sexta-feira, dezembro 23, 2011

sábado, dezembro 10, 2011

Natal

Pequena medida certa para todas as coisas.

Sítio da casa. Um jardim de
Pequenos seixos. As mãos enrolando
Arduamente
Os dedos,
as peças,
o jogo,
as palavras.

Era aquela morte lenta e súbita
Do espanto com que entendíamos
Os dias.

Foi Outono,
depois houve tarde.

Tu sentavas-te no balcão
E bebias chá de jasmim com pó de canela.

Lá dentro era um segredo.
A casa ordenava uma a uma
As coisas ordinárias e quotidianas.

Houve esta tarde de comboios
Rápidos e ultra-sons.
Houve esta tarde de risos,
licor,
amigos,
compotas.

As panelas eram mexidas
Em intervalos exactos
De 2 horas,

Uma calda doce escorrendo
Com a eternidade do mundo
Pela colher de pau.

Às vezes abríamos a janela
E o frio entrava.
Gostavas de deixar as bochechas congelarem
Equilibrando-te com os pés em bico no
Degrau da varanda.

Vivíamos na cozinha.

Debaixo da pedra preta da chaminé
Tinhamos feito instalar o fogão
Como numa sala de trono.
Vivíamos para aquele espaço,
naquele espaço,
durante este espaço.

Os amigos chegavam.
Com que habilidade pares de mãos
Se juntavam para colocar os talheres
Numa ordem premeditada
Muito tempo antes nos palácios
D'el-rey de França.

Bebíamos por copos de cristal
E por isso éramos inevitavelmente chiques,
elegantes,
alegres,
sofisticados.
Dizias: - Somos nós que temos
O monopólio do bom gosto.

Mexíamos pequenas peças nos tabuleiros
Preparados de ante-mão.
Passávamos o tempo,
além do tempo,
sem contar o tempo.
Uma jogada calculada na exactidão
Das suas consequências.

Também fizeram a árvore de Natal,
Decorada das coisas que havíamos comprado
Em Paris, no outro inverno.
Foi naquele dia em que corremos as ruas
De Vaugirard
Entre os mercados de peixe com ostras sobre o gelo
Buscando perfeitos enfeites de vidro.

A cidade profundamente fria.
E os centros comerciais cantando
Músicas americanas do Natal.
O Natal nasceu afinal nos Estados Unidos
Nas fábricas da Coca-cola.

Nós bebemos chocolate quente
Nos cafés de Lisboa
Que servem brunch ao fim de semana.
Porque somos urbanos, internacionais
E porque fingimos ver nas Amoreiras
O Empire State Building.

Voltamos a casa
E despejamos no cabide da entrada
Um exército de casacos,
lãs,
cachecóis.
pull-overs.

Enquanto,
Amontoas pedaços de lenha
Com que enches a lareira
Agora crepitante,
Os pés enrolados nos meus,
Os pratos na mesa com restos de bacalhau
E agora adormecemos juntos
Antes que o Menino Jesus traga
Os nossos presentes.


segunda-feira, novembro 21, 2011

O meu amigo Q

Para Q, de quem já tinha saudades


O meu amigo Q voltou. Andou lá por fora e voltou. Foi "viajar, perder países", porque o Q é um homem mais que moderno- urbano. Q tem um apartamento novo num edifício antigo que decorou com cuidado e gosto. Nada é por acaso nos metros quadrados da casa do Q à excepção dos cocós do cão, que de resto já nunca se vêem. Como homem urbano Q veste bem. Tem uma colecção imensa de camisas penduradas em cabides apoiados nos puxadores das quatro portas da casa. Na verdade, Q tem tanto gosto e tanta roupa que não dorme num quarto, mas num walk-in closet. A acompanhar a roupa Q tem uma colecção admirável de acessórios: um cão lindo e eléctrico; um namorado super divertido; uma irmã fabulosamente elegante e que anda sempre tão bem vestida como ele; amigas engraçadas, giras e bem-dispostas que compõem imenso o quadro. Q tem uma família que adora, cresceu na verdadeira Alta de Lisboa (o triângulo Campo de Ourique-Amoreiras-Campolide) e é um homem educado. Tem um belo emprego e vai para o escritório num óptimo carro que é da empresa. Q gosta de moda, não vê programas parvos na tv, papa séries pela net, tem uma estante com livros do Pedro Paixão por baixo dos livros do Harry Potter e organiza jantares de aniversário no Bar do Peixe em Novembro porque toda a gente com gosto sabe que estar na praia (nunca ir à praia) no Inverno enrolado em camisolões é imenso chique. De Q pode dizer-se que tem alma de pássaro e por isso podia bem ser uma personagem dum romance de Margarida Rebelo Pinto.



De Q pode dizer-se isto, mas dirá quem não o conhece. Q é um amigo. Q andou por fora e nós não andámos mais tristes, mas por certo andámos menos alegres. E percebemos isso quando ele voltou. Q deixa-nos alegres e sempre com muitas gargalhadas na boca. Porque o meu amigo Q tem isso com ele- ele faz bem aos outros, faz genuinamente bem aos outros. Como é que ele faz isso não sei. Tão pouco acho que ele mesmo o saiba. Mas fá-lo melhor que toda a gente que conheço. Mesmo quando Q está sério, está alegre, mesmo quando está triste está ainda assim alegre. Isto não quer dizer que Q seja um tolo. Quer dizer que eu acho que Q é uma pessoa genuinamente alegre a quem o sorriso sai sem esforço porque a vida lhe dá razões para isso. Na vida de Q também deve haver chuva, dias em que o café se entorna nas calças, conversas desagradáveis e decisões difíceis, mas a sua alegria sobrepõe-se a isso. Eu e Q não somos os amigos mais íntimos, não partilhamos segredos, não trocamos confidencias. Eu e Q somos amigos e Q faz-me bem. E eu e já tinha mesmo saudades e ele voltou e faz-me mesmo bem!

sexta-feira, outubro 28, 2011

Amar-te

Nunca vens quando eu chamo.

Amar-te é hoje este dia triste. Um Outono de folhas.

Tejo-Casa

Do Tejo não as pétalas ficam.
Coisas apenas que Lisboa recorda.

Disto, na manhã sua, como se fora casa me disse de manso.

sábado, setembro 17, 2011

Da perda

Perder vem de manso e instala-se nesta cadeira ao meu lado. Depois jogo este quebra-cabeças sem número em que cada dia é mais uma peça falando-me do que perdi.

sábado, setembro 10, 2011

Ritual

Como se das ondas um campo trigado.
Tuas mãos côncavas em alegre seara.

Um jeito de correr, corpo molhado,
Coleccionando as espigas da estrada.

De tarde nunca falavas.

Tisnado do sol, aquele banho
Era o ritual de outras coisas.

No meu regresso

Quantas vezes isto houve no meu regresso?


Deixa que aconteça- o poema
Dir-se-á até ao final.


Era assim que lhes falavam
Os antigos chefes das tribos.


Os homens dançavam uma
Dança de barro.


Chamavam-lhe início.
Depois foi de dia...

quinta-feira, setembro 01, 2011

Praia

à avó Nicha, essência da minha infância

Naqueles dias-

O vento soprava sempre
Porque éramos velozes a abrir as janelas
E a fazer a cabeça espreitar de fora
Contra as vozes irritadiças das mães
"Ponha já a cabeça para dentro".

Quase não abríamos os olhos, rasgados como um chinês,
Mas tudo era sentir e saber,
A mão inclinada daquela maneira que o tio ensinou
E que não causa atrito.
O vento forte.

Toalhas estendidas longas na praia, banhos de mar e seixos rolantes.
"Cuidado que o mar hoje puxa"
Aquela onda que vinha debaixo da outra e depois eu não vi
Deve ser assim um pateo branco e quadrado
Era a voz da mãe aflita e a mão forte de todas as mãe aflitas
Já não estava dentro de água tinha só o corpo molhado
E um raspanete valente a zumbir nos ouvidos.

Brincadeiras e rochas, pernas esfoladas
"Viu que saltei da pedra grande, mãe?
Foi tão bom- agora não há mais medo, hei-de sempre lá ir"
Queria sentir outra vez o corpo a entrar
A água gelada e depois sabia onde ficava cada osso
Certinhos todos os duzentos e seis.

Hoje ninguém quer comer "faça sandes para levar"
Come-se ali no bar da praia.
Mas não que demora muito tempo,
Esperamos três horas e isso não podemos
Que não queremos deixar de ir ao mar
Mostrar aos grandes que sabemos dar mergulhos, furar ondas
E que não temos medo porque ontem a mamã viu-nos
Pular da pedra grande.

Há tarde sabe melhor "protector na cara, já"
Era aquela pasta pelos olhos, os beiços bem para dentro
Para nem provar
"Estou branco, estou branco?"
"Pareces um E.T."
Risada pelo calhau que se ouvia em todo o lado.
Pastas e pastas de protector e depois era aquele saquinho
Champo e gel
Rápido para os duches
"Eu sou o primeiro"
"Ui, que gela, mal posso cá estar"
"Só aguentamos na praia, est'água assim tão gelada"
(anos a seguir vieram os senhores e proibiram aqueles banhos
e nunca mais tomámos duche ao canto da praia e viamos o por-do-dol
e dizíamos "ai que lindo!")

"Siga já para casa d'avó. Lá ficamos à espera"
Toca a subir essa calçada feita de calhau, vila acima,
Aqui é só escadas
"Um beijo a Nossa Senhora da Luz"
"Mas entrar assim na igreja- molhados e de calções?"
"Nosso Senhora não se zanga, quer é beijinhos que Ela ouve mais
A quem é mais pequeno".

Corre, corre a ver quem chega primeiro
"Deixe os patos da ribeira, vamos indo"
Hoje os patos têm todos penas
Não era como naquele dia das estórias
Que as penas estavam na casa das tias velhas e não nos patos
Coitadinhos, que os patos também sofrem para nós termos nossos milagres.

A bexiga aperta tanto e só há uma retrete.
"Vamos contar piadas, a ver se passa o tempo"
"Um de cada vez para irmos todos"
"Eu primeiro e tu depois"

Esparramados no caramanchão da sala
Tão cansados do banho e dos mergulhos e do mar que não tem fim
E aquele que se'nrolou e aquele que saltou da pedra
Agora os grandes já sabem como eles mergulham
"P'ró ano ainda está mais crescido"
Vamos com estórias para contar, tantas quando chegarmos a casa
Tudo a rir enquanto janta.

Era assim ser feliz sem saber, mas lá no fundo sabendo
Quando o verão era verão
A praia era calhau
E todos que deviam por lá estavam.

quinta-feira, maio 26, 2011

À Tarde

Para Luísa Vaz Ferreira

Às vezes, quando passo por Lisboa, sinto-te a falta. São algumas intimidades para as quais urge nunca inventar palavras. O tempo é demasiado longo nas eternas viagens suburbanas e no espaço perdido entre a cidade e as coisas pensamos em tudo, mas mais na saudade. Lisboa agora sem fado, sem Tejo, sem cais. Onde andas?

segunda-feira, maio 23, 2011

Fragmentum Gustaui

Aquela cadeira tinha sido restaurada pela tia Bé. Era uma cadeira velha e de vime onde Gustavo gostava de sentar-se quando, era ainda miúdo, passava tardes no terraço da casa das Azinhagas do Mar a ver as ondas lamberem a encosta. Na altura da mudança do Artur a tia Bé tinha-a restaurado e oferecido ao casal. Gustavo soubera logo que ia ficar na marquise de ferro azul. Era uma pequena marquise de muitos vidros pequenos e quadrados e de ferro forjado azul que ligava por fora o escritório e a sala. Era ali, que nos crepúsculos já quentes de Maio Gustavo se sentava a ler. Tinha sempre ânsias de coisas bucólicas, como as saudades de um campo onde nunca tivesse tido uma infância. Como se o pateo ajardinado em baixo o fizesse pensar em montanhas e cozinhas impregnadas do cheiro axaropado das compotas em líquido ainda quente. Isto dava-lhe paz e deixava-o calmo. Pousava na mesa ao lado uma grande caneca com uma infusão de menta e hortelã. Esperava que arrefecesse e depois tragava em grandes goles até ao fundo. Lia à espera do efeito que chegava sempre: uma camada gentil e ligeira de suor refrescava todo o corpo. Depois, gostava ainda de abrir a palma da mão e espalmá-la contra as paredes curtas e férreas da marquise- o ferro eternamente frio em todos os seus cinco dedos. Eram tardes sem Lisboa e sem pessoas como se o mundo acontecesse num dos seus livros bucólicos de belas capas velhas de alfarrabista.

terça-feira, maio 03, 2011

D

Pour lui

Como o deus dos toiros naquela manhã
Assim as coisas aconteciam surpreendentemente.

Amar era fácil como o sumo das nespras
Escorrendo-nos pelos beiços.

Tu dizias Verde e era uma primavera feita de andorinhas,
Rios, flores silvestres e pequenas casas caiadas dispersas nos montes.

Era de manhã muito cedo.
Nos lençóis de ontem os meus dedos encontravam caminhos
Pelos teus cabelos
Cavalos que de súbito surgissem em geografia desconhecida.

O mar muitas vezes, quase todas.
Depois as tardes de passeio e os gelados lambidos sofregamente
À beira-Tejo ou beira-cidade.

A nossa casa na Rua do Alecrim tinha um pateo traseiro de azulejos
Onde Lisboa era uma nova cidade,
Secreta e segura,
Só nossa como os macarrons coloridos que comíamos às cinco da tarde.

Tu eras sempre leve e homem
E isso parecia bastar-me na iminência dos dias sucedidos.
Usavas muitas vezes as calças de linho branco do verão passado
Que eu engomava na tábua colocada sobre as pedras do pateo.

Um lugar onde havia sol e mais tarde luz
E também flores e árvores pequeninas.

O teu corpo sentava-se muitas vezes naquela cadeira de vime que tínhamos
Largada na varanda que dava para dentro.
Era comum leres. Eram tardes inteiras de poesia.
Lias sempre alto, como ainda hoje lês,
Porque era primavera e o inverno havia passado
Ao que nos pareciam muitos meses
Como se tivessem acontecido vários anos sem inverno,
Mas apenas de primavera.

Se nos esticássemos nos varandins fronteiros conseguíamos olhar o rio.
O teu corpo enroscava-se muitas vezes no ferro forjado e frio dos varandins
E suportavas o teu peso com os abdominais tesos e duros.
Ríamos muito nessas tardes
Porque tu encontravas sempre particularidades engraçadas nos barcos que
Víamos passar ao fundo.

Hoje ainda somos felizes, mesmo quando o Inverno parece durar há mais de dez estações,
Porque de manhã o nosso pateo tem sol
E quando acordas muito cedo eu escorrego os meus dedos pelos teus cabelos
Cavalos em encontradas geografias.

quarta-feira, abril 27, 2011

Os homens belos

Os homens belos do pateo grego são como a biga latina de cavalos cujas velozes patas batem vorazes sobre o meu peito.

quinta-feira, março 31, 2011

A casa dos ricos

Era uma coisa estranha- a casa dos ricos. Os móveis eram bonitos e caros; as paredes mostravam quadros que nos faziam acreditar um gosto soberbo; e nas casas de banho havia pequenas toalhas individuais que depois de usadas deitavam-se num cesto estratègicamente colocado debaixo do lava-mãos. Mas o mais impressionante era que os ricos tinham no terraço grandes sofás de pano e tapetes por debaixo deles. Certo dia, contudo, descobriu que aos ricos as casas também custam a manter: durante o Inverno os móveis do terraço cobriam-se com grandes protecções de plástico, porque afinal os móveis dos ricos também se sujam e apanham chuva. Mas o mais engraçado de tudo é que em dias de sol punha-se no terraço, como em qualquer varanda suburbana, um estendal articulado onde, entre outras peças, coravam as cuecas brancas.

quarta-feira, março 23, 2011

Lisboa-Azulejo

Lisboa e suas ruas de azulejos,
Lisboa e suas tardes de turistas,

Lisboa centro da vida,
Descendo invariavelmente para o Tejo.

Corpo-Tejo

O corpo jamais percorrido,

Depois o Tejo- sem ondas, sem barcos,

Como a rua estreita que caminha para cima
E nada de si mesma guarda.

Anti-Pátria

Conta gotas, contra-nau,
Como o Tejo,
Sua velha noção de anti-pátria.

quinta-feira, março 17, 2011

Pequena casa branca

para Nini Salgueiro

Saberás se a seda é tão macia como a caxemira.
Enroscada na manta do sofá.

Da luz de todas as janelas da pequena casa branca,
Agora teu corpo como depois.
Os passos assustados do gato, tacteando.

E tu repousada,
Apontando com certeza as almofadas riscadas para a cama.

Tejo e sala

para Stijn Luyten, ao jantar.

Havia esta sala muitas vezes.
Era como uma coisa da memória.

Nos dia de sol apontava uma cadeira
para o varandim.

Espraiava
depois o corpo.

Lisboa era leve nesses dias e cheia de Tejo.

Sem Tejo

No páteo escuro para onde dão as janelas deste quarto.

Além,
dois gatos brincam entre as grades.
Abaixo,
como um fosso longo.

Nunca lhes mostram os becos da cidade onde o sol não chega. Nunca.

São as traseiras dos prédios que guardam o segredo-

Lisboa sem qualquer Tejo.

quarta-feira, março 16, 2011

A marquise e as gaiolas

à Tia Lil

Eram seis da manhã quando atravessava o Príncipe Real. Lisboa ainda sem gente, mas já com sol. Maio. É como dizer que nasciam flores no jardim e mais à frente nas roseiras que plantaram no miradouro.

O Tio Raoul tinha aqui uma casa quando eu era pequeno. Era um apartamento antigo da rua da Escola Politécnica. Tinha um quarto interior, com uma janela interior. Ai era a casa de jantar. Isto era um fascínio.

Havia também uma marquise de ferro azul que dava para o pateo traseiro do prédio. Há um único pateo para os prédios da rua da Escola Politécnica que se estende do Museu de Ciência ao palacete Ribeiro da Cunha. Por isso é demasiado grande para ser um pateo e demasiado seco para ser um jardim. É um quintal?


O Tio Raoul tinha gaiolas na marquise e dentro delas tinha piriquitos coloridos. Todos tinham nome e eu não lembro do nome de nenhum. Os piriquitos nunca me fascinaram. Mas as gaiolas.

Eram 6h45 quando cheguei ao meu apartamento em Campo de Ourique. Tenho uma casa pequena pela qual pago muito dinheiro. Pelo menos é muito face ao seu tamanho que é apenas razoável. O meu quarto é quase do tamanho da sala e as janelas fazem um marquise. Não tenho mais nada no quarto: uma cama de casal, duas mesas de cabeceira e vinte e sete gaiolas de todos os tamanhos e formas dispostas ao longo da marquise do quarto.

Lembram-me o Tio Raoul que era um tio de que não gostava particularmente. Gostava da sua casa, fascinavam-me as suas gaiolas. Das vinte e sete que tenho, catorze são dele. Todas as que guardavam piriquitos coloridos na marquise de ferro azul.

Amanhã vou ao banco, depois à imobiliária e vou mandar tirar o cartaz que diz "Vende-se" e por outro que diga "Vendido" no apartamento da rua da Escola Politécnica. Já não aguento mais não guardar as minhas gaiolas naquela marquise de ferro azul.

Tecido

daquele tecido fino que usava sobre o ombro preso com a pregadeira da mãe.

era assim que se vestiam os deuses, num tempo em que se falava deles.

Numa nesga de Tejo

Depois eram as janelas demasiado longas.

Lisboa, numa nesga de Tejo, e este páteo de azulejos pombalinos.

terça-feira, março 08, 2011

Poema do Tio Olavo

Ajuntámo-nos ali como as crias das águias
Sem que tarde ou mar nos viessem

Chorámos incessantemente por uma vitória
Longo tempo imaginada

E só o sol se pôs no horizonte

Em nós nunca pusémos mais que a força
Dos instantes milimetricamente acontecidos nas nossas vidas

Sem a sombra de que mais tarde houvesse consequências

A tarde nem sequer existia senão num conceito abstracto de rima

Todos os dias comíamos a areia das praias
Porque delirávamos sonhando com sermos peixes azuis brincando
Em gentis recifes de corais
No Ocenao pacífico

Não podia necessariamente ser ilha
Porque nunca nada me envolveu por completo

Fui sempre algo mais do que alguma coisa de que se pode dizer
Isto aqui
Ele é tão só isto aqui

Ninguém é tão só alguma coisa

Havia depois uma janela que na casa abria sobre o pateo
Era lá que as crianças brincavam

O tio Olavo martelava com fúria as teclas precárias da máquina de escrever
Era um pouco de mais

A vida tem que ter algo de exagero
Ou seríamos monótonos como um carreiro certo de formigas
Sem que o coração batesse violentamente dentro do peito

Enquanto esperamos por alguma coisa que há-de vir alguma coisa que não se saberá nunca o que é

Não podemos ansiar
Porque não podemos usar palavras sagradas
Nem gestos nem ritos
Nem rituais em que deusas nascem do mar engrinaldadas de violetas

Afrodite escrevia tragédias no Olimpo
Isto é um dado certo e seguro
Nada na História comprova que Hefesto o tenho feito, mas Afrodite sim

Escrevia tragédias descontinuas
E criou conceitos que só as pombas brancas conhecem

Certa manhã o Tio Olavo parecia filosofar com as pombas brancas
No beiral da janela do escritório

Nós as crianças vimos tudo enquanto
Brincávamos no páteo

Quem sabe se não seria tarde em vez de manhã
Ou em razão se não seria nenhuma hora do dia
Ou se não seria mesmo dia
Mas instante

Todos nós estávamos nas palavras que ele escrevia
nas teclas precárias da máquina de escrever

Depois as palavras, sempre as palavras
Ele repetia as palavras
Incessantemente as palavras

E agora sou eu que continuo a construir o seu mundo
Como Afrodite no Monte Olimpo escrevendo tragédias.

Da Tarde

Naquela tarde de ondas,
Enquanto o mar expirava,
Corrias atrás das gaivotas para que não deixassem
O sol esconder-se.

As rochas carregavam palavras antigas
De um mundo que aqui passou antes.

O poema aconteceu depois
Sem que eu esperasse.

sábado, março 05, 2011

O deus do mar

O deus do mar morava ali. Venci lentamente o medo das ondas que fazem rolar os calhaus e cheguei mesmo a saltar da pedra grande. Ao deus do mar, nunca o vi. Mas sei que é ali que ele mora.

A varanda

A varanda, esse segredo antigo da cidade, onde o sol batente faz o tempo correr devagarinho.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

terça-feira, fevereiro 22, 2011

Lamentação

Era um dia cheio de erros, como um sol nascido prematuro e que fora apenas demasiado pálido.

Era uma sala pequena e escura onde podia conversar-se baixinho como as aranhas.

Tudo era triste e bom, e ambas as coisas coexistiam com paciência.

O mar era demasiado leve nessa tarde e por uma vez não me quis suicidar nas suas ondas.

Desejei tanto não amá-lo que a cada ânsia pensava nele e amava-o mais.

Foi a casa mais escura de todas as que nunca habitei e nunca vi que nenhuma luz ardesse lá dentro.

Eu ardi todo na manhã de verão quando o meu corpo não aguentou mais nunca ter o dele.

terça-feira, janeiro 25, 2011

Antinoos ou Crónica do Homem e da Imagem num espelho

Passeávamos os dois de barco
Rio acima
Ele inclinava-se muito junto das bordas
E depois ria humanamente
E isso era triste.

Batia as mãos como os meninos
Que jogam o jogo das pedrinhas
E se o barco o permitisse
Teria dado saltos e pulos
De algum espanto.

Depois vi o escravo levantar-se,
Vi a mão do escravo aberta
Em suas costas.

Depois eu não me levantei,
Eu nunca me levantei.

Também gritou quando caiu
Ao rio.
Um grito seco, sem espanto,
Já morto, ou quem dera quase.

Então o escravo estendeu-me com a mesma mão
A cera e o cálamo.

Agora o teu corpo
Afundava-se muito.
Era como se fizesses um jogo novo e propositado-
Para que eu te escrevesse.

Não deixei que ninguém te tirasse da água-
Devias morrer.

Tão fundo, depois cada vez mais fundo
Que agora já só espreitavas e
Os teus caracóis ficaram desfeitos na água do rio.

Foi assim a última vez que olhei os teus olhos
E teria sido a última vez a tocar a tua pele
Tivesse eu esticado a minha mão para te erguer.

Salvei-te-
Todos sabem.
Só tu não acreditas.

Odeias-me no fundo do lago,
Mas isso é um segredo só teu
Com o qual eu posso viver.

Todos te amam depois desse dia
E eu cada vez mais,
Eu amo-te cada vez mais
Agora que humanamente
Não existes.

Eis o deus que morreu
Para buscar ser imortal
E a quem eu proibi qualquer ressureição.

No fundo do lago odeias-me,
Mas és só tu.

Por te matar e
Ao mesmo tempo
Entregar-te a vida eterna
Todos me amam
E só tu me custaste.

Tarde

Mariana junto às ondas
Naquela tarde de praia.

Não soube das gaivotas
Até que o vermelho
Dos pimentos que assávamos
Escorreu como sangue
No pateo da ilha.

Auto-retrato

Amavo o desenho da escrita.

Em cada letra,
Aguarela deste auto-retrato.

Pássaros

Os pássaros do meu bloco de notas
Mudam de voo cada vez
Que viro a folha.