sábado, agosto 25, 2007

Tarde de Primavera numa sala de retratos

Para o Ricardo Proença que me pediu uma coisa assim.

Há uma sala velha. As paredes estão pintadas de novo. Creme. Em tempos foram cor-de-rosa. No pequeno sofá semi-curvo e de canto, que também é rosa, as molas saem por debaixo do acento. Um número pouco certo e certamente alternado de almofadas esconde o que falta. Guardam em si desenhos a ponto cruz da vida oriental. Buscam conforto em coisas que não existem. Há duas senhorinhas: uma ao lado do sofá, a outro no outro canto da sala. Há também cadeiras. Tudo é rosa e tudo tem as molas a sair.

Na senhorinha do canto da sala está sentada uma mulher mais ou menos velha. Tem os cabelos longos como as suas pernas e um vestido de veludo púrpura cobre-lhe os pés como um mar. Os cabelos debatem-se entre o louro e o branco evidente. Tem de volta do pescoço um fio de lã. Faz crochet. No sofá há uma velha realmente velha. Magra, cadavérica. Os braços, que são ossos, estão destendidos sobre o sofá. Usa um vestido leve de flores. Ao piano, que fica na outra parede da sala, uma criança de dez anos toca uma sonatina furiosa. Tem os cabelos em ouro, molhados e ondulados e veste um fato de banho. Toca com uma calma complacente, mas a música que sae do piano é imensa.

A sala é pejada de retratos antigos a preto e branco. Nos dois maiores uma senhora e um senhor olham-se e cumprimentam-se. Não têm braços com que se tocar. Lamentam-se. Noutro decorre um piquenique. Uma rajada de vento ameaça fazer voar os chapéus de pluma das elegantes senhoras que seguram os chapéus com uma mão e as saias com a outra. Um rapaz de fato à maruja olha curioso para as saias das primas. O bebé que está no outro retrato cai e chora por uma mãe que não lhe pode valer, por não existir naquele mesmo espaço. A noiva do retrato pequeno rasga o vestido contra a mão imperiante do marido complacente e espectante. O comendador assusta-se com o bolor que já lhe come as pernas no seu retrato.

De súbito, a mulher mais ou menos velha suspira:
- A Primavera outra vez.
A velha do sofá parece despertar por um segundo para voltar a ficar absorta outra vez. As figuras dos retratos descobrem-se. Cumprimentam-se, parentes que não se veem há muito tempo. Talvez há tempo demais. O bebé pára de chorar vendo a mãe e o pai que lhe vão fazendo caretas que divertem todos. Todos riem. As três mulheres na sala não estão ausentes, mas distantes da cena. Permanecem. Trocam-se estórias, anedotas de salão e novidades de coisas que podem ter-se passado há um século.

A Primavera entra pela sala. As cortinas brancas tornam-se imensas até cobrirem tudo. Há o silêncio. Um silêncio feliz de quem viveu muito.

As cortinas retornam. A sala continua velha e pintada de novo. A criança terminou a sonatina. Já nenhuma das três tem um ar fantasmagórico e já não existem cabelos estendidos até ao joelho. Uma mulher de sessenta anos bem passados põem a mão sobre o ombro da criança:
- Vamos lanchar? Há refresco de maracujá, sussurra como um segredo.
-E a Titi, perguntam os olhos da criança num tom naturalmente subido.
-Adormeceu.
As duas contemplam a mulher nonagenária que dorme ausente no sofá. Saem por uma porta. A velha fica a dormir com a cortina esvoaçando.

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