quarta-feira, março 28, 2007

Prenhes

É ainda possível dizer que é tarde?

Já lancei os dados, mas algo
Continua a rolar incesantemente na minha cabeça.

Começo a ficar prenhe de ti.

O teu mundo é natural e verde
Como as tardes de junho que espero nesta primavera
E trazes em ti segredos solares.

Eu sou feito de betão,
Tenho alma de cidade
E no peito uma insensibilidade que o prova.

Tu moras algures dentro de mim.

Procuro-te por dentro,
Não te acho,
Mas sei-te e
Isso é um tormento.

Vives na minha sombra
Mas levas mais luz que eu.

Não tenho nome que te chame
E se chamasse
Não virias.

Vives além das palavras ditas,
Vives num chão de terra cultivado
E colhido nas primeiras chuvas de setembro.

Pudesse eu ser fértil como tu!

Assim saberia como se constrói uma vida
E quantas gotas de suor fazem
Um dia de labor.

Tu sabes do chão,
Eu sei do mar.
Tu és dos meus olhos verdes
Mas eu ainda não tenho lugar em ti.

Quando chegar a noite
Pede ao teu corpo
Que se emprenhe de mim.

Rememoriar



São elegâncias passadas que raramente nos visitam. Tardes de sol e corpo molhado entre os banhos na praia e os lanches na sala antiga. Memória de uma infância guardada no zelo das primeiras horas e constantemente revivida, reinventada, readquirida. Nomes ditos de cor pelo prazer de chamar os que já não estão, mas que ficam sempre. Tardes de um Agosto distante que, espero, chegue depressa.

O nu de Radcliffe e as suas curiosidades



Com tanto falatório em torno desta polémica do jovem Radcliffe aparecer nú nos cartazes de propaganda da sua primeira peça (bem como na peça em si), não quis deixar de deixar em nota o que acho.

De facto, o nu é um fenómeno curioso. Usei durante muito tempo no MSN uma imagem de Gale Harold e Randy Harrison (Queer as Folk, the american series) representando as suas personagens, Brian e Justin, em pleno acto sexual. Confesso que o fiz por pura provocação e que obtive o resultado desejado. No entanto, esse mesmo resultado não passou de meia-dúzia de comentários mais ou menos bem-humorados sobre a dita imagem. E porquê? Porque ainda que ambos aparecessem nus e simulando o acto sexual apenas se via o bem torneado rabo de Gale Harold.

Descobri na net há relativamente pouco tempo as fotos para a propaganda da peça "Equus". As fotos são, em meu ver, de uma beleza extraordinária, com um jogo de luzes muito bom e uma brilhante encenação estética, com o jovem Daniel num ar de fria masculinidade anglo-saxónica, algo que quase poderíamos chamar de agressividade elegante e delicada.

Ora, quando tomei posse desta foto que apresento passei a usá-la no MSN, pelas razões referidas, porque me agrada o pequeno e porque sim! Pois agora não há pessoa que não critique a dita foto. E porquê? Porque é um nu!

Descobri que podemos servir-nos da pornografia na net e seus afins desde que não se vejam genitais.

Para aqueles que conseguem ver além dos desnecessários pudores fica uma foto belíssima.

domingo, março 18, 2007

Uma vez numa tarde de Domingo

Fui lá beber palavras
Encantos sonhados,
Vividos.

Sou cheio de espanto!

Aprecio estes recantos
Guardados, escondidos,
Segredos da tarde
Em meus pés cansados
De passear ao Domingo.

Tardiamente me encosto
Recostado nas letras
Seguro, secreto,
Criando as palavras
Ofício continuo,
Enquanto nos teus livros,
Cabaças,
De lento bebessem as Áfricas.

quinta-feira, março 08, 2007

Conto de Gustavo-II

Para Daniela Brigue Varela, que sente como eu. Para Filipa Tereno Nunes, que me lê como uma transparência. Para Maria Ribeiro Braga, cuja extraordinária beleza e tocante delicadeza me inspiraram.

O trânsito não avança. O relógio do carro mostra 14:11. No visor do telemóvel que começou agora a tocar pisca o nome de Artur.
-Sim?
-Olha, falei agora com a tua irmã Teresa, por causa de vir cá deixar os miúdos. Ela disse que não tinhas passado por lá.
-Sim, é verdade. Acabei por não ir lá a casa. Se eu te disser onde fui zangas-te?
-Foste aos Penedos outra vez ver os teus fantasmas!
-Sabes que não gosto nada quando falas assim. Precisava de lá ir. Precisava de ver as coisas para sentir a ausênsia das coisas.
-Eu só não sei se com essa poesia toda tu precisas de te despedir das pessoas ou da segurança que essas pessoas te transmitiam.
-Olha, quando um GNR me mandar parar o carro queres que lhe peça um tempo para te responder, ou passo-lhe o telefone para ser ele a resolver essa tua dúvida filosófica?
-Espirituoso! Ainda estás nos Penedos?
-Não. Estou parado no IC 19. Acreditas que esta porra tem trânsito a esta hora?
-Eu não acreditava era se não tivesse trânsito!
-É verdade, Artur, tu não te importas mesmo de ficar com os miúdos?
-Não me importo nada Gustavo. Tu sabes que eu adoro ficar com os teus sobrinhos.
-Então está bem. Aquilo deve acabar lá para as cinco, cinco e meia. Passamos aí por casa depois para tomar qualquer coisa: eu, a Teresa, o Inácio e o Miguel.
-Vá então, beijo.
-Outro.

Havia sempre este conflito entre os dois: os Penedos. Desde que a avó morrera há menos de dois anos que Gustavo ia pelo menos duas vezes por mês aos Penedos, a quinta dos avós em Colares.
A quinta tinha sido mandada construir por um dos vários ilustres antepassados de Gustavo lá para meados dos século XIX quando Sintra, e por acréscimo Colares, se tornaram local de férias da Família Real e logo a zona chique de veraneio a par de Cascais. Agora, com os avós mortos, a quinta restava fechada e de certa forma abandonada, não por desmazelo da família, mas por dor, uma dor imensa que atravessava todos uma vez que para eles aquele lugar não existia separado da presença dos seus patriarcais donos. Era agora uma coisa quase romântica, uma ruína deixada ao acaso, mas carregada de memórias e de imagens. Gustavo era o único que se aventurava com tanta frequência para além do grande portão de ferro dos Penedos. O que ia lá buscar nem ele mesmo sabia. Dizia a si próprio que ia despedir-se dos avós e sentir nos móveis e nos objectos que ficaram a ausência daqueles que haviam partido. Mas ao fim deste tempo, e ainda que não o chegasse a confessar, tinha que admitir que Artur estava de certa forma certo. Mas não inteiramente. É verdade que não se conseguia desligar do conforto e da segurança que aquele lugar lhe oferecia, da maneira como o transportava para o tempo idílico da infância. Mas também, por outro lado havia tanta coisa para lembrar ali. Era tudo tão mais complexo e difícil do que aquilo que Artur punha em palavras. Estava tudo tão emaranhado dentro dele. Era quase como decidir por ficar com a melhor metade de um quadro e deixar a outra para trás- simplesmente não é possível, temos que levar tudo.

Abrir o portão era sempre um rito que o gosto teatral de Gustavo por estas situações tornava ainda mais magnânimo. Era um amor pelo exagero de certa forma escondido que Gustavo só revelava a si próprio nestas coisas e que só os mais íntimos, como Artur, eram capazes de ler nele. Seguia pelas escadas que davam à entrada principal. Entrar era mais do que voltar a casa, era voltar atrás no tempo. O seu amor pelo exagero e pela grandeza atraía-o para os grandes salões da casa. Abria logo as janelas, mas deixava as cortinas corridas para que fosse tudo a média-luz, na criação de um espaço que ele queria e sabia onírico. Na sala principal da casa parava muito tempo sentado numa das poltronas frente à lareira que tinha, um de cada lado, os retratos da avó e do avô, ela de vestido comprido, ele com o seu traje de cavaleiro da Jarrateira. Antes havia sempre um ramo de flores frescas que Jacinto, o filho do jardineiro, colhia no jardim de três em três dias e punha no grande jarrão setecentista que ficava em cima da lareira. A avó adorava flores. Gustavo adorava flores. E lá restavam nesse mesmo jarrão os cadáveres das últimas flores que Jacinto lá colocara antes da avó morrer. Para Gustavo representavam mais uma fantasia romântica daquela casa. Depois levantava-se e seguia para o grande quarto de jantar. Lá estava a grande mesa com os dois candelabros de prata escola da Flandres do século XVII. E Gustavo lembrava as estórias que o avô contava sobre as muitas viagens daqueles candelabros que tinham vindo lá da Bélgica, mas que acompanharam D. Jerónimo na sua estadia na Índia portuguesa e D. Teodoro durante o seu vice-reinado brasileiro, dois ilustres antepassados da família de Gustavo. As muitas cadeiras com os lugares sempre certos para os filhos e os netos e sobre a lareira o belíssimo espelho veneziano que a avó trouxera duma das suas viagens a Turim, onde o comprara num leilão. Mas apesar do seu amor pelas grandes salas era sempre nas mais pequenas que se sentia melhor, um gosto quase vitoriano pelo recanto. A sala de xadrez, toda em madeira num pesado estilo neo-gótico com os contornos da sua imensa janela retorcidos em figuras que tinham atormentado a infância de Gustavo, dos manos e dos primos. Ao fundo o grande sofá Luís XVI, uma mistura arriscada que só o extremo bom-gosto da avó fizera funcionar. Mas era para lá da sala de xadrez que estava a sala preferida de Gustavo: a sala de música. Pequena e rectangular reservava quase metade do seu espaço para o grande Erard de cauda de 1840. No resto os confortáveis sofás de aspecto chinês para os quais a avó mandara bordar inúmeras almofadas com representações do quotidiano oriental. Ao longo da das paredes de imenso pé direito repetiam-se fotografias a preto e branco dos mais variados elementos da família. Avôs de bigodes retorcidos a fumar cachimbo, tias com grandes chapéus de plumas, avós com pentados elaboradíssimos, meninos ainda bebés usando longos vestidos no dia do seu baptizado. Eram figuras fantásticas que tinham habitado a infância de Gustavo e de quem Gustavo sabia os nomes e os hábitos como se com elas tivesse vivido. Tinham-lhe nascido nessas horas mágicas do verão, entre as duas e as quatro, quando o grande relógio da sala de bilhar, ao lado, batia as três e o mundo semi-cerrava os olhos numa média-luz que nunca demorava muito. Tinha sido a hora dos afectos em que ele se sentava aos pés da avó, que se sentava num dos cadeirões e a ouvia contar estórias daquela gente que havia vivido no seu passado. Foi o tempo dos segredos e das intimidades onde se ataram laços de seda que Gustavo sabia ninguém ser capaz de cortar. Felizmente a avó restava ainda nesta sala presente no grande retrato que ocupava sozinho uma das paredes. Era a avó, a cavalo, com quinze anos na quinta dos seus pais na Chamusca. Tinha os cabelos loiros escorridos sobre o ombro direito e nos seus olhos claros brilhava um brilho de pedra preciosa que manteve ao longo da vida. A pele apenas ligeiramente queimada, como se nela a pele teimasse em permanecer para sempre naquela alvura delicada que tinha. Encantava-o a visão da avó, no seu ar de menina, vestida naquele fato de linhas tão direitas e masculinas, em que a sua beleza, que se advinhava já estonteante, quase que explodia dentro do fato. Afinal, Maria das Dores fora sempre, em todas as idades, uma mulher de uma beleza invulgar. Gustavo gostava de acreditar que havia algo de mágico no seu nome, nome que carregava num misto de orgulho e fardo e que se repetia na sua família há gerações quase incontáveis. Eram na verdade, gerações de Marias das Dores, sempre casadas com diplomatas que haviam passado o seu nome como se ele pudesse sustentar uma família. Nome que coubera à avó fazer repetir no futuro dando à luz uma outra Maria das Dores, mãe de Gustavo, que tivera também uma Maria das Dores, que por sua vez, há quatro anos tivera a mais nova Maria das Dores da família.

Depois, lá fora, estendia-se o grande jardim da quinta e mais além os terrenos continuavam, florestas por onde Gustavo e os primos aprenderam a andar a cavalo. Ficava sempre sentado no terraço a olhar a pisicina. A visão da água fascinara-o sempre e tinha o poder de o levar a um estado de meia-sonolência. Então era como se sonhasse com as primeiras tardes de Maio, com o abrir das rosas no jardim, e os primos todos de volta da mesa do terraço, de corpos molhados, a comer sandes e a beber sumo de laranja. Mais tarde com os outros verões chegaram esses tempos confusos, que Gustavo organizava na sua cabeça como o tempo de Martinho, em que a visão do corpo molhado e semi-nu do primo, na sua beleza e musculatura perfeitas de estátua grega o fazia descobrir os primeiros prazeres do corpo no quarto de banho do pavilhão da piscina. Era tudo ao mesmo tempo tão próximo e tão distante. Como se enquanto memórias tivessem acabado de ser vividas, mas enquanto vida pertencessem já a um tempo muito distante e muito antigo de que Gustavo tinha apenas uma ideia leve.

Quando deu por si tinha já chegado a Lisboa e levava agora o carro para o Príncipe Real onde a sua irmã Teresa lhe dissera que ia haver o leilão. Andava à meses aflitíssimo por causa deste leilão sem ter bem certeza do que fazer. Só sabia que tinha que vir. Parou a custo num lugar perto do jardim e ainda perdeu dez minutos à procura da galeria. Era uma zona de Lisboa que o encantara sempre, a praça do Príncipe Real. Morando no Rato preferira sempre aquele jardim ao mais elegante jardim da Estrela. Era como se ali, numa qualquer hora mágica à qual era preciso estar atento, ainda se conseguisse viver na Lisboa oitocentista. Mas agora não havia tempo para estes devaneios. Eram já três e dez e Gustavo tinha que lá estar um pouco antes para o sempi-eterno social.

A galeria ficava num desses edifícios antigos da rua D. Pedro V por debaixo do prédio onde Teresa e Inácio moravam. Aliás, tinha sido assim que os pais tinham descoberto aquela galeria. Desde a morte da sua mãe que Maria das Dores, a mãe de Gustavo, se fora aos poucos desfazendo de algumas peças que a lembravam dela. Eram sobretudo peças que tinham estado nos Penedos ou na casa dos avós em Campo de Ourique e que tinham passado para o casarão do Rato onde Gustavo crescera e onde moravam os seus pais. Mas quando a mãe decidira vender a Pietá quase que tinha ensandecido. Perder aquela Virgem era quase como perder a avó de novo. A Pietá fora sempre a grande confidente de Gustavo, aquela que guardava os seus segredos mais íntimos desde a primeira noite, quando, cheio de coragem, se esgueirou para espreitar Martinho e ela fora o seu único consolo. De certa forma, era um outro lado da avó a quem fazia as confidências que estavam para sempre proibídas à sua maior confidente que fora sempre a avó Maria das Dores. Discutira várias vezes com Artur se devia comprar a imagem da Virgem. Artur achava-a belíssima, mas de certa forma temia aquilo que ela representava para Gustavo e tinha mesmo ciúmes dela por saber que aquela Virgem guardava mais segredos de Gustavo do que ele algum dia iria saber. Em suma, tinha-se decidido que não seria Gustavo a comprar a Pietá.

Lá dentro a sala da galeria estava convenientemente aquecida com os ares condicionados, nada daqueles calores exagerados quase a roçar os trópicos que se fazia sentir na biblioteca da faculdade. Os frios rigorosos de Novembro chegavam agora apesar das tardes esplêndidas com que o sol decidira honrar Lisboa nas últimas duas semanas. Enquanto descalçava as luvas encontrou Teresa e Inácio.
-Então e o Miguel?
-Ainda não chegou.
-A Maria não vem mesmo, pois não?
-Não. Disse que achava que já era masoquismo a mais e que não aguentava mais nenhum leilão com peças da família. Eu vou-lhe ser honesta Gustavo, eu também não sei quanto mais é que aguento. A mãe teima em fazer isto aos bocados sei lá porquê. Parece que se anda a purgar duma culpa qualquer. Eu já estou como dizem os ingleses "a person can only suffer so much"!
-Sim, sim, é claro que tem razão, mas adianta falar com a mãe? E depois o pai com aquela filosofia de "nas coisas da sua mãe eu não me meto". Enfim... Por falar nisto tenho que ir dar um beijinho aos pais.
Num dos cantos Sebastião e Maria das Dores Lemos da Cunha restavam discretamente trocando algumas palavras. Maria das Dores agora sempre com um tailleur preto deixando escapar no pescoço um colar de pérolas brancas. No seu porte altivo habitual não era senão uma sombra daquilo que fora a beleza e a presença da mãe. Sebastião Lemos da Cunha estava muito direito, aliás como sempre, no seu ar de militar, esplêndido no seu fato italiano. Gustavo aproximou-se dos pais para os cumprimentar.
- Gustavo, a mãe pede-lhe mais uma vez, não vá fazer nenhum disparate! Não se atreva sequer a licitar a peça.
-Sim, mãe, já tínhamos resolvido esse assunto, não já?
-Espero que mantenha o combinado. Está ali a Amélia Brandão de Lacerda. Desculpem, mas tenho que lá ir cumprimentá-la.
Com a saída da mulher Sebastião afrouxou um pouco a sua pose sempre rígida para dizer a Gustavo:
-Agradeço-lhe tanto que venha, filho. Eu sei como estas coisas são difíceis para si, aliás para a família toda. Mas apesar da mãe não dizer a vossa presença dá-lhe uma grande segurança.
Gustavo sorriu. Era impresionante como o pai o continuava a espantar. Ninguém que não pertencesse ao núcleo mais íntimo da família seria capaz de perceber o marido dócil e atento e o pai extraordinário que Sebastião era por detrás da figura do rigoroso Coronel Lemos da Cunha.

Os pais sentaram-se à frente. Gustavo, Teresa, Inácio e Miguel, o marido de Maria das Dores que entretanto chegara, sentaram-se um pouco mais atrás. Gustavo começou a suar das mãos, sinal claro de nervosismo. Mal ouviu o homenzinho da galeria dizer que se ia licitar uma belíssima Pietá de artista desconhecido, mas certamente português, do século XVIII. A base de licitação era de €5.000. As licitações subiam, €6.100. As mãos a tremer. A voz do homem parecia cada vez mais irritante. A Pietá à sua frente como naquela noite. €7.650. De súbito, a voz calma de Teresa, a sua mão sobre a de Gustavo:
-Sabe que mais, borre-se na mãe.
Levantou-se de repente:
-Trinta e cinco mil euros!
E um alívio enorme percorreu-lhe todo o corpo enquanto se sentava. Estava feito, não se voltava atrás. Agora era só aguentar os sermões que se iam seguir ao olhar reprovador que a mãe já lhe lançara. Mas comparado com a alegria de ter comprado a sua Virgem isso era coisa de pouca monta. Resolveu o que tinha a resolver, levantou a imagem, despediu-se do pai e entrou no carro.
-Sempre vamos para sua casa, perguntou Teresa.
-Claro, então agora ainda mais. Ligue à Maria e diga que está intimada a ir lá jantar.

Gustavo mal viu o caminho que o levou do Príncipe Real ao seu apartamento na Andrade Corvo. Chegou eufórico, mal conseguindo esperar pela irmã e os cunhados. Teresa estacionou o carro.
-Agora é passar pelo Artur.
-Não, eu até acho que, de certa maneira, ele já sabe.
Entraram no belíssimo edifício dos anos quarenta. Foi Teresa quem abriu a porta.
- Chegámos, disse Teresa.
-Mãe, gritaram as crianças enquanto corriam para a abraçar.
-Entrem, entrem, respondeu Artur. Estava com os miúdos na cozinha a fazer umas tapas para agora. O Gustavo disse-te que estamos sem escrava?
-Oh, Artur, coitada da senhora.
-Olha, que é do Gustavo?
-Temos uma surpresa, espreitou Gustavo pela porta.
-Então quanto é que o teu irmão deu pela Pietá, perguntou Artur a Teresa.
-Meus Deus, mas tu sabes sempre tudo?
-No que toca a ti Gustavo, sim!
-Hum, então se calhar isto é amor, disse Gustavo com um sorriso irónico e de gozo enquanto ele e Artur se beijavam e Teresa ia já a caminho da cozinha para acabar de fazer as tapas com os filhos.
-Tinha pensado em pô-la no escritório.
-Acho bem, passas lá mais tempo do que em qualquer lado da casa.
O escritório era pequeno e estreito mas com uma janela imensa que o inundava de luz. Verde, a cor preferida de Gustavo, com uma grande cadeira de braços em vime para a secretária e duas iguais noutra ponta com uma mesa de canto. Uma estante apinhada de livros correndo uma das paredes. Gustavo colocou a Virgem em cima da secretária. Sentou-se. Artur enroscou os braços em torno do pescoço de Gustavo enquanto olhavam a Virgem.
-Vieste guardar os teus fantasmas?
-Não Artur, vim soltá-los dentro de mim e aprender a viver com eles.

quarta-feira, março 07, 2007

Desejo-te

Teu corpo,
Uma delícia revelada
Por entre as coisas
Que imagino.

De súbito
As minhas mãos
Perdem-se
Na seda das tuas
E a minha língua
Viaja-te,
Itenerário leve
De cadências longas.

Meu corpo,
Uma fantasia
Que tu descobres
Nas voltas do teu relógio,
Teu tempo próprio.

Invades-me
Enquanto me deixo tomar,
Cidades de muros caídos.

Lisboa que te sente a falta

Para Sérgio Dias de Figueiredo, com saudade.

Que diz a Cidade da tua ausência?

Diz das tuas mãos que não a tocam
Dos teus pés que não a caminham
Dos teus risos que não tos ouve.

Porque te demoras nas tardes
Agora que chegou a Primavera?

Não sabes que Lisboa nos ama a Todos
E embala o rio como o choro
De seus filhos distantes?