segunda-feira, julho 31, 2006

Nós- eu e o teu corpo

O teu corpo deita-se todas as noites ao meu lado depois de ter estado dentro de mim. Mas só o teu corpo.

Eu deito-me ao lado do teu corpo todas as noites depois de o ter tido dentro de mim. Agora eu queria falar-te de coisas tristes, como dormir ao lado dum corpo, e dizer-te que nestas noites a noite prolonga-se por mim adentro, sem luz, sem estrelas, só o espaço vazio que é a verdadeira essência da noite juntamente com o silêncio. Mas não é possível falar ao teu corpo da noite quando a única maneira que ele tem de a sentir é dormindo.

De manhã, muito antes de eu acordar e ter palavras, o teu corpo vai erguer-se, perdido numa esquina da Estrela, e eu vou perder mais uma vez esse instante em que quase te tive, ficando apenas com o teu corpo.

Nós, eu e o teu corpo, vivemos uma relação viciada de gestos automáticos e rotinas enfadonhas já há tanto tempo entranhadas em nós que me torno incapaz de te dizer como odeio que me esperes todos os dias na paragem. Não pela vulgaridade do que significa ter-te à minha espera numa paragem de autocarro, ou pelo que isso denuncia da preciosa estabilidade das nossas vidas que tu nunca desejas quebrar, mas porque todos os dias eu sei que perdi mais um encontro contigo para ficar só com o teu corpo. Porque o instante em que abro a porta do carro é o instante em que tu acabas, em que acaba o teu dia e tu, depois de horas de trabalho, és incapaz de seres algo além do teu corpo. E não é que me importe de ter os teus braços tão fortes nos meus ombros ou de maquinalmente beijar-te, é apenas essa tua incapacidade de seres homem e me amares como homem, essa incapacidade que me deixa sempre a sós com o teu corpo.

É por isso que não te falo da noite e não te digo que do Restô se vê toda a Lisboa pombalina que tanto amamos, que às conversas sobre dramática da escrita se servem cogumelos e ao ênfase que se dá quando te leio Herberto Hélder servem-se salmão e caviar. Porque o que sabe o teu corpo do gosto do caviar, da poesia de Herberto Hélder ou da cabeça do empregado espetada viva no Terreiro do Paço? Que sensibilidade tem o teu corpo além desse quasemomento em que tu estás dentro de mim e eu sou um só- com o teu corpo.

Resta-nos agora a cidade, a mim, a ti e ao teu corpo, os dias calmos de Abril e a pressa eufórica das primeiras tardes de chuva em Setembro. Restam-nos os cafés da Baixa e os restos da vida elegante de por quem lá passa e resta a vontade de que um dia me convides para ir beber chá ao Rato.

Acima de tudo, resta esse momento em que eu, de joelhos, te tenho na boca e em que o teu corpo, segurando os meus cabelos, diz de mansinho: Amo-te. Agora voltas a ser tu, instantes breves, talvez um dia fiques mais tempo além da altura em que escorres e te esvais por mim adentro.
Não sei viver além do quotidiano.
Chegam nas manhãs de Agosto
Coisas alegres de que te fale
Coisas do cheiro do Verão
Que as ondas que chegam às ilhas
Touxeram.

O piano deita o cheiro do Verão
Ao toque de cada tecla
Contando estórias da infância
Que guardámos dentro dele,

Estórias de quando o Mundo
Cabia
Numa praia e numa sala

Em que os nossos corpos
Molhados
Sobre os arraiolos da avó
Nos davam, com certeza dumas palmadas,
A certeza de que éramos felizes.

São estóriasde subir a ribeira
E descobrir sempre a frescura do Verde
Enquanto a água nos escorre nos pés
E o doce sabor das bananas
Nos invade a boca.

Agora o nosso cheiro suado
Confunde-se com
O cheiro das noites de Verão
Que é o cheiro
De quem está cansado e feliz
De se por ao lado do sofá
Com a mão da mãe
Na cabeça
Enquanto
A avó canta
Num som que muito além do Verão
Não mais deixará de visitar
Os nossos ouvidos.

É disto que te falam
As manhãs de Agosto
Quando o teu corpo amanhece,
Fresco de Luz,
E tu, da janela do teu quarto,
Mergulhas no mar
Prenhe do cheiro das coisas do Verão.

domingo, julho 30, 2006

Carta que Teodoro de Freitas nunca escreveu a sua prima, Noémia das Mercês

Querida Prima,

Escrevo-lhe porque ao fim destes anos veio-me hoje uma visão que me fez pensar em si: um piano! É bem verdade, um piano. Esse piano que me trouxe logo a sua imagem e a sua lembrança à minha está em casa de tal menina que com seus olhos prendeu os meus. Mas oiça-me minha adorada prima, se o verde dos olhos de tal menina cortejada superam o castanho dos seus olhos, as mãos pobres e gordas desta não têm a elegância que nas suas vive.

Porque esta menina, querida prima, apesar de ter uns olhos de um verde tão profundo como o seu dote, toca numa sala onde o excesso em tudo toca e onde a toda a hora o chapéu de um senhor está sujeito a roçar-se nas cortinas que descem por todo o lado. Não toca ela nessa sala onde toca a prima que guarda na tinta rosa das suas paredes o segredo dos primeiros olhares trocados, a prima tão moça e eu já homem feito, a prima com tanto para aprender e eu julgando que já tanto sabia. Essa sala onde roubávamos horas à costura da Titá para trocar sobre a forma desses livros encadernados do escritório do pai confidências tão íntimas como o são elogiar as suas mãos. E depois a prima enchia as horas que sobravam de música, porque a música vive bem dentro das suas mãos, diria dentro de si, agitando-se continuamente e enfeitiçando as horas. Como as donzelas coquettes enchem com flores os seus cestos, a prima enche o ar de música na leveza do ron-ron dos seus vestidos que descançam sobre o banco desse bem-dito piano.

Estivesse eu aí e não ouvesse mar entre nós, uma vez mais a roubaria e sobre a vista do balcão lhe diria, querida prima, que não há vista que supere a sua vista e que o odor estontiante de tudo o que é natural e bom e que nos rodeia é mil vezes inferior ao simples perfume que de manhã deixa cair atrás das orelhas num gesto de suprema elegância, pois em si tudo é elegante, as mãos, as luvas, o cabelo, pois nasceu com a certeza de que o mundo é seu, e é de facto, só pelo simples facto de ter nascido com as mãos que mais delicadamente alguma vez poisaram sobre um piano!

Amo-a, mas agora não há tempo para o amor, pois na sala ao lado deste gabinete umas mãos pobres e gordas esperam por mim agora que cometi o erro de lhe dar a ela, e não a si adorada prima, as minhas palavras que, como bem sabe, prendem mais que tudo o resto.

Seu primo,

Theodoro de Freittas

segunda-feira, julho 24, 2006

Rondó de palavras

A inspiração é sempre algo muito difícil em mim, tremendo sobre o terror das minhas próprias letras escritas sobre o papel.
É um tempo difícil quando deixo que as palavras fujam e vem nos meus pés, fruto das minhas ideias movidas, preguiça de correr para buscá-las. Quem diz preguiça diz medo porque é verdade que as palavras dão medo e que a metafísica de amar as palavras é como respirar o perfume que está na tua mesa: cansa, mas o primeiro é sempre bom.

As palavras têm uma luz consigo, mas a maneira de a ver é tão difícil que temos que sentar e não ter preguiça de escrever Verde e Mar, mesmo para perceber que são palavras diferentes.

Lentamente agora bebo o cálice das palavras, antídoto do medo, agora que chega o crepúsculo e está quse na hora do Sol tomar seu banho de Lua, lá na linha onde terminam as ondas.

As paredes do meu quarto enchem-se agora de palavras enquanto a preguiça se esgota com as linhas do meu caderno.

A cama, terra de segredos fechados, e os olhos postos no mundo, que começa na janela do meu quarto, e a noite que me traz as palavras que me escaparam no dia.

sábado, julho 22, 2006

O Mar e também os Verdes que a Ilha esconde

Para Sofia Palma Baracho, que guarda comigo os segredos das florestas.

Diz-me do mar para que eu te fale de Marta Telles e dos seus traços em tons carmim.

Então, na sala de refrescos de um grande palácio insular, verás pela clara-bóia como as luzes da manhã da minha ilha são diferentes.

O medo de perder o sol farte-á subir as escadas, para que estejas certa de que as nuvens ainda não vieram morar nos picos dos montes.

Molha agora os teus pés de mansinho na água, com cuidado para que te não rolem os calhaus, e deixa que o mar te beba delicadamente.

Do alto da montanha entenderás a verdade que a ilha encerra sobre a ciência do Verde, e de uma golfada verás como nós respiramos as quatro estações.

Deixa cair a noite. A noite aqui chega tarde e com aviso do sol. A noite aqui é só um dia mais escuro.

Do alto da ponte, na velocidade do teu carro, olha as luzes que bordam as encostas da cidade e respira outra vez.

Perde o mar, as montanhas, o verde, guarda o cheiro intenso que a neblina deixou sobre as flores, larga o corpo, queda-livre, aprende os segredos que esconde o coração da ilha.

Enquanto chega o sono

Para Marta Vieira da Silva.

Há uma certa poesia nos olhos fechados duma criança enquanto dorme. Nos olhos da Marta há a poesia de quem sonha depois de um dia a brincar entre os livros e se deita cansada de ter esgotado a vida que aquele dia lhe deu.

Quando fecha os olhos diz devagar "Não tenho sono" só para poder vir para a minha cama. Então eu abro os lençóis e ela adormece junto de mim. Eu fico guardado nos sonhos dela, porque os sonhos da Marta traçam o labirinto das minhas esperanças até que tudo se perca quando lhe toco os cabelos. A partir daí já mais nada importa, o mundo pára na seda dos cabelos dela: a Marta é maior que o mundo porque o seu desejo de viver é tão grande e ainda assim cabe na pequena biblioteca onde a Marta gasta os seus dias em brincadeiras e sendo grande não vai além dos muros do jardim da casa da avó que vão até onde chega o mar.

A Marta tem uma doçura verde na sua ânsia de ser crescida. E eu, enquanto ela dorme e lhe toco nos cabelos, tenho uma ânsia doce que a vida passe gentilmente por ela.

Mas a vida nunca passa gentilmente.

Mas nada disso importa enquanto a Marta dorme e a poesia se desenha em mim.

sexta-feira, julho 14, 2006

Licor de Tangerina

"O licor servia-se às sextas-feiras, depois do jantar com bolo de laranja. Assim, aprendi que a vida se serve quente ou fria, em banho-maria, com as suas caldas e essências para beber devagar em pequenos copos de vidro."

Ana Paula Tavares in "A Cabeça de Salomé"

sábado, julho 08, 2006

Viagem em Lisboa, em torno de nós mesmos

Para Sara Guia d'Abreu, com toda a minha admiração.

Há no teu nome uma melodia delicada, como as notas que o Tom desenhava no piano.

Viver-te é como ver Van Gogh a pintar uma tela cheia de cores. O teu vestido enrosca-se por nós nos bares do Bairro Alto, mesmo quando não o trazes e o som dos teus risos vai além da noite, até às minhas tardes de Junho para nelas derramar o sol eufórico como as músicas da Ella. Como se eu agora fosse o Sinatra e tu a Fitzgerald a cantar "The Lady is a Tramp" e isso nos lembrasse de súbito de um tempo em que eles ainda não nos existiam.

Agora temos o corpo deitado na relva (mesmo contra as ordens do sr. Agostinho) e o muundo que vemos para lá dos óculos de sol é ainda muito fosco e tem continuamente o toque do liceu a pautar-lhe os ritmos. É um tempo delicado de já não infância mas ainda de crescimentos. Tu guardas nas mãos algo. Ofereces-me as primeiras palavras.

Agora eu estou sentado numa grande poltrona, é uma sala velha dum palácio do Bairro Alto. Tchekov está ao meu lado e tu simplesmente não queres mais Ivan Vasilievitch.
Dás-me a mão para corrermos até ao teu sofá nas Ruínas do Carmo. agora vemos o Tejo todo. Tu dizes que o Tejo continua a ser o grande rio da nossa vida, que é a vida de Lisboa. E enquanto Lisboa namora o Tejo há vedettes que se abanam sobre os seus cariocas de limão escondendo estórias de tabus e mariscos. Nós gastamos a tarde a despechar confissões nas nossas chávenas de chá, porque já estamos sentados numa varanda às Escolas Gerias, mas ainda a ver o Rio.

Vivemo-nos só de vez em quando, mas olha como a cidade dança connosco os choros do Tom quando estamos juntos! E assim, viver-te é cada vez melhor, com o rio, com as flores, com os risos, meu encanto de cantos tão distantes, amiga de ontem e hoje, tu que me inspiras quando fazes biquinho enquanto lembras a Ivan Vasilievitch que são teus os prados de Valovyl.