segunda-feira, dezembro 31, 2012

As visitas do almoço

Esperamos pacientemente as visitas do almoço.
Desde as onze horas da manhã que povoamos a cozinha de
Cheiros, sabores e manchas nas bancadas de pedra branca.
A habilidade com que a mão segura a faca que habilmente corta
Legumes, despedaça frangos e esmaga alhos
Convenientemente odoríferos para nos fazer ansiar a passagem das horas.

Procuramos com cuidado os melhores cristais, porcelanas, linhos.
Repetimos um ritual de mesa na segurança que nos liga ao passado
Às coisas certas, às certezas indubitáveis daquilo que somos
E do que nos define.

Cumprimentamo-nos lentamente, beijos com economia planeada
Com sorrisos aprendidos na infância e reservados aos íntimos,
Os que ocupam o topo da hierarquia dos afectos.
Aprendemos cedo os lugares do mundo, das coisas, das pessoas,
Os teatros medidos dos gestos.

A casa resta no seu conforto urbano de classe média,
A elegância de varandas viradas para o Tejo
E de grandes salas luminosas e bem iluminadas
Onde pacientemente esperamos as visitas do almoço.


terça-feira, outubro 16, 2012

Livros

As coisas acontecem a seu tempo e nunca por acaso. De manhã, ainda antes da casa acordar, ou à noite quando já todos foram dormir, em casa de amigos ou familiares acontece-me por vezes (poucas) esta coisa fantástica em que um livro vem ter comigo. Eu não o conhecia, tão pouco o seu autor, mas de certa forma o encontro dá-se quando aquele é mesmo o livro que quero ler, ainda que não o soubesse. Quando o peço emprestado acabo sempre por ouvir que tinham pensado em mim quando o leram. Mas não me falaram dele- o livro esperou até à altura certa em que o pudesse encontrar numa prateleira de estante para depois passarmos longos dias a encontrarmo-nos.

sexta-feira, setembro 14, 2012

Pessoas

Das pessoas é isto que guardo- o gesto. Cada qual encerrado
Como uma coisa que acontece inesperadamente e que mesmo assim
Permanece há já muito tempo esperada.

As pessoas são espantosas ao atravessar as ruas da cidade, a guiar
Os carros da cidade, a encher os sacos de plástico comprados a
Dois cêntimos nos supermercados da cidade.

Tudo o que as pessoas vestem é belo, único e existe
Neste só momento de viver todas as coisas.
Tudo o que as pessoas escolhem é bom, justo e sensato.

Aquela mãe ali sentada, enquanto a criança lhe mama no peito
Neste pequeno espaço da paragem de autocarro, o banco
Amarelo donde ao lado o senhor corta despodoradamente as unhas dos pés.
É como uma partilha intensa de coisas, de vidas- ainda o gesto.

As pessoas são cheias de vida com mãos de agarrar, beiços que berram
Impropérios ao senhor da loja e corações constantemente batentes e que mal se sentem.

Como não amar as pessoas? Como um claustro de pensamentos reflectidos,
Com a água correndo pelas fontes, assim as pessoas- calmas e rápidas,
Cheias duma dinâmica pacífica e furiosa onde se pode adormecer a criança
Por meio da discussão com o marido.

Um cão ladra quando vê uma pessoa não por medo ou por resposta
Hormonal. Ladra de espanto, de maravilhamento por essa coisa única,
Sublime que é a pessoa. Quando lhe largará um osso ou uma bofetada
É a chave equacional que rege a vida do cão comandada por esse deus-pessoa.

Com que gosto mobilam suas casa, cadeiras na sala, camas nos quartos,
Colchas, almofadas e um quadro na parede. Medem os filhos, os luxos, os dinheiros
E os dias em que não há nada sempre em comparação com aqueles que compraram
A casa mesmo ao lado da sua- as outras pessoas.

Porque as pessoas amam tudo- só se escusam de amar aqueles, as outras pessoas.

sexta-feira, maio 11, 2012

Lisboa Triste

Às vezes esta cidade sem gente, sem coisas.
Esta rua que desce com varandas velhas e telhados abatendo.
Esta gente triste que aqui mora e o seu gesto ritual
Pendurando peças de roupa na corda.
Uma vida de dedos cruzados, este pateo traseiro
Por onde rebentam as ervas daninhas.
Depois esta cidade d'ausência que nos faz crescer
O vazio enquanto nos afaga e diz boa-noite.
A Lisboa dura das pedras. emprestada por horas
Ao cansaço suburbano,
Mas que nos cai sempre na alma
E nos engana de mansinho.

sexta-feira, março 09, 2012

Gustavo (talvez IV)

Chegou, abeirou-se da estante da sala, escolheu um livro e seguiu para o quarto. Lembrou-se que a incoerência faz de nós seres fantásticos. Levantou o casaco caído no chão e, junto com o seu, pendurou-os em dois cabides junto à porta. Entrou no escritório, abeirou-se da estante, escolheu um livro. Sentou-se na cadeira de palhinha da Tia Bé.

O sorriso. Depois lembrarem-se de tantas coisas passadas juntos. Felizes, como se tivesse sido sempre assim. Esticou os pés em pontos de maneira a afundá-los completamente debaixo das cobertas. Tudo era diferente e estava tudo bem. Como é que podia ser? Ele que tinha ouvido horas e horas de lamúrias. "Um palerma, um frouxo, um incapaz." Estava bem capacitado o incapaz- boa conversa, grandes sorrisos. O sorriso. E como eles sorriam...

Fechou o livro. Levantou-se, correu as cortinas, baixou os estores, passou à sala, ajeitou as almofadas do sofá, tirou os discos que estavam na aparelhagem e no leitor de DVD's, esticou as pontas do tapete, ajeitou as revistas na mesa de centro. Ia passar à casa de jantar. Ele era sempre tão confiante. Entre os dois não havia dúvidas. Os amigos notavam, as irmãs dele notavam. Um dia até a mãe lho tinha dito. Ele era a parte cheia de segurança deles os dois. Já ele, mais sumido em quase tudo, pouco se dava pela confiança que tinha em si mesmo.

Irritavam-no os sapatos ridículos de berloque e que alguém com menos de trinta anos pudesse jantar com abotoaduras de punho. A camisa engomadíssima, o fato de corte italiano. O exagero, o barroquismo. Um lenço de pescoço- de facto só um palerma se lembra de usar com vinte e oito anos o mesmo acessório que o seu avô. Mas era mais que isso. A mão dada ao namorado. "Nunca me deu sequer a mão em público. Uma vez fui jogado escadas abaixo n'"A Brasileira" só para não nos verem juntos." Ali todos os viam juntos. Ele até queria que os vissem juntos.

As gaiolas. Na marquise azul da cozinha. Chá. Um bocado de leite. Duas colheres de açúcar. Três. Era normal, afinal. Eles nunca se tinham visto. Ele mesmo não o havia há eternidades. E depois de tudo o que ele tinha dito dele. Mas ainda assim. Era de mais. Um exagero. Um amuo por encontrar o ex-namorado feliz e contente com o namorado de agora. E ele estava tão bem. Tinha gostado tanto de o ver. Geoffroy também parecia ser bem simpático. Estava a adorar Lisboa.

Entrou no quarto. Vestiu o pijama. Deitou-se esticando os pés para os afundar debaixo dos cobertores.
- É perfeitamente normal. Não sei porque é que ficaste assim.
- Não gostei. Também posso não gostar.
- Sabes que não sou eu deitado na cama dele hoje à noite, não sabes?
(não podia deixar de sorrir)
- Sim, sei. Agora que dizes isso. Sim sei, sei mesmo. Não estás pois, não? (enquanto fazia um ar agradado de espanto). Chega-te aqui. (o braço por cima do ombro.
- Vais ler-me uma estória de embalar?
- Queres?
- Porque não?

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Lisboa

para Sara Guia d'Abreu, como todas as nossas lisboas

Este jogo inconsequente de quebra-cabeças; uma cidade sempre nova em cada esquina. Há o mistério do azulejo, do varandim com sol, da pessoa que desce as mil escadinhas da cidade que desaguam em bairros e jardins de segredo escondidos atrás de fachadas velhas e também cansadas. Não há domingo, nem dia de estar só- em lisboa há os dias do Sol várias vezes por semana, várias vezes por estação. É esta coisa que não contamos a ninguém- este anseio sempre presente de ser cidade, de estar uno com o espaço da cidade. A cidade tem muitas torres de igreja, muitas praças, muitos cantos guardados. Uma cidade secreta, como um presente que se oferece, prenhe de estórias porque ansiamos.

sexta-feira, janeiro 27, 2012

O Quarto

para a avó

Depois que morreu, desfizeram-lhe o quarto.

Mudaram a colcha (agora guardada num baú do quarto de arrumos) e
Fizeram a cama de lavado.
Um a um, despregaram da parede os quadros dos santos à cabeceira.
Levaram para outras prateleiras, umas longe da casa,
As hagiografias da pequena estante de vimes ao canto.

Abriram os armários.
Primeiro chamaram as filhas, depois as noras, depois as netas, por fim as criadas.
Dividiram a sua roupa e deram o que cresceu aos pobres.
Empilharam as caixas que estavam no toucador, agora esvaziadas,
E como tinha dito, cada mulher do seu sangue recebeu uma jóia.

Com gravidade mandaram a escrivaninha para a casa de restauro
Prometendo mantê-la como peça de família,
Herança de disputa entre aqueles que a quisessem.

Até a velha cadeira de vimes junto à janela, onde antes fazia costura,
Está agora no jardim para que, sentados, a possamos lembrar em dias de sol.

Os homens da casa instalaram depois o escadote de ferro
E fizeram descer as cortinas azuis de folhos brancos.
Limparam-se as gavetas, distribuíram-se os terços, mudou-se a cómoda alta
E eu fiquei com o crucifixo do antigo oratório que tinha vindo em panos de linho
Pelas mãos da avó Maria Augusta.

Abrimos as cartas que eram para ler. E lemos. Ficámos muitas horas deitados
Na cama velha lendo uns aos outros pequenos bocados que nos
Apanhavam a atenção.

Houve silêncio.
A casa era este retrato físico de ausência.
Era uma coisa indizível em todas as gargantas.

Chorámos e mandámos dizer missa em igrejas da cidade.

Continuámos a amar.
Depois fomos felizes.