sexta-feira, dezembro 26, 2008

Experimentação para Conto de Gustavo-IV ou Conversa sobre Tejo e Tágides

Debruçado sobre o varandim esvoaçou a mão para afastar o fumo do cigarro.

- Que mariquices! Agora nem na minha varanda posso fumar, perguntou Sara brincando enquanto apagava o cigarro.
- Vês ao fundo? É preciso que nos curvemos um pouco e que empoleiremos aqui a barriga para ver o Tejo. Dói e custa manter este equilíbrio, mas quem pensa nisso assim que vê o rio? O Tejo é tão azul. Hoje como em Agosto. Tem princípio mas é tolo dizer que tem fim. Onde acabará o Tejo?
- Já me fazia falta essa tua maneira de falar. Diz-me um poema, dizes?
- Ao longe é rio e ele vai até ao país das fadas. Porque não podemos lá ir nós também? Vês quantas perguntas faço hoje? Hoje é noite de construir poemas e dir-te-ei quantos quiseres. Porque moras em Alfama e debruçado da tua janela vejo o rio. Isso deixa-me feliz. E deixa-me feliz partilhá-lo contigo porque sabes o que é ter uma janela para o Tejo. Nós temos olhos de ver o país das fadas, não temos Sara?

Sara passou a mão levemente pelo cabelo de Gustavo enquanto lhe dava um beijo no rosto.

- Temos, porque tu e eu sabemos construir palavras de ver coisas d'alma.

A rapariga tinha o braço esticado, o corpo flectido e apoiado no varandim.

- Vês lá longe, aquela luz? Porque não dizer que aí resta o país da fadas?

domingo, dezembro 14, 2008

Estórias de Anícios e Petrónios do antigamente ou Um dia de mudar a vida das coisas antigas

A mulher fala-me. Não é muito bonita, mas é de certa forma elegante. Sorri e acena muito em concordância. Gosta de mim e eu gosto dela como estas coisas se dão entre académicos: gostamos das ideias um do outro.

Ao fundo Anícia Demétrias, ainda com catorze anos, empuleira-se no vão da escada e deixa cair pelo grande fosso a carta de São Jerónimo. A avó, matrona grave, olha-a em repreensão. A criança quase freira sorri mostrando por trás do véu da castidade uma beleza louvável no mundo dos vivos. Sexto Cláudio, espreita-me do alto, soberano, enquanto Hermoginiano acompanha o homem que vem confirmar que é real tudo aquilo que se passa.

A mulher e o homem falam e combinam coisas e acertam pormenores, meio alheios à minha existência, enquanto a decidem. Não podem ver a agradável corte que os cerca. Anícios e Petrónios do antigamente, ainda meio apagados, ainda meio etéreos. Hermoginiano já está de novo ao lado dos pais, espreitando-me do cimo das escadas. Vieram todos e espreitam com o seu ar desconfiado de romanos o rapaz que lhes faz promessas. Só Demétrias não está com eles, ainda empoleirada no vão da escada. Escorrega por ele e desce com graça os últimos degraus. De súbito, a sua mão no meu ombro. Pouco antes de acordar olho-os a todos e ouço dizê-la ao meu ouvido "Agora, dá-nos voz!"

terça-feira, dezembro 09, 2008

Estória em tom menor

Tem o beiço caído e o corpo jogado no cadeirão frente à janela. Da cidade e do Tejo algum enjoo.

A mulher abeira-se dele.

"Dói-me a cabeça como a noite."

Lá fora há noite e escura e densa.

Rosário, pensa: como pode doer a cabeça como a noite? Onde estão as palavras que faltam?