terça-feira, dezembro 29, 2009

Os odores de Samarcanda ou Viagem Oriental através dum livro

De Samarcanda guarda o cheiro do bazar. A luz reflecte levemente nas pedras de âmbar dispostas nos tabuleiros de quase todas as bancas. A cidade confude-se com ruídos que te confundem. Confia apenas no teu cheiro e nada mais. O Verde é apenas uma miragem dos ricos jardins além-muros, nos palácios inacessíveis do Oriente. Não percas tempo com eles. As casas são de tijolo cru e batido e ainda cheiram a terra e a poeira. Era assim há mil anos como é hoje. Se buscas cor, confia de novo no cheiro e vai até à mesquita. Admira agora os ricos azulejos da sua porta e do alto do seu minarete. Encosta o nariz a um deles e sente. Sente agora o cheiro dos anos, do tempo, o cheiro do corpo de centenas de homens em oração em mistura com o barro cozido num fogo demasiado alto. É o fogo que queima o barro e os homens de fé que rezam. Escolhe agora uma rua tortuosa. Atravessa as casas e ligeiramente olha para o seu interior. Uma casa cheira sempre a comida e a lume. A lume brando e calmo. Que ouvirás dentro das casas? Risos, queixas, gritos, carícias, prazeres. As casas de Samarcanda são como todas as casas do mundo onde moram pessoas. Que há de diferente nas pessoas de Samarcanda em relação com as pessoas do mundo? Descobre nelas o cheiro da Pérsia. Não desta Pérsia de agora. Dessa que dorme um sono no coração dessas pessoas. Aproxima-te do coração dum habitante de Samarcanda e cheira-o. Encontrarás aí tapetes voadores, abóbadas douradas, turbantes e espadas curvas. Ali dorme o país encantado, no coração batente de cada cidadão de Samarcanda.
Depois, lembra-te apenas do cheiro, nada além do cheiro, e que ele te guie sem destino pelo labirinto das ruas de casas sempre iguais, pelo labirinto de rostos sempre iguais até chegares a um sítio que só o cheiro sabe onde é.

Experimentação em trilhadas trincheiras

Sigo o trilho desta trilha
Com minh'alma trilhada em coisas d'alma
Entrincheirada em trincheiras tão trincadas
Que até trincar o pão duro é difícil
Enquanto sigo o trilho desta trilha
Que me leva ao nada.

Poema dum dia de chuva ou Evocação bucólica

Digamos um poema de sala e de luz.
As palavras constroem-se como se chamadas a isso.

Tudo é natural e bom como um dia de Inverno com muita chuva.
Ao redor da minha janela deito-me a imaginar prados verdes.
Que há de bom em imaginar prados verdes num dia de chuva
E céu cinzento?
Absolutamente nada a não ser o prazer de imaginar prados verdes em que a chuva
Molha e acorda o cheiro a terra.
Imagino depois que dou uma grande golfada e o cheiro da terra molhada
Invade-me as narinas brutalmente.

Enquanto, estou na sala
E o poema conta estórias de luz e de outras coisas que não se podem ver
A não ser que as imaginemos.
A sala é todo um mundo-
Do poema, de nós mesmos e das coisas infinitas que temos dentro de nós mesmos.

Agora, entre a luz e a sala fecho os olhos,
Fecho os olhos muito devagar, devagarinho, para guardar dentro de mim
Luzes, salas e tantas, tantas coisas.
E adormeço. E sonhando vou até aos prados verdes que imagino e agora sonho
Onde um dia de chuva faz com que cheire muito a terra molhada.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Tarde alexandrina ou O Velho Criador da(s) Palavra(s)

Em Alexandria certa tarde encontrei um homem numa esquina. Não representa qualquer dificuldade encontrar um homem numa esquina numa tarde de calor em Alexandria. Descrevê-lo é desnecessário: era um homem velho igual a todos os homens velhos de Alexandria que em si são todos iguais. Não me tivesse falado teria passado por ele na busca duma sombra melhor. Mas falou-me. Adoptava um ar grave quando falava. Tinha uma voz encantadoramente pausada e cada sílaba era dita como um acto religioso. Ainda que não entendesse o que dizia (tinha um árabe demasiado dialético para mim) ouvi-lo era mágico. Cada palavra era todo a possibilidade de ser todas as palavras ao mesmo tempo. A partir de certo momento deixei de tentar descortinar sentidos ou sequer de os imaginar. As palavras diziam-se na sua boca e isso era o bastante para mim. E nos minutos em que o ouvi aquele velho foi Deus para mim, Javé num tempo ancestral criando o Mundo em que a Palavra era em si a Essência.

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Vista do mar sobre a janela da casa branca

Não esqueças as palavras da casa branca-
Seus sentidos amargos e doces
Como as frutas da árvore que grande
Cresce no quintal.

Não esqueças os segredos espalhados
Em cada esquina, em cada canto
Palavras encantadas de dizer dia, manhã e sol.

Não esqueças os cheiros prenhes de palavras
Ainda por nascer,
De sensações indescritíveis.

Não esqueças o não dizer do silêncio,
A vista certa do mar numa tarde debruçado
Na janela
E todas as coisas possíveis de construir
No instante exacto em que cada palavra te sai da boca.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

A casa antiga

Na esquina das escadas com a porta envidraçada da livraria- aí é onde o cheiro da casa é mais forte.

Pequenas aranhas tecem um labor ao longo das paredes. Tudo é interior e bom.

A casa está carregada das recordações de todas as infâncias.