os dedos longos. As mãos. As mãos enroladas em si mesmas. Os dedos entre os dedos. Os dedos longos.


O cabelo caído, um ombro. Os olhos como os do gato. O gato lá atrás. O dos olhos. Atrás dos olhos. Atrás. O Gato. O outro ombro, cabelo caído. Voa como um sopro porque

a janela está aberta. A janela vai dar ao mar. Tem lascas nos caixilhos de ser velha. A janela. Um ombro, o outro ombro; cabelo caído. Velha. A janela branca. Não ela. A cara branca. Jovem. Lisa como uma tira de seda ou como cabelo caído sobre um ombro, ou sobre o outro ombro.


Na casa em cheiro de mar. Entra. Na casa. Maresia. Cheiro de mar. Na sala, pela janela. Velha. A janela e a sala. Branca. A janela, a maresia. A maresia é branca como o rosto. O rosto dela. O rosto dela na janela.

Cabelo, tira de seda, mãos e dedos e cara. E vento, pela janela e que traz o cheiro da maresia. Branca. Como a janela e o rosto dela na janela. E os dedos, e as mãos; um ombro, o outro ombro. E

ela, branca na janela branca, velha de caixilhos velhos, não como ela, mas como a janela

Três salas em três mulheres ou Caminho da inspiração

Uma sala com uma mesa com um livro em cima da mesa.

Uma sala com uma cadeira e uma janela aberta a poente (ponto de luz).

Uma sala com grandes cadeiras encarnadas.


[Silêncio]


Uma mulher lê o livro.

Uma mulher levanta-se da cadeira e corre as cortinas (ainda um ponto de luz).

Uma mulher está estirada numa das grandes cadeiras encarnadas.


[Silêncio]


Saem as três.


(Procuro os gestos, as formas, os estares. Há ainda uma mulher em cada sala.


[Silêncio]


Sento-me eu frente à janela com um livro branco na mão esquerda.


[Silêncio]


Primeiro sonho, ou depois crio, ou antes escrevo?)

Matrimonius ou Tradução em três variações

Ubi Gaia, ego Gaio; Ubi Gaio, ego Gaia.

Onde Gaia, eu gaio; Onde Gaio, eu Gaia.

Onde fores Mulher, eu serei Homem; Onde fores Homem, eu serei Mulher.

Onde tu fores, eu serei.

(votos matrimoniais no casamento romano)

domingo, março 02, 2008

Reencontro dum amigo

Para Filipa Seiceira, feliz de a ter reencontrado.

A noite tem mais graça



(e vejo-a pelo canto do olho) quando se encontra alguém guardado há muito tempo.



(abraço-a) "Sabes que te odeio?" com um sorriso palerma. "Sabes que te amo?" E um abraço ainda mais forte.



E a noite tem mais graça.



Conversamos, conversamos, conversamos, conversas...

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Conjunto de quatro telas roubadas ou Quatro amigos retratados em dois presentes, um futuro e um intermeio

IVAN

Está lá em baixo, sentado num penhasco qualquer. Tem as costas meio curvadas. Tem as pernas ao acaso. E olha o mar.

Que será que faz? (Tem um caderno em branco nas mãos). Respira. Fundo e forte. E olha o mar.

Cada onda rebenta dentro dele mesmo e deixa-lhe os pés molhados. (Será que está descalço?) O mar é azul. Muito azul. Intensamente azul.

Há vento, uma brisa, e os cabelos finos agitam-se. Ele continua a respirar. Fundo e forte.

O mar é um prolongamento dele mesmo. Ele é forte e duro como o mar.

Lá, em cima do penhasco, sentado sobre as ondas, o rapaz de asas marcadas pelo fogo é infinitamente belo.


ROSA

A Rosa chega ao Kaffa e entre a conversa vai murmurando entre dentes “A mesa do canto, por favor. A mesa do canto!” A Rosa chega ao Kaffa e ri-se e alegra-se porque a mesa do canto está livre. Entra, senta-se e despacha os pratos sujos em cima da mesa com grande rapidez. Até agora nunca parou de falar.

A Rosa chega ao Kaffa e fala duma maneira ininterrupta. Às vezes diz tolices, mas o que ela nunca diz são coisas sem sentido. Senta-se na mesa do canto porque é o melhor sítio para se observar as pessoas. A Rosa chega ao Kaffa e gosta de observar as pessoas.

O empregado é muito simpático e a Rosa é sempre simpática para ele mesmo quando não tem vontade de ser simpática. Porque a Rosa é naturalmente simpática.

A Rosa alegra todos à sua volta com a sua conversa. Ela sabe ter uma conversa animada, interessante e em que qualquer um cabe e tem lugar.

Às vezes a Rosa pára de falar. Olha para o lado esquerdo, onde se senta o seu homem. Ri porque ter o seu homem ao seu lado no Kaffa numa tarde de sol e com boa companhia a lembra de como ela é feliz.

Mas é tudo muito breve. Volta logo a falar.

A Rosa usa um casaco encarnado e um colar comprido de contas ao pescoço. Não é alta, mas é linda.

A Rosa tem fome da vida e tem fome da cidade. É por isso que gosta de ir ao Kaffa em dias de sol e sentar-se na mesa do canto.

Às vezes a Rosa pára de falar, pouco depois de chegar ao Kaffa, e olha para o lado esquerdo. É sempre um momento que passa num instante. Mas é quando é melhor ver a Rosa sorrir.


HUGO

Enquanto o suor escorre fino e frio pelo rosto do pintor o Hugo diverte-se. O pintor tem um ar sério e muito grave e traça cada pincelada como se em cada uma Deus (que é o próprio pintor) criasse de novo o mundo (que é cada pincelada). O pintor nunca dirá ao Hugo para ficar quieto e o Hugo não vai ficar quieto até que o pintor lho peça. Diverte-se a criar este ciclo que apenas ele pode quebrar.

Não é que ele se mexa muito, ou fale, ou esteja a ser alarve. Assim, o Hugo seria apenas para o pintor mais um parvenu para ser pintado. Às vezes o braço descai, outras o braço treme, outras agita-se e outras ainda desenha círculos breves com as pontas dos dedos.

O Hugo tem o cotovelo esquerdo apoiado na mesa e a mão direita derramada sobre ela. Aberto está um livro com alguns sermões do Padre António Vieira. A edição é do Hugo. Do pescoço cai-lhe o cachecol azul, porque os cachecóis do Hugo são como jóias que ele usa, e o cachecol azul é a jóia mais delicada. É preciso mais que este pintor para perceber a elegância do Hugo.

O pintor olha para ele como quem lança um anátema. O Hugo é o retratado mais herético que ele já teve. Porque os retratados são muito direitos e bem comportados e têm orgulho que o pintor lhes pinte o retrato. Porque os retratados deste pintor são parvenus. Mas o Hugo não é um parvenu para ser pintado. Em conjunto com os braços, dobrado e derramado, com o Vieira e o cachecol azul o Hugo pôs na ponta da mesa um frasco imenso de wasabi e uma lindíssima caixa repleta de delícias turcas.

Às vezes o braço descai. Mas o Hugo tem sempre aquele sorriso de quem também sorri com os olhos que se abre ligeiramente entre os beiços ao canto esquerdo. E o sorriso faz o pintor pintar fino e frio.


ANA

É uma manhã de sábado e é Primavera. Porque o céu está limpo a luz de Lisboa é incomparável. A varanda das águas furtadas tem camélias plantadas. A Ana experimentou rosas primeiro, mas as rosas não resistem tanto como as camélias e as rosas intoxicavam a casa de um cheiro melado nas tardes de Verão. A Ana experimentou depois as camélias e agora estão na varanda das águas furtadas.

A Ana tem uma cadeira frente à janela. A janela tem quase o pé direito da sala e abre para uma praça de Lisboa. A Ana senta-se na cadeira frente à janela numa manhã de sábado de Primavera.

Numa mesa ao canto há dois copos usados e agora vazios. A Ana ontem foi ao teatro e voltou tarde depois de passar por Santos. A Ana ainda dançou um bocado no Lux. Mas só um bocado porque a Ana não perde noites, goza-as. Quando chegou a casa bebeu alguma coisa com ele. Agora, numa manhã de sábado de Primavera, ele está nu, deitado na cama do quarto grande. Ela está sentada frente à janela e pensa no que vai fazer no dia de hoje. Uma amiga tem uma exposição de pintura numa galeria do Rato. Depois há-de jantar num restaurante qualquer. A Ana é conhecida nas galerias e nos restaurantes porque a Ana tem uma vida. A vida da Ana é a Cidade. Às vezes o teatro, os bailados, os concertos, mais raramente a ópera. Muitas vezes as tertúlias, os cafés, os Grémios, mais raramente o Bairro Alto.

A Ana é aquilo que ela fez de si mesma.

Daqui a cerca de duas horas ele vai acordar. A Ana vai voltar ao quarto, vai guardar a roupa da noite passada e vai vestir o vestido amarelo. Porque a Ana pode vestir um vestido amarelo numa manhã de sábado de Primavera. Depois vão falar e rir muito e descer as escadas do prédio. Então a Ana há-de ir ao encontro da Cidade.

Vão tomar o pequeno-almoço à Confeitaria Nacional e vão ficar numa mesa frente a uma janela porque a Ana não pode ficar nunca sem ver a Cidade. Depois a Ana vai despachá-lo com uma desculpa qualquer. Qualquer pessoa que passasse e lhe perguntasse ele diria que era namorado dela. A Ana não diria o mesmo. Antes de ir a casa chamar almoço a uma sandes rápida a Ana desce a Rua Augusta, atravessa a Praça do Comércio e chega ao Rio. Ela é parte da sua cidade em cada rua.

Em frente ao rio a Ana respira. É assim que a Ana constrói o amanhã.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Tejo Brasileiro

Quem dera Tom Jobim. Por um pouco numa escada de Lisboa. Um porto. O crepúsculo outra vez. Passando em minha frente breve garota de Ipanema. De pé descalço pela calçada do Chiado. Lá vai ela. Me enche de graça.

Entretanto olhos de oliva espreitam do canto. Vinícius, Deus meu, que saudade. E tudo na esquina entre o Carmo e a Trindade.

E Chico que passa com a Banda, Caetano tão ao de leve segurando a mão de sua irmã Bethânia.

Lisboa, suave, namora o Tejo, lá até onde ele chega na Baía de Salvador.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Cinco teorias sobre o riso ou Conjunto de cinco quadros bastante risonhos

I
Uma gargalhada. Algures na ponta da mesa alguém disse alguma coisa sem graça (fez-nos rir apenas a vontade de rir).

II
É certo que há silêncios em todas as viagens. Vamos dizer ordinarices só para os chatear.

III
Nada existe superior à Linguística. É por isso que nos rimos tantas vezes.

IV
Entre a Linguagem, a Farmácia e a História podem criar-se múltiplas ligações. Assim como um rendez-vous de coisas apatetadas que existem num mesmo espaço por acaso.

V
Por fim, a procura do sentido nas coisas sem sentido dá-nos vontade de rir ainda mais. O riso lembra-nos da nossa estupidez natural.

Viagem através do Silêncio ou Contorno de outras palavras

Para dizer alguma coisa bastaria que me calasse.

Ainda assim as minhas palavras iriam até onde tu estás.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

sexta-feira, janeiro 18, 2008

O teu corpo e a minha noite

Enlaço meu laço enlaçado

Em torno do torno do teu torso

E sigo seguindo a noite

Até que breve o sol a verta em manhã.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Brevidades a que mal se pode dar um nome ou Claro anseio pelo verão enquanto é de noite

Se esta noite se alongar em meu corpo

Que me chegues de Verão e Esperança

E cansado derrames em torno

Quantas palavras couberem no teu ventre novo.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Enquanto me deito com as tuas palavras

É quando me chegas

Que tenho ganas de me deitar com as tuas palavras

Longas, lisas, leves,

Mas tuas, como o meu corpo é teu

Agora que morro de uma pequena morte dentro de ti.

Mediterrâneo ou A essência do Branco ou ainda Súbitos anseios mediterrânicos pela palavra Poesia

Para a Daniela, sobre uma conversa, mas sobretudo sobre o Branco.

Nem às escuras, nem sob as sombras,
Ausente da seiva de sangues correntes,
Ou da cadência dos corpos mortos,
Sem mágoa, ou raiva, ranger de dentes
Ou mesmo a força em fúria de braços tortos,

Será limpo e leve o dia novo
Filho dum Crepúsculo de Verão
Na casa, no mar, além do povo,
Por onde o labor das aranhas corra o chão.
A ânfora, a coluna, o Fado, o encanto,
A História e em tudo o odor do orégão
E no dia branco, no pateo branco,
Eis que surjem, escondidos dum canto,
Os deuses que a palavra Poesia carregam.

domingo, janeiro 06, 2008

Palavras que diga ao amigo distante ou Dança moribunda de quotidianos outrora íntimos

Era tudo na banalidade dum restaurante pela hora do jantar. Algures em Lisboa, desses sítios onde, com hora marcada, se consegue uma mesa para sentar-se mais de oito. O preço, claro, vem com o corre-corre das pessoas por aqui e por ali roçando-se contra as costas das cadeiras (“Com licença, com licença!”), roçadas todas umas de encontro às outras numa rentabilização implacável do espaço.

Por sítios destes tudo começa em tom mais elevado, sobretudo as conversas. Leves, fluidas, banais e breves e sobretudo fáceis de mudar o rumo. Discorriam sobre tantas coisas poucas, memórias dum passado ainda recente, ainda presente em quem é jovem de mais para contar a memória em décadas.

E pelo meio dos outros ele rejubilava. Uma alegria exagerada, dessas que a culpa leva em lume brando até estar bem cozinhada. Uma euforia em melaço, quase aos gritos. Queria tudo ao mesmo tempo. Quase em pontas (as cadeiras sempre tão próximas) corria a mesa de ponta a ponta e perguntava tudo a todos: por onde estavam, que faziam, com que vagar lhes corria a vida mais que os dias. Dava grandes palmadas nas costas dos homens e beijos alongados pelas bochechas das meninas. Era como um vinho mau que todos devem suportar num jantar de cerimónia.

O outro ali ficava olhando, esperando, rindo por vezes. Como que aprendia. Sentados lado a lado quantas vezes ele lhe espetou os dedos no ombro “Então pá, que tal vai isso?”. Soltava lugares comuns em resposta. Percebia agora que amontoava palavras mais do que verdadeiramente falava. Deixava-as sair em catadupa, quase sem controlo, tantas vezes tão próximas da histeria do outro. Eram quase sempre molhos de palavras lambidas na vontade imensa que por uma vez soassem como antes, como quando conseguia falar e ser escutado.

Este é o momento em que a intimidade regride. E uma dor em todas as maneiras dolorosa atravessa-os aos dois, tão diferente porém em cada um, como os lados opostos e intocáveis de uma mesma coisa. Um soltava promessas de futuros jantares, anseios de encontros. Lançava-se num devaneio de projectos quixotescos como se de cada vez tentasse baixar a culpa por um fracasso que só ele considerava. Porque em verdade tantas promessas não eram mais que a negação do seu falhanço na gestão da sua vida, das suas horas onde os amigos podiam encontrá-lo talvez uma vez de dois em dois meses. O outro evitava-o enquanto se evitava. Aprendia o contrário da intimidade, que é bem mais difícil que o caminho contrário a esse. Recusava-se as respostas, moderava-se nos sorrisos, contava os olhares no medo que fossem já demais. Era uma luta de fera ferida travada consigo mesmo, em si mesmo, como se se negasse um grande prazer que sabia de antemão mais que efémero, algo já no limbo confuso e leve da sua vontade e do real.

Entre os dois não havia agora silêncios, mas vazios. Não havia nada para dizer à boca fechada agora que o seu quotidiano inexistente sufocava moribundo ao peso das horas. Porque entre eles calcavam-se fundas as horas, os dias, os espaços que não partilhavam mais, tudo aquilo que agora já não dividiam. E assim afundavam-se ainda mais nessa dança macabra e triste do desespero de recuperar algo que talvez se tivesse irremediavelmente transformado.

No fim de quase todas as coisas, depois de quase todas as lutas, entraram no carro para que ele o levasse a casa. E pela primeira vez o vazio, que entre eles se sobrepunha ao silêncio, tornara-se esmagador. E mesmo que tivessem tentado quebrá-lo não teriam sido capazes de quebrar algo que escapava desgraçadamente ao seu controlo.

Saiu do carro sem abraços, quase sem palavras. A dor era tão funda, tão cavada entre os dois no abismo do vazio que preferiam não se falar assim como dois amigos que, na iminência duma viagem, preferem não se encontrar no dia da partida para não sofrer mais esse instante. Não sabem que o sofrimento de partir não é senão a materialização do medo de perder que é o maior de todos os medos. Mas é ao mesmo tempo o alento do desejo de voltar. É quando a dor chega a sítios tão fundos que toca os nossos sentimentos que sabemos que é hora de forjar novas palavras e viver ainda novos dos infinitos quotidianos que se podem viver entre duas pessoas.