segunda-feira, novembro 05, 2007

Carta aberta a um amigo

-Tenho pensado muito no que me disseste. Custa-me tanto tudo. Pensei que não ia ser assim, esperei que não fosse. Mas custa-me.

-Estás magoado comigo, é isso?

-Não contigo, com aquilo que tu disseste.

-Isso é exactamente a mesma coisa. Nós somos aquilo que dizemos. Existimos na medida das nossas palavras. Podemos ficar aquém do que dizemos, mas nunca além. São as palavras que nos moldam, que nos fazem. O que eu te disse é o que eu sou.

-Mas as tuas opiniões sobre mim, sobre o que eu sou...

-As minhas opiniões não são sobre ti. Não foi isso que me pediste, não foi isso que eu te dei.

-Mas é igual ao que disseste. São sobre algo que eu sou, algo que em tantas coisas me define. São contra o que eu sou.

-São contra uma parte de ti. Uma parte importante, é verdade. E não é que seja fácil transpor o que eu acho sobre isto e passá-lo para ti. É como se eu preferisse que tu existisses à parte disso. Mas não pode ser assim.
Tens razão. É contra uma parte de ti. Que eu não entendo, nem aceito.
Não é fácil. É muito difícil.
Mas olha para mim. Eu não posso existir além de todos estes anos. Eu sou aquilo que fiz de mim mesmo. Mas aquilo que fiz de mim mesmo não deixa de ser influenciado pelos sítios por onde andei até agora. E foram tantos anos...
Tu indignas-te e julgas-me porque eu não aceito. E eu? Eu devo aceitar que tu não me aceites? Porque tu não me aceitas. Nem me entendes. Ao menos eu procurei entender-te.
Mas tu, tu chegaste cheio de certezas das tuas filosofias democráticas. Tu vieste com os teus chavões e os teus rótulos. Foste tu o primeiro a acusar. Quem foi mais justo de nós os dois?
Podia dizer-te que gostava de não pensar assim. Não é verdade. Gostava de não ter que pensar nisto. Gostava que não fosses assim.
Mas és, e eu gosto de ti. Não é fácil. É muito difícil. Mas eu estou a tentar. Estou a tentar mesmo. Só que resulta melhor se tu tentares comigo.
Não podemos existir além das nossas palavras, mas podemos existir além de todas as nossas partes. Apenas as palavras são o nosso todo.

E ele ficou ali. Quedo, imóvel. Quieto e à escuta. Para ouvir a chegada dos dias em que chegassem as palavras.

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