domingo, outubro 18, 2009

Crónica de grande revolta ou Último apelo àquele que se esqueceu

Lento reajustar das placas tectónicas, novo decifrar de novas línguas. Criar um mundo agora de barro fundido, esperado mais forte, deixando outros ventos para trás.

Que nada se faça, contudo, assim- como eu me quedo agora: em fúria, em raiva e tanta mágoa. Porque de tudo o que dissemos já não te sinto, e em tudo o que fizemos já não te encontro. Esqueceste-me numa das curvas. E deixaste que o tempo arrastado rompesse o que antes havia.

Que nada se crie assim. Os deuses, por fim, far-me-ão dormir. E do sono virá nova manhã. Nessa manhã possa ser mais do que sou agora. E mesmo que lá não estejas possa haver um sentido de real em cada coisa que será criada.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Ânsia

E se numa palavra te pudesse dizer diria mais que saudade, embora por vezes ausência. Mas se ainda assim fosse só uma, diria: Anseio!

sábado, outubro 10, 2009

De uma videira outonal

De quantos frutos nascem nas árvores, do número de todos não bastaria para esboçar de quanto te sinto a falta.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Carta a um dia fascinado de Verão ou Langor d'Infância

Quero outra vez um dia de Verão. Entenda-se que não peço um dia de sol, mas sim que quero um dia de Verão.



Nos dias de Verão é mais fácil escrever: tudo é mais luminoso e tem mais vida. Podemos falar de uma cadeira de vime no alpendre e de uma almofada fofa no assento. Verde com riscas laranjas e contornos azuis. Assim, exagerada de cor. São três da tarde e o sol bate levemente por sobre o caramanchão que me dá sombra. Uma estrutura simples coberta pelo maracujaleiro em flor. Cheira! E como cheira. Três da tarde é a hora dos gatos e dos segredos. Já é insuportavelmente tarde para o almoço dum dia comum e infinitamente longe de uma hora boa para o chá. É uma hora que não existe. Na casa alguém dorme a sesta num dos quartos com as quatro paredes altas. Os tectos finamente decorados a estuque são como antigos mobiles ou clepsidras que nos fazem adormecer. Contando que nos viremos algumas vezes na cama. Podia estar a escrever, agora que estou no jardim, sentado numa cadeira de vime com uma almofada colorida por assento. Enquanto, prefiro pensar numa sesta não demasiado tranquila no quarto do fundo. O quarto do fundo é grande e branco e tem um tecto como um clepsidra como os outros quartos da casa. Mas não é isso que me atrai. Numa proporção certa a cama enfrenta a janela cuja vista se joga sobre a cidade. Continua depois no mar. Bastaria agora que me levantasse, que pisasse com os pés nús o chão morno de cantaria. Em jeito manso subiria as escadas para encontrar num instante a porta envidraçada da biblioteca. Agora caminhar no longo corredor dum silêncio impossível, feito de velha madeira rangente. A mão poisada sobre a maçaneta, rodando-a num gesto de pulso. De seguida fecho a porta e corro também as cortinas. Às três da tarde todas as luzes devem ser a meia luz. O corpo descansado sobre a cama. O tecto em clepsidra e as paredes altas e brancas e o sol por entre as cortinas leves. Meia-luz com a alma a meio-gás como se meio adormecida. E agora estou sentado na cadeira do jardim a pensar que poderia estar deitado na cama do quarto do fundo. Aí imaginaria o turpor das quatro da tarde, quando nem por um instante houvesse silêncios. As crianças a descer velozmente as escadas, aos tropeções ligeiros; o jardim muito cheio; alguém a por a mesa do lanche. E tudo isto como um preparar lento do funeral duma tarde de verão que se fecha com o ritual do chá servido quente pelas cinco.

Hoje Outubro quase vira Outono. Há ainda resistências do sol e sobretudo da luz. Agora na janela frente à estação de comboios felizes e também velozes penso- no corpo sentado na cadeira no jardim, pensando no corpo deitado na cama do quarto, imaginando a agitação que virá para preparar o final de mais uma coisa que começa. Onde estarei eu pelo mês de Agosto?

quarta-feira, outubro 07, 2009

Palas Ateneia de Rembrandt

I

Quero olhar sem nunca pestanejar até que me sequem os olhos.

(Há que começar com uma frase forte, que marque o leitor e o arrepie. O afastamento da estética pela estética produz o pensamento do leitor).

A intensidade do quadro, nas suas manchas de vermelho sangue vivo, contrastavam fortemente com o ar plácido do rapaz hermafrodito. Como se a inocência fosse arrancada num traje militar.

(Ainda o choque. Tentar ouvir o sofrimento do leitor. Jogar-lhe com manchas de tinta para cima e vê-lo sacudir-se como se salpicado de sangue).

A lança decorativa resta-lhe na mão. Na cabeça a coruja ilumina a sua sabedoria. Estranho jogo o da guerra e o do saber. Onde há um não devia haver o outro.

(Agora apela-se ao sentimento de justiça. Que o leitor sinta, e mais que isso saiba, que o que lê é boa literatura do seu tempo: cheia de ideias e valores, pronta a corrigir e carregar nos erros do passado).


II

Teria sido, certamente, capaz de restar ali por horas até que me secassem os olhos. Não, tanto não! estou ali para ver, ver sempre. Não para deixar de ver.
Queria saber se as manchas de tecido encarnado sobre a armadura dourada têm especial significado. A verdade é que não sei nada de arte. Estou aqui porque gosto de estar aqui. A estética leiga do olhar distante deste rapaz efeminado bastou para que me sentasse a vê-lo. Há outras coisas, mas são para a hora dos segredos. Em geral, a minha opinião é completamente leiga: gosto porque gosto, é há bastante que me chegue nesse gostar.

Sentado, de pé, de lado e por vezes mesmo com coragem para ser de frente olho o quadro. Depois do tempo desço as escadas depressa. Corro os placares um a um com uma calma rápida e mais que isso sedenta. Lá está! Por €3 trago-o para casa. Agora é só meu, como é de todos os outros que o pagam, compram e visitam. Olho-o com um enamoramento recém descoberto. Começo um namoro secreto com o quadro.

sábado, outubro 03, 2009

Cliché de uma folha em branco

De dizer clichés
Como a folha branca dum papel
E a angústia que provoca:

Tentemos então metáforas sobre os rios
E a espuma branca
Das ondas fortes que rebentam contra as rochas
Como línguas lambonas.

Ou então pensar numa família
E fazer uma poesia vulgar- quotidiana mas modernaça
Falar de cervejas e futebol
E de pais gordos com correntes de ouro
E de mães meio tristes de bata gordurenta.

É bom em cliché
Falar-se do sorriso duma criança
Encontros e relações de luz e riso
E encanto
Que uma criança é fácil de encantar
Seja quem for, ainda mais num poema assim cliché
Como este aqui.

E tantas coisas, que num cliché cabe tudo
Nem falo em falar-se de amor.
Não acabava hoje este poema.

Mas há ainda a folha em branco
E por mais cliché que isso seja
O terror de estar por dentro em branco assombra-me mais
Que todas as outras coisas.