sábado, novembro 18, 2006

Trechos sobre Lisboa ou A dificuldade de escrever

Eu quero as manhãs geladas de Lisboa e tenho saudades do Sol. Canta para mim. Os teus braços à minha volta no miradoiro da Graça. Frases curtas numas linhas de papel. Ao menos se eu pudesse desenhar o teu corpo enquanto as minhas mãos o passeiam.

Sinto falta de ti e da cidade também. Há sempre uma câmara oculta nas esquinas dos bairros para nos apanhar debaixo dos varandins. Para ti a cidade não tem música, mas tem cheiro. O cheiro das pessoas é também o teu cheiro.

A tua língua no meu pescoço. Estou num impasse, mas continuo a escrever. É como uma sede. Parto para falar da cidade. Fico-me pelas palavras. Não é possível falar da Baixa de Lisboa assim, só em palavras. É preciso que as minhas palavras tenham vida. Mas elas não têm.

Os teus braços enrolados nos meus são um bom começo e um porto desce-nos pela garganta. Eu só quero escrever. O castelo está à nossa frente. Para quê fechar os olhos e imaginar outras coisas? O castelo está à nossa frente. Eu anseio desesperadamente por ter sentido. Torces-me a cabeça: alguém bate um tapete sobre uma janela numa casa amarela de Alfama. Lisboa é como um fado.

Eu quero a vida excitante, sentir as coisas que palpitam e provar as cores opacas do urbanismo. Tudo em mim é intenso agora. As tuas mãos estão dentro das minhas calças. As pessoas olham. Mas se tenho as ruínas do Carmo à minha frente para quê olhar para elas?

Escrever dói. É impossível parar de escrever. Leva-me até ao elevador de Santa Justa. É preciso que o vento me invada a cara e a marque. Tu não queres olhar de alto. Queres estar num beco a olhar para uma luta. Eu insisto em escrever. Tu insistes em viver.

Tu beijas-me contra uma parede da Rua Garrett. A tua língua viola-me a escrita. As pessoas aqui não olham. Tudo é urbano demais para que os outros se choquem com a maneira como influências o que escrevo.

Agora o bairro Alto, depois o Príncipe Real, o Rato, a Estrela. E nós, que nunca saímos do miradoiro da Graça. Tu acabas de beber. O teu corpo parado à minha frente a violar-me. O Sol põe-se, ou pelo menos sabemos que se põe para lá das nuvens. A tua mão agarra a minha. Já acabaste? Acabar não é para nós. Nunca se acaba de amar Lisboa.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Tríptico de mim mesmo

Lá no ponto onde o mar assenta
Resta a minha consciência do mundo

O meu corpo vai envolto nas gaivotas,~
Comedor do tempo

Mas eu estou sempre dentro das coisas
Que estão dentro de mim

quarta-feira, novembro 08, 2006

Retrato de mulher em vestido de gala

Busca da elegância. E há sempre esse namoro prolongado com o espelho enquanto pinta os lábios. Agora as pérolas para o cabelo, três tiras sobre a testa. Na cintura magérrima o vestido, uma segunda pele. As luvas de manga de canhão descem os braços.

A mão estendida para quem lhe abre a porta. Não há últimos olhares.

Um flute de champagne ergue-se. Ela ri. E ela que quase nunca ri. Mais um brinde. Há um certo toque boémio em cada brinde, como se a vida se tornasse absolutamente fabulosa. O vestido voa por onde ela passa. Tudo é etéreo; nela e por contágio em tudo o que a rodeia.

A pele branca de mais, os cabelos louros de mais. Ela é quase transparente no vestido, onírica como um mundo criado com cuidado para si mesma.

É raro passarem-lhe pensamentos, mas por vezes o luar caído sobre certas nuvens mais escuras chama-lhe a atenção.

Agora a música. As mãos fortes de um homem, a sua cintura magérrima, os violinos que vibram tão alto. O corpo cai. Ela perde-se nele. É mais como se se deixasse ir. Quem sabe naquilo que pensa. Ela é como uma ave nas mãos dele.

Acabar é sempre difícil, mas nunca para ela. A realidade a que volta, a sua, é sempre irreal.

domingo, novembro 05, 2006

Palas Ateneia


Por entre a majestade do ouro e do escarlate das suas roupas, obsessão constante de Rembrandt, surje o seu rosto calmo, como que alheio à sua própria glória. É como se agora e sempre Atena, coroada pela coruja, restasse atenta apenas aos seus pensamentos, mar em si constante, e partisse mais uma vez para a guerra sem vontade de o fazer. A cidade ocupa-a, porque ela mesma se ocupa do Homem civilizado. E ela mesma é homem e mulher ao mesmo tempo, sumo Hermafrodita, juntando em si as qualidades de todos.

Retrato de rapaz em algumas variações

Perto de uma grande parede de vidro o seu corpo resta, como que jogado, a um canto. A sua expressão é ao mesmo tempo distante e orgulhosa. A perna direita flectida ao alto, a esquerda ao lado. É como se alguém o tivesse perdido ali e ele tivesse desejado permanecer perdido. Ali ele está perdido dos outros, mas não de si mesmo. Palavras repetem-se constantemente na sua cabeça e a consciência de se saber simultaneamente divino e rejeitado aflora-lhe a arrogência. O ar arrogante torna-o desejável porque distante e de certo modo inatingível. E isso desperta em mim uma vontade de ver a baixo do terceiro botão aberto da camisa. O corpo está exposto na camisa amarela e aberta e há nele uma doçura clássica e latina, num peito ao mesmo tempo másculo e delicado.

Eu desejo-o, é certo, para mim. Mas ao mesmo tempo, ainda assim, não o quero tocar. É como se desejasse apenas a sua essência. E mais que tudo a sua suma arrogância de estar ao mesmo tempo alheio e atento ao que se passa à sua volta, como se os olhos não soubessem o que sabe o corpo.

Guardo agora a sua imagem junto à parede de vidro. Lembro apenas o divino. De nada me serve nele o que é humano.