terça-feira, dezembro 29, 2009

Os odores de Samarcanda ou Viagem Oriental através dum livro

De Samarcanda guarda o cheiro do bazar. A luz reflecte levemente nas pedras de âmbar dispostas nos tabuleiros de quase todas as bancas. A cidade confude-se com ruídos que te confundem. Confia apenas no teu cheiro e nada mais. O Verde é apenas uma miragem dos ricos jardins além-muros, nos palácios inacessíveis do Oriente. Não percas tempo com eles. As casas são de tijolo cru e batido e ainda cheiram a terra e a poeira. Era assim há mil anos como é hoje. Se buscas cor, confia de novo no cheiro e vai até à mesquita. Admira agora os ricos azulejos da sua porta e do alto do seu minarete. Encosta o nariz a um deles e sente. Sente agora o cheiro dos anos, do tempo, o cheiro do corpo de centenas de homens em oração em mistura com o barro cozido num fogo demasiado alto. É o fogo que queima o barro e os homens de fé que rezam. Escolhe agora uma rua tortuosa. Atravessa as casas e ligeiramente olha para o seu interior. Uma casa cheira sempre a comida e a lume. A lume brando e calmo. Que ouvirás dentro das casas? Risos, queixas, gritos, carícias, prazeres. As casas de Samarcanda são como todas as casas do mundo onde moram pessoas. Que há de diferente nas pessoas de Samarcanda em relação com as pessoas do mundo? Descobre nelas o cheiro da Pérsia. Não desta Pérsia de agora. Dessa que dorme um sono no coração dessas pessoas. Aproxima-te do coração dum habitante de Samarcanda e cheira-o. Encontrarás aí tapetes voadores, abóbadas douradas, turbantes e espadas curvas. Ali dorme o país encantado, no coração batente de cada cidadão de Samarcanda.
Depois, lembra-te apenas do cheiro, nada além do cheiro, e que ele te guie sem destino pelo labirinto das ruas de casas sempre iguais, pelo labirinto de rostos sempre iguais até chegares a um sítio que só o cheiro sabe onde é.

Experimentação em trilhadas trincheiras

Sigo o trilho desta trilha
Com minh'alma trilhada em coisas d'alma
Entrincheirada em trincheiras tão trincadas
Que até trincar o pão duro é difícil
Enquanto sigo o trilho desta trilha
Que me leva ao nada.

Poema dum dia de chuva ou Evocação bucólica

Digamos um poema de sala e de luz.
As palavras constroem-se como se chamadas a isso.

Tudo é natural e bom como um dia de Inverno com muita chuva.
Ao redor da minha janela deito-me a imaginar prados verdes.
Que há de bom em imaginar prados verdes num dia de chuva
E céu cinzento?
Absolutamente nada a não ser o prazer de imaginar prados verdes em que a chuva
Molha e acorda o cheiro a terra.
Imagino depois que dou uma grande golfada e o cheiro da terra molhada
Invade-me as narinas brutalmente.

Enquanto, estou na sala
E o poema conta estórias de luz e de outras coisas que não se podem ver
A não ser que as imaginemos.
A sala é todo um mundo-
Do poema, de nós mesmos e das coisas infinitas que temos dentro de nós mesmos.

Agora, entre a luz e a sala fecho os olhos,
Fecho os olhos muito devagar, devagarinho, para guardar dentro de mim
Luzes, salas e tantas, tantas coisas.
E adormeço. E sonhando vou até aos prados verdes que imagino e agora sonho
Onde um dia de chuva faz com que cheire muito a terra molhada.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Tarde alexandrina ou O Velho Criador da(s) Palavra(s)

Em Alexandria certa tarde encontrei um homem numa esquina. Não representa qualquer dificuldade encontrar um homem numa esquina numa tarde de calor em Alexandria. Descrevê-lo é desnecessário: era um homem velho igual a todos os homens velhos de Alexandria que em si são todos iguais. Não me tivesse falado teria passado por ele na busca duma sombra melhor. Mas falou-me. Adoptava um ar grave quando falava. Tinha uma voz encantadoramente pausada e cada sílaba era dita como um acto religioso. Ainda que não entendesse o que dizia (tinha um árabe demasiado dialético para mim) ouvi-lo era mágico. Cada palavra era todo a possibilidade de ser todas as palavras ao mesmo tempo. A partir de certo momento deixei de tentar descortinar sentidos ou sequer de os imaginar. As palavras diziam-se na sua boca e isso era o bastante para mim. E nos minutos em que o ouvi aquele velho foi Deus para mim, Javé num tempo ancestral criando o Mundo em que a Palavra era em si a Essência.

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Vista do mar sobre a janela da casa branca

Não esqueças as palavras da casa branca-
Seus sentidos amargos e doces
Como as frutas da árvore que grande
Cresce no quintal.

Não esqueças os segredos espalhados
Em cada esquina, em cada canto
Palavras encantadas de dizer dia, manhã e sol.

Não esqueças os cheiros prenhes de palavras
Ainda por nascer,
De sensações indescritíveis.

Não esqueças o não dizer do silêncio,
A vista certa do mar numa tarde debruçado
Na janela
E todas as coisas possíveis de construir
No instante exacto em que cada palavra te sai da boca.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

A casa antiga

Na esquina das escadas com a porta envidraçada da livraria- aí é onde o cheiro da casa é mais forte.

Pequenas aranhas tecem um labor ao longo das paredes. Tudo é interior e bom.

A casa está carregada das recordações de todas as infâncias.

terça-feira, novembro 17, 2009

Jogo parco

Deus do mar,

construo hoje a casa onde hei-de nascer nesse dia que tu sabes.

Servirá de Babilónia ou Atenas e serão apenas alguns livros como mobília.

Tempo da memória para construir um corpo novo.



As Parcas jogam os dados no pateo exactamente quadrado.

Parole

Não digas nenhuma palavra. Não é tempo delas.

Não há tempo delas.

As palavras vivem melhor se não existerem nas nossas bocas,

Mas apenas onde as fabricamos.

domingo, outubro 18, 2009

Crónica de grande revolta ou Último apelo àquele que se esqueceu

Lento reajustar das placas tectónicas, novo decifrar de novas línguas. Criar um mundo agora de barro fundido, esperado mais forte, deixando outros ventos para trás.

Que nada se faça, contudo, assim- como eu me quedo agora: em fúria, em raiva e tanta mágoa. Porque de tudo o que dissemos já não te sinto, e em tudo o que fizemos já não te encontro. Esqueceste-me numa das curvas. E deixaste que o tempo arrastado rompesse o que antes havia.

Que nada se crie assim. Os deuses, por fim, far-me-ão dormir. E do sono virá nova manhã. Nessa manhã possa ser mais do que sou agora. E mesmo que lá não estejas possa haver um sentido de real em cada coisa que será criada.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Ânsia

E se numa palavra te pudesse dizer diria mais que saudade, embora por vezes ausência. Mas se ainda assim fosse só uma, diria: Anseio!

sábado, outubro 10, 2009

De uma videira outonal

De quantos frutos nascem nas árvores, do número de todos não bastaria para esboçar de quanto te sinto a falta.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Carta a um dia fascinado de Verão ou Langor d'Infância

Quero outra vez um dia de Verão. Entenda-se que não peço um dia de sol, mas sim que quero um dia de Verão.



Nos dias de Verão é mais fácil escrever: tudo é mais luminoso e tem mais vida. Podemos falar de uma cadeira de vime no alpendre e de uma almofada fofa no assento. Verde com riscas laranjas e contornos azuis. Assim, exagerada de cor. São três da tarde e o sol bate levemente por sobre o caramanchão que me dá sombra. Uma estrutura simples coberta pelo maracujaleiro em flor. Cheira! E como cheira. Três da tarde é a hora dos gatos e dos segredos. Já é insuportavelmente tarde para o almoço dum dia comum e infinitamente longe de uma hora boa para o chá. É uma hora que não existe. Na casa alguém dorme a sesta num dos quartos com as quatro paredes altas. Os tectos finamente decorados a estuque são como antigos mobiles ou clepsidras que nos fazem adormecer. Contando que nos viremos algumas vezes na cama. Podia estar a escrever, agora que estou no jardim, sentado numa cadeira de vime com uma almofada colorida por assento. Enquanto, prefiro pensar numa sesta não demasiado tranquila no quarto do fundo. O quarto do fundo é grande e branco e tem um tecto como um clepsidra como os outros quartos da casa. Mas não é isso que me atrai. Numa proporção certa a cama enfrenta a janela cuja vista se joga sobre a cidade. Continua depois no mar. Bastaria agora que me levantasse, que pisasse com os pés nús o chão morno de cantaria. Em jeito manso subiria as escadas para encontrar num instante a porta envidraçada da biblioteca. Agora caminhar no longo corredor dum silêncio impossível, feito de velha madeira rangente. A mão poisada sobre a maçaneta, rodando-a num gesto de pulso. De seguida fecho a porta e corro também as cortinas. Às três da tarde todas as luzes devem ser a meia luz. O corpo descansado sobre a cama. O tecto em clepsidra e as paredes altas e brancas e o sol por entre as cortinas leves. Meia-luz com a alma a meio-gás como se meio adormecida. E agora estou sentado na cadeira do jardim a pensar que poderia estar deitado na cama do quarto do fundo. Aí imaginaria o turpor das quatro da tarde, quando nem por um instante houvesse silêncios. As crianças a descer velozmente as escadas, aos tropeções ligeiros; o jardim muito cheio; alguém a por a mesa do lanche. E tudo isto como um preparar lento do funeral duma tarde de verão que se fecha com o ritual do chá servido quente pelas cinco.

Hoje Outubro quase vira Outono. Há ainda resistências do sol e sobretudo da luz. Agora na janela frente à estação de comboios felizes e também velozes penso- no corpo sentado na cadeira no jardim, pensando no corpo deitado na cama do quarto, imaginando a agitação que virá para preparar o final de mais uma coisa que começa. Onde estarei eu pelo mês de Agosto?

quarta-feira, outubro 07, 2009

Palas Ateneia de Rembrandt

I

Quero olhar sem nunca pestanejar até que me sequem os olhos.

(Há que começar com uma frase forte, que marque o leitor e o arrepie. O afastamento da estética pela estética produz o pensamento do leitor).

A intensidade do quadro, nas suas manchas de vermelho sangue vivo, contrastavam fortemente com o ar plácido do rapaz hermafrodito. Como se a inocência fosse arrancada num traje militar.

(Ainda o choque. Tentar ouvir o sofrimento do leitor. Jogar-lhe com manchas de tinta para cima e vê-lo sacudir-se como se salpicado de sangue).

A lança decorativa resta-lhe na mão. Na cabeça a coruja ilumina a sua sabedoria. Estranho jogo o da guerra e o do saber. Onde há um não devia haver o outro.

(Agora apela-se ao sentimento de justiça. Que o leitor sinta, e mais que isso saiba, que o que lê é boa literatura do seu tempo: cheia de ideias e valores, pronta a corrigir e carregar nos erros do passado).


II

Teria sido, certamente, capaz de restar ali por horas até que me secassem os olhos. Não, tanto não! estou ali para ver, ver sempre. Não para deixar de ver.
Queria saber se as manchas de tecido encarnado sobre a armadura dourada têm especial significado. A verdade é que não sei nada de arte. Estou aqui porque gosto de estar aqui. A estética leiga do olhar distante deste rapaz efeminado bastou para que me sentasse a vê-lo. Há outras coisas, mas são para a hora dos segredos. Em geral, a minha opinião é completamente leiga: gosto porque gosto, é há bastante que me chegue nesse gostar.

Sentado, de pé, de lado e por vezes mesmo com coragem para ser de frente olho o quadro. Depois do tempo desço as escadas depressa. Corro os placares um a um com uma calma rápida e mais que isso sedenta. Lá está! Por €3 trago-o para casa. Agora é só meu, como é de todos os outros que o pagam, compram e visitam. Olho-o com um enamoramento recém descoberto. Começo um namoro secreto com o quadro.

sábado, outubro 03, 2009

Cliché de uma folha em branco

De dizer clichés
Como a folha branca dum papel
E a angústia que provoca:

Tentemos então metáforas sobre os rios
E a espuma branca
Das ondas fortes que rebentam contra as rochas
Como línguas lambonas.

Ou então pensar numa família
E fazer uma poesia vulgar- quotidiana mas modernaça
Falar de cervejas e futebol
E de pais gordos com correntes de ouro
E de mães meio tristes de bata gordurenta.

É bom em cliché
Falar-se do sorriso duma criança
Encontros e relações de luz e riso
E encanto
Que uma criança é fácil de encantar
Seja quem for, ainda mais num poema assim cliché
Como este aqui.

E tantas coisas, que num cliché cabe tudo
Nem falo em falar-se de amor.
Não acabava hoje este poema.

Mas há ainda a folha em branco
E por mais cliché que isso seja
O terror de estar por dentro em branco assombra-me mais
Que todas as outras coisas.

domingo, setembro 20, 2009

Mel

O espaço de cada letra invade-me violentamente e cada poro do corpo é agora conspurcado como por um mel doce que chegue.

domingo, agosto 30, 2009

Quando uma revolução tem dois lados

Lembro Cecília com certa exactidão. O queixo caído, os olhos também, o cotovelo agudamente apoiado à mesa, a mão aberta segurando a cara toda. Parecia esperar algo de indecifrável. Nunca olhava para mim, mas às vezes olhava Ângela pelo canto do olho. Ângela Carneiro de Albuquerque era uma brasileira cinquentona divertida que tinha sempre ar de quem tinha tomado sol a mais. Lembro-me de Cecília dizer :" Não a achas tão divertida, tão solta. É uma água de côco!"

Cecília gostava de água de côco quando passeávamos pelo Leblon perto das três da tarde quando o calor era ligeiramente insuportável. A sua blusa, sempre de cor clara, virava transparente e colava às costas. Ainda que a mim me impressionasse a Cecília parecia não mexer com ela. Era bom assim, era legal! Cecília era mais tranquila nesses anos. Vestia-se como as actrizes de "Dancin´Days" e gostava de drinks e boites. Tínhamos amigos na Barra que visitávamos aos Domingos e às vezes recebíamos na nossa cobertura. Cecília já dizia a palavra arrastada e com todas as vogais fortemente pronunciadas ao gosto brasileiro. Se foi feliz é raro eu saber, mas gostava daquela vida, eu acho.

Lembro Cecília naquela tarde. O avião tardava por demais. Três horas de atraso! E Cecília esperando algo mais que o avião. Nunca soube o que esperava. Ângela ria, contando estórias alegres da nossa última estadia em Búzios. (Ângela tinha uma casa lá que às vezes emprestava para a gente). O mar de Búzios é inesquecível, mas não era por isso que Cecília aguardava tão abstraídamente. Não era, tenho a certeza. Seu corpo colado ao vestido de linho branco, o grande casaco de peles apoiado no carrinho do aeroporto.

Sei lá quanto tempo passou desde que me perdi olhando Cecília até que ela despertou com a voz da aero-moça chamando para o nosso voo. Lembro com certa exactidão: era o dia três de Dezembro de 1982. Nosso voo foi longo mas passou por nós voando. Cecília estava cansada de ter esperado tanto. Como tinha ficado à espera por mais do que o avião estava visivelmente mais cansada que todos nós. O avião aterrou em Lisboa. Fazia pouco menos de sete anos que não estávamos na nossa terra, terra que o pai de Cecília lembrava saudoso chamando "Nossa Pátria". Chegados à nossa pátria lembro Cecília levantando sonolenta da cadeira do avião, eu colocando o casaco em seus ombros magros. Enquanto descíamos a escada nossos corpos foram os primeiros a saber que tínhamos verdadeiramente chegado: estavam 6 graus! Cecília, que não falava desde o Rio, apertou minha mão cravando as unhas ligeiramente na palma e falou quase como quem berra "Acordei António, não queria, mas acordei!"

domingo, agosto 16, 2009

Em estado

Tudo era bom como ter certezas e algo em mim evitava a saudade.

Tarde de Domingo

Suspirar de prazer numa tarde de Domingo. Vivo das pequenas coisas.

Carícias.

Queijos.

Vinho Verde.

Deixo-me e vagueio com alguma constância. Agora pelo corpo, depois pela mente, quase sempre pelos dois ao mesmo tempo.

quarta-feira, julho 29, 2009

Engano amantíssimo

Se o que fora não sou
Era de esperar que pudesse ser
O que não fui.

Em amar-te fingi amar
Quando amava de verdade.

De amor nome não dava,
Em meu peito consumido,
O que amor fora sem ser,
Sentindo eu,
Pudesse em outro ter sido.

Por um dia em que as coisas acabaram em talvez

Estranho,
É como te carrego.
Belos,
Os teus olhos indefinidos.
Exacto
É tudo o que nos resta além do que nós temos.

Coisas ditas

Diz-me como quem diga
Que o dizer não está no dito,
Mas em tudo o que se guarda
Nos silêncios repetidos.

Corpo d'água

O meu corpo é dum silêncio tão vasto que guarda segredos que já mal suporta.

Tarde em escala

Se em tardando tardasse
Em demorada demora
Podera que encontrasse
Em demoradíssima
Tarde
Novo dia
Em nova hora.

segunda-feira, julho 20, 2009

Carta-I

Um amigo fez chegar-me às mãos um espólio de cartas que diz serem de um antepassado seu e seus amigos. Tratam de um caso curioso entre o dito antepassado e uma paixão que ele teve durante o casamento. As cartas estão em inglês, mas achei curioso traduzi-las e postá-las nem que só por exercício. Segue uma das primeiras:

[Carta de Lorde Dashville a seu amigo o Dr. Ivorious MacCallister]

Dashville House, aos 13 de Junho de 1872

Caro Iv,

Estive ontem nos Blicwill. O mármore da entrada reluz e nas janelas de quase todas as salas caem cortinas novas. Lady Blicwill histerisa-se! Advinhar o porquê não é difícil, basta olhá-los. O marido mal se chega perto. Há rumores, mas Londres vive de sujidade e de rumores. Averiguar a sua exactidão é uma impossibilidade, quase. Tentarei falar com autoridades neste assunto. Logo segue outra carta com mais notícias. Pobres de nós que não temos mais que fazer que viver da vida dos outros.

Teu,

D

P.S.- Estou em casa da irmã dele em dois dias. Lady Elizabeth tem sido amorosa.

quarta-feira, julho 08, 2009

Relato de tarde em Mi(m) maior

Na sala dos grandes retratos fico esparramado na senhorinha. Isso, essa que está mais junto ao piano. Quem o toca? Já quase ninguém.

As paredes hoje são amarelas, mas já foram cor-de-rosa. Um tom mais claro, conveniente.

São três horas da tarde (bateu há pouco o relógio do escritório): a luz entra pelas cortinas demasiado finas e deixa-nos a todos uma moleza imemorável.

Quase que adormeço.

Quando digo todos falo de mim e de todas as pessoas que estão nos retratos na sala dos grandes retratos. Falo até mesmo daquelas que estão em pequenos retratos.

Mastigo uma broa de mel demasiado dura para ser mastigada. Quando estou quase a rasgar os dentes empurro com um cálice de vinho. Beberrico.

Ao longe, embora cada vez mais perto, há vozes de crianças como em tempos houve a minha ao tempo em que era criança.

Descem o Caminho Novo. Foram ver as folhas caídas no pateo de entrada do Clube. Lá não há estações: é sempre Outono!

Alguém marca uma soma com o sete de copas e o três de paus. É arriscado. Alguém, outro alguém, avança o dez de ouros. Oh, gritos! "Era meu", dizem a rir no quarto ao lado. Ninguém tem menos de oitenta anos.

Já são perto das cinco horas. Os retratos estão quase iguais salvo possíveis variações de humor que me são "presque" indetectáveis. É seguro afirmar que só eu darei por algo.

Levanto-me. Possivelmente adormeci em determinado tempo indeterminado.

Vamos agora embora. Não sem antes dizer os adeuses costumeiros a quem de direito.

Avó

Noites de infância:

E a sua voz cantava coisas
De acalmar o mundo.

sexta-feira, julho 03, 2009

Numa noite de poesia

De palavras em mentiras que tas conto
Das contas de fiar cada porfía
Amizade em amor verte o que conto
Sem verdade que já haja ou eu distinga.

Que te quero sei dizê-lo,
o corpo o sente,
Mas fazê-lo é esperança vã que me nasce e me tormenta cada dia.

Do que me surge quando leio poemas

Pela chegada da noite reservo-me direitos lânguidos.

Levemente esticado no grande cadeirão azul
O corpo de hoje dá à luz meu corpo para amanhã.

Rolam nos dedos folhas que dizem poesias.

Nos olhos agora o sono.

O sono é um banho tépido
Que a alma toma.

Adormeço como quem dorme descansado
Um sonho onde soubera o que começa,
Mas nunca acaba.

terça-feira, junho 30, 2009

sábado, junho 20, 2009

Dança entre a mulher mais bela do mundo e o rapaz de olhos de azul

Numa sala que não existe, onde a luz não há, a mulher mais bela do mundo aplica delicadamente o pó de arroz. Estrondosamente feliz ela agora invade cada salão.

O rapaz de olhos de azul é luz em si mesmo no pateo escuro. Agita os braços magros em gestos lentos. A face coberta de pó de arroz.

A música é um exaltação dos sentidos. Ambos vêem com os olhos demasiado abertos. Tudo neles é agora desperto e natural.

O rapaz de olhos de azul e a mulher mais bela do mundo são como duas crianças irmãs que se amam pela inocência dos olhos. São demasiado belos para perceber como de facto são exultantemente belos.

Os dois vivem agora uma felicidade isolada e compreendida a dois. São alheios ao impacto visual que causam em todos quantos os vêem sem por isso se deixarem de sentir de certa forma olhados.

Deixado só a um canto observo-os e imagino quanto de prazer me daria escrevê-los.

segunda-feira, junho 08, 2009

Das folhas

Há folhas mortas no meu jardim. Com que cuidado as limpo, lavo e penteio! Ansiosamente junto-as. Observo-as como quem mastiga algo superiormente bom. Enrugadas, por vezes estalam e partem apenas com ligeiros toques. Mesmo a essas guardo-as. Guardo-as todas em grandes jarros de vidro cuidadosamente transparente. Observo-as como um cientista disseca. Longas horas de Outono. Não falo delas nunca. Não são para se falar. São para eu observá-las Conheco-as por cada linha e dar-lhes-ia mesmo nome não fosse isso bizarro. Agora que é verão deixo-me quieto, calado e mudo até ao instante em que haja no meu jardim a primeira folha morta.

domingo, maio 24, 2009

Duma tarde de Domingo

Da vida dir-se-ia uma tarde de domingo. Ao fundo da sala resta a mesa cheia de coisas d'ontem: os pratos ainda sujos da sobremesa, os copos ligeiramente entornados deixando uma e outra mancha de tinto sobre a toalha. O corpo afundado no sofá, afogado em almofadas e mantas. Emoções em pequenas cenas passam no ecrã. Ocasionalmente, alguém ri e isso lembra-nos o prazer de ter amigos. Felizes, os olhares encontram-se na sala. Enquanto o sol morre na varanda sabemos, descansados, que está tudo bem.

sexta-feira, maio 15, 2009

Retrato de elegante saboreando um sorvete

Vejo-a enquanto morde e masca a fruta de gosto forte e ácido. Por vezes dá gritinhos e outras tantas faz caretas de desagrado. Mas continua a levar a fruta de gosto forte e ácido à boca. Estica os beiços e dá breves dentadas. Enquanto o suco lhe ultrapassa as papilas gustativas e lhe chega ao esófago, percebo um ritual humano e de segredos. Em cada gesto resta um espelho que revela o contrário do que esconde. Como ver agora cada reflexo em cada espelho e ainda assim sentir o seu sabor?

terça-feira, maio 12, 2009

Para uma tarde em que talvez amasse uma rapariga sobre uma janela

Dizem assim que é tão bela
E bela coisa de ver.
Não sei se bela é ela
Ou qualquer coisa além dela
Que se parece perder.

Tem recato e é bela,
Ela sobre a janela,
Isso todos dirão.
É ela mais bela que a janela,
Janela por ela aberta
Directa ao meu coração.

Das coisas que o corpo nu de um homem nos faz pensar

De um dia como hoje
Diga-se
Sol, mas também vento.

Sobre a mesa
A ideia
Da imagem do teu corpo estendido.

A pele escura e um cheiro
Intrincado
Difícil de destrincar.

Jogamos o jogo dos signos
E outro
Das palavras fáceis.

Há coisas ainda para dizer:
Agora as tuas mãos, como cavalos,
Pelos meus cabelos,
Como mar.

O teu beiço de carne
É agora
Silêncio.
Um gemido breve
Mas, lânguido.

Nele sei que há também outros dias,
De outras
Palavras,
Mas nunca mais como este.

quinta-feira, maio 07, 2009

Um corpo que não o toque

Teu corpo que não toque
E teus cabelos que não os sinta

Em força és ausência em mim
E quase abstracção

Não sei, mas sinto
E nem sei o que sinto

Nem nada do que é de saber

Teu corpo escapa-me
Foge-me

Ausentas-te de mim

Como se nunca mais viesses
Como se nunca estivesses
Perto do meu corpo

A respiração lenta
A viagem das tuas mãos
Novas terras que reclames

Lembra-me de chorar-te
No dia que chegar Outubro
Quando os dias perderem sentido

Ideia de mulher que dorme sobre uma rede

Simples como a água é o canto

De redores, de estradas, de espanto

De cavalos em fúria em teus cabelos.


E dizê-lo é chegar-te

Como o sol das três da tarde

Enquanto tua alma transpirada resta

Sob o sol de todos os dias.

domingo, maio 03, 2009

Evocando a última cena do bailado "Inês de Castro"

Dona Inês está morta, mas sussurra no ouvido de Dom Pedro:

"Leva-me a dançar sobre a água"

No corpo jacente e bailante de Inês, Pedro planta um jardim de coisas indizíveis. Tudo nasce sobre a água que submergiu o convento de Santa Clara. Essa água emerge em nós, sempre que uma Inês sussura ao ouvido de um seu Pedro.

Em noite frente ao Tejo ou Ensaios de literatura vindoira

Nas horas inumeráveis e inexistíveis encontro um espaço
Por onde abrir uma porta.

Coisas que se digam.
Guardo amenos silêncios romanos.

É de tarde no forum da minha vida
E estendo uma rede da coluna de Trajano à coluna de Adriano.

Uma cesta leve
Leva coisas que me fazem feliz

Como o rio.

Hoje é um dia em que estou frente
Ao rio assim que cai a noite.

Ao longe os cafés, os restaurantes,
Todas as coisas de frenesim

E na estação os combois vão para longe
Com coisas de livros que quero escrever.

terça-feira, abril 21, 2009

Gonçala sentada no muro

Não me lembro de estar parada há tanto tempo. Aqui é como se houvesse ausência de tempo. O tempo afogou-se no verde. Mas continua uma palavra constante.

Estou sentada em cima do muro e não falo há quatro dias. Penso muito. Observo sobretudo. A casa é grande e de pedra. Os nosso quartos são frios e pela parede escorre a humidade. O jardim em redor da casa é tão grande como o silêncio. Aqui tudo se funde misturado em círculos que se inter-cruzam continuamente sem entender o que é um ou outro. Silêncio, paz, pensamento, Verde.

Ainda há pouco passou por aqui um grupo de miúdos. Vi-os apenas ao longe. Pareciam figurinhas de desenho animado. Via-lhes os gestos desfocados e ouvia as suas vozes esganiçadas pela distância. Estavam alegres e riam. Talvez partilhassem estórias engraçadas uns com os outros.

Que pode achar um grupo de miúdos duma rapariga sentada em cima dum muro olhando o vale? E que me interessa isso? Eles não vão tocar a minha vida. Tão pouco eu a deles. Mas ainda assim, aqui onde nada é, parecemos ligados pelo Verde.

Agora fecho os olhos. Sou eu que estou também ali, do outro lado do muro, cheia de gente, contando estórias engraçadas duma outra vida que vivi.

quinta-feira, abril 16, 2009

Numa noite de dor d'alma

Perguntei no velho da tribo dos significados das coisas. Falou-me nas voltas do mundo e no voo do grande pássaro umbi-umbi. E disse de dias de tristeza e dor e falou dum sol, esse tal que nasce depois das coisas.

quarta-feira, março 11, 2009

Três elementos em variações, ainda que aproximadas, de escrita ou Retratos inseguros duma cena que vi numa telenovela e suas alterações

Atentemos: o corpo em rotação. Os fones pendurados nas orelhas como algo entre uns brincos e um colar. Alma esguia, corpo sadio. Há música! O vestido é azul e escorrega pela cintura até aos joelhos. (não há grande poesia em dizer-se joelhos). Tentemos de novo: o vestido é branco e escorrega pelas ancas. O movimento é langoroso. Dir-se-ia exacto. Sobretudo, sensual. É uma música que ela sabe, só ela sabe.

Um outro plano. Uma mulher, vulgar de trinta anos, digamos, tem um vestido azul. Agora está numa sala muito grande e dança frente ao espelho. Frente ao espelho está vidrada frente ao vidro. Vício da própria imagem. Quem será? Ela ou outra? O corpo dança. Não podemos repetir que é langoroso ou sensual. O corpo mexe-se num movimento envolvente. (sim, digamos envolvente). A música é da Ella Fitzgerald. Todos sabem como gosta d'Ella.

Como as ondas do mar assim o corpo se agitasse num vestido azul. A sua dança talvez em palavras de pouca poesia, poesia barata.

Tentemos de novo ainda uma outra vez. Na Fábrica do Braço de Prata. A cantora, ao fundo da sala, de uma das salas, canta um jazz sobre a Primavera. Ela já não tem fones entre uns brincos e um colar, mas tem brincos e colar. Está acopanhada. Por quem ainda não interessa bem. Ri muito alto, é estridente. O vestido é branco, mas tem uma barra azul. Poisou o martini na bancada. Segura a mão dele e puxa-o com muita força. Não mede os gestos. Nada é exacto senão a voz segura da cantora que está no fundo da sala. Abana-se e agita-se e estrangula-se em movimentos irregulares duma dança desorganizada.

(que diria esta mulher, a outra, a das primeiras vezes, se olhasse para esta mulher, esta a da última vez? o que há de comum em tudo)

A imagem é certa e forte. Talvez tente escrever sobre isso: uma mulher, um vestido e uma dança frenética ou talvez segura sobre tudo isto.

Enfim, alguma coisa... ou Temperança sobre a Viagem

De coisas frescas se faz uma manhã
De coisas simples o resto do dia.

Hoje há sol
Como quando a luz bate sobre a casa branca.

Medida exacta
Razão de ouro.

Sob o pateo quadrado algo ancestral.

Dias anteriores ao tempo.

E fronteiras além-mar até onde eu chegue.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Carni Vale

Mas o que imprime a sua marca ao Carnaval, o seu espírito enganador, é o dominó de veludo, conferindo aos que o usam o anonimato a que todo o homem aspira no fundo do coração. Tornar-se anónimo, no meio de uma multidão anónima, sem revelar nem sexo, nem origem, nem mesmo a expressão do rosto, porque a máscara desse hábito de frade louco só descobre dois olhos, brilhando como os olhos de uma muçulmana ou de um urso. Nenhum traço identificador; nem mesmo o contorno do corpo se desvenda. seios, coxas, faces, tudo desaparece. E escondido sob o hábito carnavalesco (como um desejo criminoso no coração, uma tentação irresistível, um impulso que aprece predeterminado) jaz o germe de qualquer coisa: de uma liberdade que o homem nem sequer se atreve a sonhar. O mascarado sente-se livre de fazer o que lhe aprouver. Todos os crimes impunes da cidade, todos os casos trágicos de confusão de identidade, são o fruto do Carnaval; e por outro lado muitas aventuras de amor se atam e desatam nesses dias em que nos libertamos do selo da personalidade, da servidão das nossas pessoas. Uma vez dentro da opa de veludo, a mulher perde o marido, o marido perde a mulher, o amante a bem amada. O ar crepita com o sal das contendas e loucuras, com a fúria das batalhas, com a agonia de uma noite de buscas infrutíferas, de desesperos. Nunca se sabe se dançamos com uma mulher ou com um homem. As márés sombrias de Eros, que exigem uma identidade total para inundarem a alma humana, explodem durante o Carnaval com uma força longamente represada e libertam estranhas criaturas primitivas- as perversões que são, suponho eu, o alimento da psique-, seres que se podem crer fugidos do monte Brocken ou das garras de Eblis. Sim, quem pode deixar de amar o Carnaval quando nele todas as dívidas se pagam, todos os crimes se expiam ou cometem, todos os desejos ilícitos se satisfazem, sem culpa ou premeditação, sem as penas que a consciência ou a sociedade humana combinam?

In "Quarteto de Alexandria. Baltasar"

Excertos- I

Foram os melhores dias da vida de Tancredi e de Angelica, vidas que viriam depois a ser tão diversas, tão pecaminosas sobre o inevitável fundo de dor. Nessa altura porém não o sabiam e ambicionavam um futuro que julgavam mais concreto, embora depois se revelasse feito apenas de fumo e vento. Quando já eram velhos e inultilmente sábios, os seus pensamentos regressavam a esses dias do desejo sempre presente porque sempre vencido, dos inúmeros leitos que se tinham oferecido e que tinham sido recusados, do frenesim sensual que, refreado, se sublimara, por um instante, em renúncia, ou seja, em verdadeiro amor. Esses dias foram a preparação para o casamento que, mesmo no plano erótico, foi um fracasso; uma preparação, porém, que assumiu o aspecto de algo independente, delicado e breve: como aquelas aberturas que sobrevivem às óperas esquecidas e que contêm em esboço e cheias de uma vitalidade velada de pudor, todas as árias que sem qualquer destreza eram depois desenvolvidas na ópera, e fracassavam.

In "O Leopardo"


Quanto a mim, foi como se não tivesse lá estado, ou muito pouco... Na obscuridade da capela, iluminada apenas pelos dois cilícios do altar, naão vi a quem dava a mão. O bom Henri de Montchevreuil, que me servia de testemunha, disse-me qualquer coisa, mas não percebi o quê. Não ouvi o rei responder às perguntas do arcebispo, não me ouvi a mim própria consentir na minha elevação. Só recuperei a consciência de mim mesma por volta do Agnus Dei para reflectir que estava a ser tão glorificada neste mundo que tinha motivos para recear ser humilhada e confundida no outro; e recaí no meu estupor até ao último evangelho, quando subitamente disse a mim mesma que não poderia subir mais alto.
Comecei, então, a temer o tédio.

In "A Alameda do Rei"

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Tela Roubada de A. (Revisited)

Entenda-se umas águas furtadas na Baixa de Lisboa. É Maio e por isso há sol. Frente a uma das janelas da casa há uma cadeira e uma mesa próxima da cadeira. A. está sentada e tem uma revista sobre o colo. As mãos, por vezes, passam as folhas, mas ela está sobretudo distraída com a luz da manhã lá fora. Olha para o lado. Sobre o sofá está o vestido que usou ontem à noite. Caído ao acaso A. descobre-lhe uma posição estética como se tivesse caído assim com alguma razão. Depois volta a concentrar-se na luz que vem da janela. Ainda tem a revista no colo, mas já não a folheia. Em cima da mesa há um copo com sumo de laranja. A. pegue nele e leva-o aos beiços. Bebe uns goles. Pousa o copo e levanta-se. Debruçada sobre o varandim A. corta algumas camélias. A. tem três varandins e ao longo deles plantou camélias. Antes havia rosas, encarnadas e brancas, mas o seu cheiro intenso e doce empastava a casa nos dias quentes de Agosto. Era apenas insuportável. Então A. desceu à Parça da Figueira e numa loja de esquina comprou sementes de camélia. Delicadamente, como quem estuda um gesto sem saber A. pega numa jarra. As camélias estão agora na jarra e A. dá-lhes um último toque. Pára uns momentos entre o distraída e o absorta e pensa no que irá fazer. Há mais um corpo deitado na sua cama e há que equacioná-lo. Entra no quarto. O homem está só ligeiramente tapado pelo lençol. A. repara nas costas fortes, nos ombros largos e na pele profundamente morena. E na luz que entra pela janela e banha o corpo do homem que dorme. A. entra na banheira. Com um gesto rápido roda a torneira e sente a água fria. O corpo contrai e a respiração torna-se mais rápida. Sente cada parte. Enquanto passa o sabão pelo corpo lembra-se da noite d'ontem. A música, a dança frenética, a casa, a cama, o seu corpo demasiado branco contra o corpo dele demasiado moreno. A. envolve-se agora na toalha. No quarto ele acordou com o som da água e levantou-se. Veste-se rapidamente e diz que prefere tomar banho em casa. A. olha-o talvez esperando que ele saia do quarto. Ele senta-se numa ponta da cama ainda por fazer. A. arranja os cabelos, livra-se da toalha e veste o vestido amarelo. Ele olha-a sempre em tudo. Ela está de costas, ams ve-o e isso deixa-a feliz.

Agora sairam. Passaram o Rossio e começam a entrar na Praça da Figueira. Daqui a pouco não será mais manhã. Gentilmente ele abre-lhe a porta da Confeitaria Nacional. Ouve-se uma música alegre. Dessas que os cantores americanos lançam na Primavera. Ela sobe a escada à frente e lá em cima escolhe a mesa. Senta-se numa cadeira junto à janela. O empregado vem e eles pedem. Enquanto esperam e depois enquanto comem falam de coisas supinamente triviais. C. tinha uma exposição perto da Graça que eles tinham que ir ver. I. lançava um novo romance nessa tarde, mas ele não podia ir. E depois a política, e a sociedade e o estado da arte. Mas a vida acontecia lá fora. A. equilibrava-se agora entre a conversa com ele e a vista sobre a Praça da Figueira. E os skaters perto da estátua, e os homens encostados à paragem do metro de olhares vagos, e as prostitutas que abriam as janelas das suas pensões de ratos e baratas. Os autocarros amarelos da Carris e os eléctricos estridentes. As pessoas apressadas e mais aquela que quase ia sendo atropelada por não respeitar o sinal. Os miúdos que chupavam em grandes doces ou trincavam bons bolos e as mães desesperadas com o melaço que escorre e mancha e suja tudo. E a possibilidade de tantas outras coisas entre a janela de casa e o varandim da Confeitaria Nacional. Ele está a pagar. Ela lança a mão à bolsa, mas ele cobre o gesto com a sua mão. Eles descem a escada e ela vai à frente. Já na rua despedem-se com um beijo. E têm mesmo que ir ver a exposição de C. e ele não vai mesmo poder ir hoje ao lançamento do livro de I., mais por embirração do que por indisponibilidade. A. tem que passar por casa antes de ir almoçar com L. como prometeu. Levanta o pulso e olha o relógio. Ainda tem tempo. A. desce a Rua Augusta. Quantas vezes podem oferecer drogas a uma pessoa? Os turistas debruçados nas montras das lojas típicas e os portugueses a encherem a Zara. E som e luz e cor. E vida! E A. chega a uma Praça do Comércio agora restaurada, agora longe dos tempos da crise. O coração da cidade bate ao mesmo tempo que o seu. Cedo A. vai partir para Berlim e ainda não sabe quando volta. Voltar isso há-de voltar. Tem voltado sempre à cidade. E no cais das colunas, o rio em frente e a cidade nas costas, A. fecha os olhos e inspira com força. Tem os pulmões cheios do ar do rio. Agora A. constrói o amanhã.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Em Alexandarplatz ou Um dia na toirada ou ainda Viagem entre a Alemanha e a arena dentro de mim mesmo

Para G., sem autorização de ser miserabilista.

Algures no vazio de Alexanderplatz passeia uma multidão de gente. Os sons estridentes da cidade, entre os comboios velozes e os infindáveis autocarros. A Galeria e as salsichas e os donuts e todas as coisa que fazem uma praça da cidade.

Depois olhei para dentro de mim mesmo.

Era um dia de arena e toirada. E a vida feito toiro marrava num recanto até correr na minha direcção. E fiquei sem ar e quase sem pulmões e não respirei durante segundos demasiado longos. E tive os olhos sempre fechados. Mas quando os abri tinha agarrado o toiro pelos cornos.

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Berlim- Impressões II

Entre as avenidas largas gosto de olhar as pessoas. Berlim entre os anos noventa e o estilo alternativo. As bicicletas passam por estradas de pedra vermelha em cima dos passeios. Ninguém sorri, mas três portugueses falam sempre muito alto onde quer que estejam. Nas lojas o hábito latino faz-nos mexer em tudo. "Olha, não achas giro?" e os olhares da caixa registadora meio desconfiados. O preto é quase imperante na rua, seja nas roupas, seja nos grandes outdoors que aqui e ali vestem os prédios altos da cidade. É uma cidade de contrastes entre a riqueza dos edifícios capitalistas e a dureza magnânima dos edifícios da RDA. Na parte boémia onde vivemos, os jovens andam em grupo e abraçam-se muito. A vitória do capital sente-se muito aqui. Entre pequenas lojas de colares e bugigangas e mercearias de cantinho há por todo o lado aliciantes fast-food's. Chineses, japoneses, vietnamitas, tantos turcos e claro os normais americanos. Oásis são as pastelarias alemãs e os seus muitos bolos de aspecto e sabor maravilhoso. Custa não comer quase tanto como custa fazê-lo. No país mais caro da Europa os preços sobem. Mas é irressistível com tantos belos convites. Nos nossos sacos comprados a vinte cêntimos descemos a rua até uma mercearia aqui perto. Os olhos bem fechados para não cair em tentação. Na casa branca, breve e quente o pão com gouda lembra de alguma maneira o pequeno-almoço em Portugal. Lá fora Berlim em stand-by só durante um momento.

Berlim- Impressões I

Numa praça de Berlim, com frio pelas pernas, o rio ao fundo sob pequenas pontes. O mundo cosmopolita atravessado por uma linha velha e ténue onde o comunismo existe em pequenos homens nos semáforos. Alguém passa com um chocolate quente na mão. A vida pelas montras das lojas. A vida das avenidas largas e das gentes apressadas em bicicletas e metros de rua. Berlim dos homens vestidos de preto e dos grandes outdoors. A cidade cosmopolita e intensa sob o frio imenso quase que gela.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Noite

Nada sei de estórias de reis que te conte

E de embalar sei a vida que me passa

E não me deixa nunca, nunca...

Os mares além da Grécia

Diz-me de sonhos breves

Assim, na minha mão

Casa e corpo e pão

E canto leve

Onde te cante dias de encanto e espanto

Sonho ainda breve

E trémulo e meu

Ondas de um mar Egeu

Sem fim, mas com pranto.

De um mar de azul e ondas

De azul e ondas
Como primeiro

É dia sem riscas

Meu quarto de sala de alma
De forno quente de coisa alguma

Registo marujo e espuma
Como num mar encarniçado

De azul e de ondas.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Gustavo- Corte (I)

A Tia Bé tinha uma casa nas Azenhas do Mar. Era branca e breve. Não tinha telhado, mas terraço e a todo o comprimento uma grande varanda estendia-se sobre o mar. Não havia nada de extraordinário nesta casa. A Tia Bé era uma mulher que tinha dinheiro suficiente para pagar somas exurbitantes para viver numa pequena casa branca numa colina frente ao mar. Não havia nada de romântico nisto, só de económico. O dinheiro da Tia Bé era a fonte que alimentava a beleza da sua casa.

Gustavo nunca pensou isto da casa da Tia Bé. Era para ele um espaço ideal onde cada coisa era guardada num sítio exacto de ser. As ânforas milimetricamente colocadas por uma questão de estilo eram para ele uma essência dum mundo onde ele ansiava por chegar, duma forma una e real de existir.

Mal chegou Gustavo enfiou-se na varanda. Podia ter ficado a contemplar o mar, mas sentou-se, dobrou os joelhos e meteu a cabeça no meio deles. O barulho do mar era forte e o seu cheiro era intenso. Deve ter ficado assim muito tempo porque de súbito sentiu escuro à sua volta e é sabido que no Verão o escuro demora muito a chegar e quase nunca existe verdadeiramente. Além do cheiro do mar havia um cheiro intenso a orégãos. A casa da Tia Bé cheirava sempre a orégãos porque era feita para cheirar sempre a orégão. Era um cheiro mágico de acalmar as mágoas e de despertar a fome.

O mar batia mais forte sobre a areia lá fora, agora que era noite. Como nascendo dum estado fetal Gustavo foi-se levantando. Erguido, aproximou-se da varanda, olhou o mar de frente, fechou os olhos e encheu os pulmões de maresia. Há um tempo breve a porta tinha-se aberto e a Tia Bé tinha-se esgueirado por ela. Pôs-se de pé, sempre muito direita e deixando os olhos no horizonte perguntou-lhe:

- Até onde é que consegues ver?

- Até dentro de mim. Ou é assim que pelo menos tudo isto me parece.