sexta-feira, outubro 12, 2007

Jantar do conde e do general

O criado fechou a porta. Entram minutos que se vão arrastar até determinadas infinitudes antes que o criado a volte a abrir. É um ritual longo, mas sobretudo arrastado pelo tempo que se prepara. Não há música e quem fosse atento diria não haver respiração. Apenas o toque constante e confuso do relógio sobre o mármore da madeira no tic-taquear infinito do tempo que guarda. São oito horas exactas e é de noite. Talvez seja Novembro. Se for, em meses será Primavera e quando os ponteiros chegarem ali será de dia. Mas serão sempre oito horas. Sem estações, sem manhãs ou noites e quase sempre sem tempo.

O general não é um homem velho. Alguma coisa acabou nele há muito tempo, ainda assim. Dir-se-ia dele o resultado dos estragos que os anos trazem, mais do que provocam. Foi um homem duro que se deixou vencer pelas durezas da vida. Vive numa lucidez que só em si é lúcida e o grande espelho por cima da lareira devolve-lhe uma imagem que só ele vê. Outros veriam um homem alto e de meia-idade. Ele verá coisas que não podemos saber. Não vemos com os seus olhos.

O conde já lá está, sentado para as janelas, perdido numa poltrona qualquer da sala. Nunca é a mesma. Há-de se sentar em todas para que o general entenda que não se pode sentar em nenhuma. Existe cada vez mais elegante, cada vez mais artificial na esperança de alguma vez existir para ele. Os olhos do general estarão sempre fixados no espelho sobre a lareira. A cada ruga uma razão, a cada traço um motivo, a cada gesto a certeza de que nada mudou. Ainda que o conde use um magnífico colete em seda selvagem pouco lhe importa. É um esforço que não há-de fazer. Um esforço que também há de ter retorno. Quantas vezes, no prolongar dum ritual vazio de sentido, tentou o conde encontrar o outro reflexo no reflexo do general?

Sentam-se. A mesa em toda a elegância da etiqueta gela o que já de si é menos que morno. Nada para o aproximar. Tudo para o espantar. Cada espaço ocupado no desejo de um olhar que se desprenda do espelho. Mas porque há-de ele olhar para outro lado que não para o espelho? Que há dele nesta sala senão o seu próprio retrato inventado na devolução do reflexo? O conde nunca olha para o espelho. Não para aquele, ou não para aquele como se fosse aquele. São tantos os seus espelhos nos seus corredores da sua casa que repetem a sua imagem cada dia mais magnífica. Um homem que veste um colete bordeaux de seda selvagem há-de ser realmente esplêndido. Que lhe interessa o reflexo? Que interesse pode ter para o general a extravagância palerma dum colete bordeaux?

A sala é ampla e branca em seus contornos. A mesa fica para lá da porta e para cá das duas poltronas que enfrentam a lareira, as janelas, o jardim. Mas as cortinas foram corridas pelo criado quando o conde se levantou. O criado já serve há muito tempo. Frente a frente o conde e o general trocam expressões delicadas. Um há-de mostrar ao outro que aquele é o seu espaço. O outro nem sequer se lembrará de pensar nisso durante todo o jantar. O olhar reprovador do general recai sobre o prato quase cheio do conde, mas mais sobre os talheres cruzados. Será que percebe que o conde lhe devolve um olhar de raiva? (Será que ambos sabem que se destroem no terror das coisas breves que se calam?)

Que criança parva é esta que brinca às bonecas neste palácio de muitas salas que a sorte mais que a morte da mãe lhe deixou? Que homem frio é este que nada sabe dos outros, ou dele ainda que fosse?

Apenas dele, nem que fosse apenas dele. Uma tarde. Que bom seria Abril. O jardim. Uma mesa lá fora. O gosto bucólico das conversas banais. Depois um abraço, um recanto. Algo onde se esconder. Ele que o protegesse.

No vai-e-vem do garfo há-de pensar que criança pequena que não soube crescer.

Não há lugar para coisas idealizadas. Não há lugar para bucolismos. Não há espaço para abraços. Há só o ar pesado e sufocante da sala. O barulho ensurdecedor do relógio. O arrastar mais que lento do tempo. A dor que os dois pagam para estar aqui. Frente a frente- o conde e o general, no braço de ferro das emoções. Que não se chegue ao outro nunca, que não se diga nunca nada. Que nesta sala não haja lugar para fraquezas.

(E se ainda assim ele visse alguma coisa no espelho. E se ainda assim ele reparasse no colete bordeaux.)

O relógio já bateu horas. O tictaquear dos tempos é mais lento, mais calmo, mas constante. Já quase se pode respirar. O conde levanta-se, o general também. Olham-se, estão frente a frente- o conde e o general. É a hora das palavras:
-Então até à próxima quarta.
-Até à próxima quarta, pai.

1 comentário:

colher de chá disse...

Tens escrito tanto! E eu tão distante das tuas palavras... tão longe de adivinhar por detrás dos montes a tua grandeza maior, minha profunda admiração.

Resultou tanto e tão bem. Ensina-me como fazes!