quinta-feira, março 31, 2011

A casa dos ricos

Era uma coisa estranha- a casa dos ricos. Os móveis eram bonitos e caros; as paredes mostravam quadros que nos faziam acreditar um gosto soberbo; e nas casas de banho havia pequenas toalhas individuais que depois de usadas deitavam-se num cesto estratègicamente colocado debaixo do lava-mãos. Mas o mais impressionante era que os ricos tinham no terraço grandes sofás de pano e tapetes por debaixo deles. Certo dia, contudo, descobriu que aos ricos as casas também custam a manter: durante o Inverno os móveis do terraço cobriam-se com grandes protecções de plástico, porque afinal os móveis dos ricos também se sujam e apanham chuva. Mas o mais engraçado de tudo é que em dias de sol punha-se no terraço, como em qualquer varanda suburbana, um estendal articulado onde, entre outras peças, coravam as cuecas brancas.

quarta-feira, março 23, 2011

Lisboa-Azulejo

Lisboa e suas ruas de azulejos,
Lisboa e suas tardes de turistas,

Lisboa centro da vida,
Descendo invariavelmente para o Tejo.

Corpo-Tejo

O corpo jamais percorrido,

Depois o Tejo- sem ondas, sem barcos,

Como a rua estreita que caminha para cima
E nada de si mesma guarda.

Anti-Pátria

Conta gotas, contra-nau,
Como o Tejo,
Sua velha noção de anti-pátria.

quinta-feira, março 17, 2011

Pequena casa branca

para Nini Salgueiro

Saberás se a seda é tão macia como a caxemira.
Enroscada na manta do sofá.

Da luz de todas as janelas da pequena casa branca,
Agora teu corpo como depois.
Os passos assustados do gato, tacteando.

E tu repousada,
Apontando com certeza as almofadas riscadas para a cama.

Tejo e sala

para Stijn Luyten, ao jantar.

Havia esta sala muitas vezes.
Era como uma coisa da memória.

Nos dia de sol apontava uma cadeira
para o varandim.

Espraiava
depois o corpo.

Lisboa era leve nesses dias e cheia de Tejo.

Sem Tejo

No páteo escuro para onde dão as janelas deste quarto.

Além,
dois gatos brincam entre as grades.
Abaixo,
como um fosso longo.

Nunca lhes mostram os becos da cidade onde o sol não chega. Nunca.

São as traseiras dos prédios que guardam o segredo-

Lisboa sem qualquer Tejo.

quarta-feira, março 16, 2011

A marquise e as gaiolas

à Tia Lil

Eram seis da manhã quando atravessava o Príncipe Real. Lisboa ainda sem gente, mas já com sol. Maio. É como dizer que nasciam flores no jardim e mais à frente nas roseiras que plantaram no miradouro.

O Tio Raoul tinha aqui uma casa quando eu era pequeno. Era um apartamento antigo da rua da Escola Politécnica. Tinha um quarto interior, com uma janela interior. Ai era a casa de jantar. Isto era um fascínio.

Havia também uma marquise de ferro azul que dava para o pateo traseiro do prédio. Há um único pateo para os prédios da rua da Escola Politécnica que se estende do Museu de Ciência ao palacete Ribeiro da Cunha. Por isso é demasiado grande para ser um pateo e demasiado seco para ser um jardim. É um quintal?


O Tio Raoul tinha gaiolas na marquise e dentro delas tinha piriquitos coloridos. Todos tinham nome e eu não lembro do nome de nenhum. Os piriquitos nunca me fascinaram. Mas as gaiolas.

Eram 6h45 quando cheguei ao meu apartamento em Campo de Ourique. Tenho uma casa pequena pela qual pago muito dinheiro. Pelo menos é muito face ao seu tamanho que é apenas razoável. O meu quarto é quase do tamanho da sala e as janelas fazem um marquise. Não tenho mais nada no quarto: uma cama de casal, duas mesas de cabeceira e vinte e sete gaiolas de todos os tamanhos e formas dispostas ao longo da marquise do quarto.

Lembram-me o Tio Raoul que era um tio de que não gostava particularmente. Gostava da sua casa, fascinavam-me as suas gaiolas. Das vinte e sete que tenho, catorze são dele. Todas as que guardavam piriquitos coloridos na marquise de ferro azul.

Amanhã vou ao banco, depois à imobiliária e vou mandar tirar o cartaz que diz "Vende-se" e por outro que diga "Vendido" no apartamento da rua da Escola Politécnica. Já não aguento mais não guardar as minhas gaiolas naquela marquise de ferro azul.

Tecido

daquele tecido fino que usava sobre o ombro preso com a pregadeira da mãe.

era assim que se vestiam os deuses, num tempo em que se falava deles.

Numa nesga de Tejo

Depois eram as janelas demasiado longas.

Lisboa, numa nesga de Tejo, e este páteo de azulejos pombalinos.

terça-feira, março 08, 2011

Poema do Tio Olavo

Ajuntámo-nos ali como as crias das águias
Sem que tarde ou mar nos viessem

Chorámos incessantemente por uma vitória
Longo tempo imaginada

E só o sol se pôs no horizonte

Em nós nunca pusémos mais que a força
Dos instantes milimetricamente acontecidos nas nossas vidas

Sem a sombra de que mais tarde houvesse consequências

A tarde nem sequer existia senão num conceito abstracto de rima

Todos os dias comíamos a areia das praias
Porque delirávamos sonhando com sermos peixes azuis brincando
Em gentis recifes de corais
No Ocenao pacífico

Não podia necessariamente ser ilha
Porque nunca nada me envolveu por completo

Fui sempre algo mais do que alguma coisa de que se pode dizer
Isto aqui
Ele é tão só isto aqui

Ninguém é tão só alguma coisa

Havia depois uma janela que na casa abria sobre o pateo
Era lá que as crianças brincavam

O tio Olavo martelava com fúria as teclas precárias da máquina de escrever
Era um pouco de mais

A vida tem que ter algo de exagero
Ou seríamos monótonos como um carreiro certo de formigas
Sem que o coração batesse violentamente dentro do peito

Enquanto esperamos por alguma coisa que há-de vir alguma coisa que não se saberá nunca o que é

Não podemos ansiar
Porque não podemos usar palavras sagradas
Nem gestos nem ritos
Nem rituais em que deusas nascem do mar engrinaldadas de violetas

Afrodite escrevia tragédias no Olimpo
Isto é um dado certo e seguro
Nada na História comprova que Hefesto o tenho feito, mas Afrodite sim

Escrevia tragédias descontinuas
E criou conceitos que só as pombas brancas conhecem

Certa manhã o Tio Olavo parecia filosofar com as pombas brancas
No beiral da janela do escritório

Nós as crianças vimos tudo enquanto
Brincávamos no páteo

Quem sabe se não seria tarde em vez de manhã
Ou em razão se não seria nenhuma hora do dia
Ou se não seria mesmo dia
Mas instante

Todos nós estávamos nas palavras que ele escrevia
nas teclas precárias da máquina de escrever

Depois as palavras, sempre as palavras
Ele repetia as palavras
Incessantemente as palavras

E agora sou eu que continuo a construir o seu mundo
Como Afrodite no Monte Olimpo escrevendo tragédias.

Da Tarde

Naquela tarde de ondas,
Enquanto o mar expirava,
Corrias atrás das gaivotas para que não deixassem
O sol esconder-se.

As rochas carregavam palavras antigas
De um mundo que aqui passou antes.

O poema aconteceu depois
Sem que eu esperasse.

sábado, março 05, 2011

O deus do mar

O deus do mar morava ali. Venci lentamente o medo das ondas que fazem rolar os calhaus e cheguei mesmo a saltar da pedra grande. Ao deus do mar, nunca o vi. Mas sei que é ali que ele mora.

A varanda

A varanda, esse segredo antigo da cidade, onde o sol batente faz o tempo correr devagarinho.