sábado, novembro 15, 2014

Depois, o Outono passou

Eventualmente descobrimos que os fins de semana também são bons para dormir, que devemos pedir e guardar recibos e que nem sempre, quando chove o dilúvio em Lisboa, podemos apanhar um táxi pela impossibilidade de o pagar.
Temos que acordar ao sábado, olhar para a pilha de louça na cozinha, pôr alguma coisa a tocar e arregaçar as mangas. As caixas no pátio que estão há mês e meio para serem deitadas fora e que de tanta chuva muito provavelmente qualquer dia dissolvem-se continuam lá, imóveis pela preguiça de quem as devia levar- eu. Depois é arrumar o quarto com tudo o que isso tem- varrer, aspirar, limpar o pó, guardar a roupa, nunca necessariamente por esta ou pela mesma ordem. Abrir o frigorífico, imaginar o que se pode fazer com o que lá há. A ditadura dos congelados farta-nos só para nos rendermos à ditadura dos fritos. Um dia vou sentar-me a ver daqueles blogues com conselhos bons e práticos e rápidos e coloridos e sofisticados para pratos saudáveis, mas não é hoje. Não. Hoje é uma caneca quente de cappucino para começar com o dia e depois ovos mexidos com linguiça e tomate. Sim, ovos mexidos. Porque quero, porque me apetece, porque são meus!
Poder escolher o que fazer e ter tempo, espaço, cabeça e acima de tudo dinheiro para o fazer. Hoje a feira de velharias no jardim da Estela. Amigos, conversas, cacaus quentes. À tarde uma exposição de arte. Agora sem culpas, sem contar à míngua os cêntimos e irremediavelmente ter que fazer o telefonema: "Oh mãe, eu queria mesmo ir, mas não tenho dinheiro". Depois ter que suportar a vergonha dos gritos de que sou um bebé que nunca cresce por saber que depois disso o dinheiro vinha. Não é uma vergonha antecipada, mas atrasada de ter conseguido viver assim, cada vez com menos peso "Ela acaba sempre por dar". O dinheiro sim. Mas não o que ele significa, não o esforço que representa. Não o poder dizer "É meu!" não pelo orgulho de ter, mas pelo orgulho do que foi feito para ter. "Ganharás o pão com o suor do teu rosto!". E é um pão que sabe melhor, Mesmo se molhado em gotas de suor porque é meu e não o pedi a ninguém.
Sou algo entre o proletário e o pequeno burguês que neste país onde escolho ficar se chama classe média, Reclamo das condições do trabalho, para depois admitir que são boas comparadas com o resto que há pr'aí, para trabalhar dias seguidos cronometrados pelo relógio do canto esquerdo do computador à espera que me diga que passaram nove horas e posso voltar para casa. Eventualmente vai acabar por dizer-me que é sexta-feira, mesmo a qualquer outro dia da semana, e que posso ir para casa dois dias descansar.
Para dormir até tarde, para arrumar a casa, para ouvir música durante esse tempo, para me render aos fritos ou aos congelados. Para ler, escrever, sair, passear- fazer o que eu quiser apenas porque me apetece. E poder sonhar, sonhar sempre. Mas agora sonhar com o que pode vir e não com o que já foi. Sonhar em construir e não só em preservar. E acho que a isso, neste país em que escolho ficar e em todos os outros do Ocidente se chama viver.
Esta casa de dois quartos, com um pátio atrás e com uma sala mais pequena que o quarto da mãe no Funchal, é onde os sonhos vêm morrer e as ilusões acabam. Esta casa de dois quartos onde estão as minhas coisas e esta sala que eu arranjei (quase) como quis são minhas e são onde sonho sonhos novos e onde penso como deixá-los permanecer sonhos, mas encontrar para eles um espaço real nisto que eu agora construí para mim e que parece chamar-se Vida.

segunda-feira, abril 21, 2014

Fragilidade

Como esta fragilidade de coisa morta em que
Lentamente algo perde sabor na boca por ser tantas vezes mastigado.
Esta renda tecida de mãos fiando cansadas como uma dia
Que passaras à janela e no fim das horas, em chegando a noite,
Me perguntaras- "Porquê?", e eu ficara calado.
Como dizer-te o enigma do desperdício num tempo que já não era
De palavras?

Ao pequeno-almoço não te saiam as mãos dos bolsos senão
Para afagares o gato e eu escolhia uma música da Gal,
Daquelas alegres e mexidas,
Porque este era um dia triste, imenso,interminável.
Não que pudesses dizer algo que repetir os erros meteorológicos
Da telefonia, mas eu querendo sempre mais, exigindo
Palavras de jogos maiores, que lentamente sufocavam
Aquilo que não me dirias estar sentindo.
Era como uma estação onde encontrasses um pequeno buraco
Junto à sola dos botins, um pé erradamente escorregado
Em água ainda calçado em meia, um grito que percebera
Abafado na almofada no instante em que desperto de tudo isto.

sábado, fevereiro 15, 2014

Poema do dia de ontem

pour lui, encore

Não me interessam que olhos pousaram antes sobre ti, ou que lábios disseram amorosamente o teu nome.
Não me importam as árvores debaixo das quais te sentaste de mãos dadas,
Nem as horas que perdeste pensando em outrém.

Não te quero com anos, nem com estórias acontecidas.

Ambiciono estar nos teus sonhos e que ocasionalmente me dediques um pensamento.
Espero o teu cheiro e poder tocar os teus cabelos .

Quero que me chegues sem ontens. E que faças meus todos os dias que se seguirem.

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Cidade

Nas ruas da cidade falha o tempo.
Amar-te é hoje a hora mais difícil.

Pateo II

De ti, um gesto breve no pateo branco. Não esperes
Mais que te espere sob a lua.

Rua direita da cidade. Espaço conciso.

Amei em ti todas as coisas que me deste.

Pateo I

De ti, um breve gesto sobre o pateo, numa noite
Em que os deuses souberam dizer o teu nome sob a lua.

Rua direita da cidade branca. Janela do quarto.

Palavra.

Amei em ti todas as coisas possíveis.