sexta-feira, dezembro 29, 2006

Das coisas que há no mar e nas ilhas guardadas na minha infância das primeiras horas

Busco um tempo fértil de palavras
E procuro em mim a hora da minha infância
Que tenha em si guardada
O início da poesia.

Hoje o poema diz-se em mim devagar,
Como uma onda que vem leve,
Mas que leva o verde das serras até ao mar.

Sophia fala-me de mansinho

Duma terra que eu amo de pés molhados.

Construo o poema num equilíbrio delicado
Entre a infância, o Verde e o eu.
Desfaço ligeiramente o novelo dos primeiros dias
Onde em suas linhas encontre as horas que me falam das palavras.

Em campo fértil de palavras
Meu labor árduo
Meu encanto em sangue
Minha dor de escrever
Dizer poema
Para vê-lo escrito
Perdidas horas de infância
Que agora me oferecem as coisas que há no mar e nas ilhas.

Mar

Dá-me palavras-plantas,
Pedras, rios
E diz-me de coisas que cresçam
Com a leveza furiosa das ondas

Meu corpo
Ilha nas ilhas
Água, parte do mar
Mar em si

Imensa sucessão de palavras
Imensidão. Micro-cosmos.
Palavras-plantas que me digam ilha.
Talvez eu
Eu e o mar
Perdido no mar que sou eu.

Descoberta,
Corre em mim o sussurro lento das ribeiras.

Sou como as trutas do Ribeiro Frio:
Nado sem destino, mas sei que nado.

E o dia (re)nasce ,
Luz que bate nas águas
Do mar que sou.

domingo, dezembro 24, 2006

Feliz Natal!

A vasta equipa d'"Enquanto Lisboa namora o Tejo..." (que sou apenas eu) agradece a amizade de todos os seus leitores e a todos deseja um feliz Natal!

Faz-me falta um fado

Para ti, minha companheira de fados.

Agora falta-me o fado

Quando começo a ter saudades de ter saudades

Quando o meu corpo te sente a falta

E alguém geme numa guitarra

As palavras que gostava que fossem minhas


Agora falta-me o fado

Nas noites longas do Inverno

Uma dor que aqueça a minha

Na nudez de uma cama vazia

Onde a saudade me adormece


Agora falta-me o fado

Quando me esqueces não sei onde

Nos braços não sei de quem

E meu coração magoado

Anseia por ti só

E mais ninguém.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Nós

Ao Luisillo, que bem mais que o meu silêncio é a fonte de todas as minhas palavras.

Meu sonho de Verde,
Nossas verdades.

Escreves palavras em cada acto que tomas,
Nosso secreto vocabulário.

Os olhos, uma nova gramática.
Em ti meu campo lexical de palavras.

Teus braços
Que me abraçam
Enquanto me falas
Sem palavras

Só os olhos

Nós os dois

A noite, mais nada.

Vem de ti a palavra.
Dizes!

Para mim és o mais importante.

Paixão urbana

Para o Ricardo Proença.

Levas a passear
Minha paixão urbana
Pelas ruas da cidade
Enquanto me beijas nas salas de cinema.

Orquestras as cores que existem
Numa elegância delicada
Como o céu pintado numa galeria da Baixa.

Não te perco,

Deixas-me

Teu corpo, o meu
Tão poucas as palavras perdidas entre as horas

Nas horas da cidade
Não te deixo

Guardo-te

Como a elegância dum gelado comido em Novembro.

De mim te dirá
A cidade que me ofereces devagar,
Um Natal precoce e longo.

Peço-te

Sabe esperar na cidade a minha hora.

Insular

Para a Rosa Carreiro, que conhece os segredos das ilhas.

Teu sorriso leve
Dum canto do Verde
Que Lisboa não te roubou
Perde-se nos teus cabelos
Numa esquina do Chiado

Teu peito carrega um duplo amor
Uma força insular
De ser ilha mesmo além das praias

E assim, quando andas
Pelas ruas estreitas do Bairro Alto
Ondas rebentam aos teus pés.

Porque teu corpo e tu
Vivem de dois mundos
Amor de quem nasceu a cheirar o Verde.

Dos segredos que habitam as palavras

Para a Sara Guia d'Abreu.

Das palavras me dizes
Da tua ânsia delas
Que nelas repousa

Teu sentir escreve-se nas palavras que buscas,
Um livro branco de Yourcenar,
Uma água doce.

Encanto das tuas cores
Na demanda incessante das palavras
Que a poesia te traz.

Gastas as tardes dos teus junhos
Guardas as tardes dos teus junhos para as palavras

E mesmo embalada no calor vivo
Das três horas da tarde
Teu livro não cai da rede onde dormes.

Perdida entre as palavras,
Tuas rússias distantes,
Estórias antigas

Buscas algo que te faça
Saber passar a barreira
Inultrapassável das horas.

Das palavras me dizes
Quem perde, quem acha,
Quem busca,
Suaves grafias
Em que se recorta a vida,
As palavras!

sábado, dezembro 16, 2006

Sentir

Para a Rosa Carreiro a quem descaradamente roubei estas palavras.

Mantens-me em palavras poucas

Enquanto me fazes desaprender a falar

Entregas-me à força do teu corpo

Os teus braços

A minha cintura

Nós

E levas-me a necessidade das palavras

domingo, dezembro 03, 2006

sábado, dezembro 02, 2006

Just like Marie Antoinette. Retrato de elegante no Lux.

Leva-me a dançar ao Lux, she said just like Marie Antoinette.

Lá fora, além das janelas cruas, a chuva cai cortante como ela. Uma maravilha de vidro e betão- ela e o loft. Na imensidão dum espaço criado para ser vazio como ela, nem um olhar. Para quê gastar os olhos verdes? As suas palavras escorregam pelas paredes frias. A sua vontade escorrega soberana até ele, just like Marie Antoinette.

Vestida como quem nasceu para ser de frio ela entra. Não há palavras, só olhares. Os dos outros, os seus nunca se desperdiçam. O corpo perfeitamente equilibrado sobe as escadas num dança ondulante retorcida pelos espelhos. Ela ama-se até à infinidade em que a sua imagem se reproduz.

Pisa o chão como quem pisa a vida. Afinal ela é tão superior a tudo, just like Marie Antoinette. Nos lábios um São Francisco, o álcool já é demasiado vulgar. Senta-se. Não olha em volta. Não faria sentido. Ela pertence, não observa. De resto, ela já conhece tudo de olhos fechados. Tudo guarda a mesma elegância urbana que é a sua. Nem a música a faz mexer.

Na sua perfeição um vestido de veludo escarlate apertado no peito, escorregado na cintura, caido nas pernas. Uma ligeira ondulação- no vestido, nunca nela. As meias pretas. Os stillettos encarnados. No decote uma jóia de Lalique. Sobre o peito fiadas de pérolas negras. Os cabelos serpenteiam em volta da nuca, just like Marie Antoinette.

Levanta-se. Desce as escadas com uma elegância superior. A pista escura, as bolas giram e brilham. Tudo é belo e vibrante. Ela vibra na música que lhe entra pelo escarlate do vestido.

O corpo perde o controlo de si mesmo. Ela agita-se na pista em perfeitos movimentos ondulantes. O calor de tudo toma-a cada vez mais. O vidro da sua pele derrete. Ela ainda dança. Torna-se real. O olhar dela cruza-se consigo mesmo nos espelhos dos outros. Ela ama-se até à infinitude do seu reflexo, just like Marie Antoinette.

Agora ela está no seu elemento,

just like Marie Antoinette.

Lá onde passa o rio da minha aldeia

O rio da minha aldeia quase não existe no Verão, mas no Inverno as chuvas enchem-no e ele corre entre as pedras até ir desaguar noutro rio que eu não sei.

Às vezes gosto de olhar o rio da minha terra, no enclave em que nos abandona. E então deito-me a pensar em memórias de infância que vou fabricando enquanto a tarde me deixa.

O rio da minha aldeia faz-me lembrar o cheiro da compota e as horas de espera para que a compota fique pronta e as estórias que uma avó me contaria numa cozinha velha até as horas acabarem. Faz-me pensar em brincar no coreto com os outros meninos e jogar ao pião e ao arco e a coisas antigas de que os rios estão entranhados por força da sua longa vida.

O rio da minha aldeia vai furioso no Inverno, mas só me lembra coisas calmas como dias de escola com a chuva a bater nas janelas e as horas a morrerem no grande relógio ou em noites frias de nevoeiro com o corpo esticado à lareira.

O rio da minha aldeia nada sabe do que está para além do rio onde desagua e que eu não sei. Não sabe de Lisboa, nem das suas cores nem das coisas que eu gosto e que quero para mim, por isso eu não quero o rio da minha aldeia nem ele me quer, porque não tem nada para me dar. Mas há tardes em que olho o rio da minha aldeia e imagino...

Killer Queen

Ao Ricardo, que me apresentou a esta música.

"She keeps Moet et Chandon
In her pretty cabinet
'Let them eat cake' she says
Just like Marie Antoinette
A built-in remedy
For Kruschev and Kennedy
At anytime an invitation
You can't decline

Caviar and cigarettes
Well versed in etiquette
Extraordinarily nice
Chorus

She's a Killer Queen
Gunpowder, gelatine
Dynamite with a laser beam
Guaranteed to blow your mind
Anytime

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Insatiable an appetite
Wanna try?

To avoid complications
She never kept the same address
In conversation
She spoke just like a baroness
Met a man from China
Went down to Geisha Minah
Then again incidentally
If you're that way inclined

Perfume came naturally from Paris
For cars she couldn't care less
Fastidious and precise
Chorus


Drop of a hat she's as willing as
Playful as a pussy cat
Then momentarily out of action
Temporarily out of gas
To absolutely drive you wild, wild
She's all out to get you
Chorus


Recommended at the price
Insatiable an appetite
Wanna try?
You wanna try"

sábado, novembro 18, 2006

Trechos sobre Lisboa ou A dificuldade de escrever

Eu quero as manhãs geladas de Lisboa e tenho saudades do Sol. Canta para mim. Os teus braços à minha volta no miradoiro da Graça. Frases curtas numas linhas de papel. Ao menos se eu pudesse desenhar o teu corpo enquanto as minhas mãos o passeiam.

Sinto falta de ti e da cidade também. Há sempre uma câmara oculta nas esquinas dos bairros para nos apanhar debaixo dos varandins. Para ti a cidade não tem música, mas tem cheiro. O cheiro das pessoas é também o teu cheiro.

A tua língua no meu pescoço. Estou num impasse, mas continuo a escrever. É como uma sede. Parto para falar da cidade. Fico-me pelas palavras. Não é possível falar da Baixa de Lisboa assim, só em palavras. É preciso que as minhas palavras tenham vida. Mas elas não têm.

Os teus braços enrolados nos meus são um bom começo e um porto desce-nos pela garganta. Eu só quero escrever. O castelo está à nossa frente. Para quê fechar os olhos e imaginar outras coisas? O castelo está à nossa frente. Eu anseio desesperadamente por ter sentido. Torces-me a cabeça: alguém bate um tapete sobre uma janela numa casa amarela de Alfama. Lisboa é como um fado.

Eu quero a vida excitante, sentir as coisas que palpitam e provar as cores opacas do urbanismo. Tudo em mim é intenso agora. As tuas mãos estão dentro das minhas calças. As pessoas olham. Mas se tenho as ruínas do Carmo à minha frente para quê olhar para elas?

Escrever dói. É impossível parar de escrever. Leva-me até ao elevador de Santa Justa. É preciso que o vento me invada a cara e a marque. Tu não queres olhar de alto. Queres estar num beco a olhar para uma luta. Eu insisto em escrever. Tu insistes em viver.

Tu beijas-me contra uma parede da Rua Garrett. A tua língua viola-me a escrita. As pessoas aqui não olham. Tudo é urbano demais para que os outros se choquem com a maneira como influências o que escrevo.

Agora o bairro Alto, depois o Príncipe Real, o Rato, a Estrela. E nós, que nunca saímos do miradoiro da Graça. Tu acabas de beber. O teu corpo parado à minha frente a violar-me. O Sol põe-se, ou pelo menos sabemos que se põe para lá das nuvens. A tua mão agarra a minha. Já acabaste? Acabar não é para nós. Nunca se acaba de amar Lisboa.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Tríptico de mim mesmo

Lá no ponto onde o mar assenta
Resta a minha consciência do mundo

O meu corpo vai envolto nas gaivotas,~
Comedor do tempo

Mas eu estou sempre dentro das coisas
Que estão dentro de mim

quarta-feira, novembro 08, 2006

Retrato de mulher em vestido de gala

Busca da elegância. E há sempre esse namoro prolongado com o espelho enquanto pinta os lábios. Agora as pérolas para o cabelo, três tiras sobre a testa. Na cintura magérrima o vestido, uma segunda pele. As luvas de manga de canhão descem os braços.

A mão estendida para quem lhe abre a porta. Não há últimos olhares.

Um flute de champagne ergue-se. Ela ri. E ela que quase nunca ri. Mais um brinde. Há um certo toque boémio em cada brinde, como se a vida se tornasse absolutamente fabulosa. O vestido voa por onde ela passa. Tudo é etéreo; nela e por contágio em tudo o que a rodeia.

A pele branca de mais, os cabelos louros de mais. Ela é quase transparente no vestido, onírica como um mundo criado com cuidado para si mesma.

É raro passarem-lhe pensamentos, mas por vezes o luar caído sobre certas nuvens mais escuras chama-lhe a atenção.

Agora a música. As mãos fortes de um homem, a sua cintura magérrima, os violinos que vibram tão alto. O corpo cai. Ela perde-se nele. É mais como se se deixasse ir. Quem sabe naquilo que pensa. Ela é como uma ave nas mãos dele.

Acabar é sempre difícil, mas nunca para ela. A realidade a que volta, a sua, é sempre irreal.

domingo, novembro 05, 2006

Palas Ateneia


Por entre a majestade do ouro e do escarlate das suas roupas, obsessão constante de Rembrandt, surje o seu rosto calmo, como que alheio à sua própria glória. É como se agora e sempre Atena, coroada pela coruja, restasse atenta apenas aos seus pensamentos, mar em si constante, e partisse mais uma vez para a guerra sem vontade de o fazer. A cidade ocupa-a, porque ela mesma se ocupa do Homem civilizado. E ela mesma é homem e mulher ao mesmo tempo, sumo Hermafrodita, juntando em si as qualidades de todos.

Retrato de rapaz em algumas variações

Perto de uma grande parede de vidro o seu corpo resta, como que jogado, a um canto. A sua expressão é ao mesmo tempo distante e orgulhosa. A perna direita flectida ao alto, a esquerda ao lado. É como se alguém o tivesse perdido ali e ele tivesse desejado permanecer perdido. Ali ele está perdido dos outros, mas não de si mesmo. Palavras repetem-se constantemente na sua cabeça e a consciência de se saber simultaneamente divino e rejeitado aflora-lhe a arrogência. O ar arrogante torna-o desejável porque distante e de certo modo inatingível. E isso desperta em mim uma vontade de ver a baixo do terceiro botão aberto da camisa. O corpo está exposto na camisa amarela e aberta e há nele uma doçura clássica e latina, num peito ao mesmo tempo másculo e delicado.

Eu desejo-o, é certo, para mim. Mas ao mesmo tempo, ainda assim, não o quero tocar. É como se desejasse apenas a sua essência. E mais que tudo a sua suma arrogância de estar ao mesmo tempo alheio e atento ao que se passa à sua volta, como se os olhos não soubessem o que sabe o corpo.

Guardo agora a sua imagem junto à parede de vidro. Lembro apenas o divino. De nada me serve nele o que é humano.

terça-feira, outubro 31, 2006

Tranquilidade

Na linha precisa em que o mar encontra o meu corpo

As ondas dizem palavras que me amansam o mundo.

domingo, outubro 29, 2006

Sensualidade

Há uma delicadeza imensa na maneira como ela se debruça. Ao mesmo tempo um misto de tristeza e absoluta segurança numa feminilidade que lhe sai da pele e nos intoxica como um veneno doce. O corpo caído numa exactidão medida, o busto revelado ao de leve, como se fora num filme a preto e branco. E é como se ela se mantivesse alheia a tudo enquanto canta e tudo acontecesse por mero acaso.

A bossa nova leva-a levemente, o corpo gigando, de mansinho, tudo é etéreo enquanto ela derrama as suas músicas numa sonoridade macia como só as brasileiras conseguem.

"Eu faço samba e amor até mais tarde/ E tenho muito sono de manhã". Tudo nela é simples como as palavras da música e nenhum indicador lhe pode medir a intensidade. Ela quase não anda, mas também não flutua. É uma coisa só dela, um andar de gato sobre as flores.

Agora ela tem o corpo derramado numa varanda do Príncipe Real. A cidade daqueles que não vivem morre devagar. É a hora. Mas nos olhos verdes não há expressão nenhuma. Glória onírica de uma existência perfeita longe das sensações.

Afinal, ela existe para fazer os outros sentir, sem que ela mesma sinta nada.

sábado, outubro 14, 2006

Nós- o meu corpo e tu

Para o Pedro, que me ensinou a linguagem dos gestos. Para o Ricardo que nos vai ensinando a ser simples.

Agora tu estás deitado ao meu lado depois das minhas mãos te terem arrancado algo a que tu chamas prazer. Mas eu não estou lá, só o meu corpo. Agora eu estou junto à janela, o meu corpo adormecido ao teu lado. Não penses que eu não oiço a tua respiração curta, meio a medo. Eu sei que neste momento muitas palavras morrem na tua boca, asfixiadas pela minha incapacidade de levantar os braços para ti depois daquele instante. Eu sei que as coisas entre nós são sempre imcompletas: não que tu o digas, afinal tu nunca te queixas, mas o teu corpo, os teus olhos e mais que tudo o teu beijo contam-me da tua insatisfação.

Enquanto o meu corpo dorme ao teu lado eu vejo os contornos da vida que existe para lá da janela. É um espaço em que não é noite nem dia. Daqui vêem-se apenas as essências das coisas. E há pessoas tão felizes a viver para lá da janela do nosso quarto. Mas eu não te sei fazer feliz porque estou parado à janela quando devia estar a dormir ao teu lado e não apenas o meu corpo.

De manhã quando eu me levantar com o meu corpo tu ainda vais estar a dormir e a única coisa que peço é que te lembres de mim quando eu já estiver algures na Estrela. Aqui eu já sou um com o meu corpo, aqui no meio da vida apressada das pessoas que não conheço, das pessoas que não me pedem palavras. Entre esta gente que leva uma vida vulgar e tão desinteressante eu sinto-me vivo outra vez, como naquele instante, e então o jardim da Estrela já faz algum sentido e perder-me entre os papéis do escritório é sempre uma aventura. Porque eu gosto da minha vida como ela é, eu gosto da simplicidade banal dos dias em que ela corre. A mim basta-me saber o conforto do nosso apartamento na Lapa e da elegância da minha família e pouco mais. Quando o dia em que vais entender que eu não entendo os meandros de Herberto Hélder ou porque raio do gostas tanto das peças do Brecht? E as palavras, sempre as palavras, mais e mais palavras. É como se o teu pedido urgente de palavras me sufocasse constantemente. Porque eu não sei viver das palavras e tu não sabes disso.

Agora tu abres a porta do carro e chegou o fim do meu dia. É tempo para o meu corpo. Enquanto me beijas eu já estou outra vez na janela do nosso quarto, a janela das minhas noites, alheio aos teus jantares e às tuas saídas permitindo que o meu corpo leve a vida por mim eternamente repetida em gestos maquinais que nos vão rasgando por dentro.

Agora tu chegas, o corpo envolvido no meu. Primeiro os beijos, depois a camisa, de súbito as calças. Agora de joelhos, eu dentro da tua boca. O sangue corre mais depressa e eu cada vez mais quente. Observo. "Amo-te". E agora sou eu e tu num momento que eu vá aprendendo a encher de palavras.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Manhã

Teus olhos, um encanto devagar;

A tua mão sobre a minha de mansinho.

O teu cabelo, a minha pele.

E em nós havia música.

quarta-feira, setembro 27, 2006

O grito de Hécuba mãe ou O tempo das novas memórias

Cala agora o teu grito de dor,
Hécuba, mãe,
E guarda em teus olhos as lágrimas
Que ainda te faltam
Por teu filho Heitor

O tempo descascou as paredes do teu vestíbulo
E os frescos que outrora falavam dos deuses
São agora pedras que falam do branco

Os homens,
Esquecidos das suas mães,
Desenharam no horizonte novas tragédias
E o barulho das suas armas
Lança-se ensurdecedor sobre o teu grito de mágoa

Novas letras se escrevem agora
Em tuas paredes brancas,
Hécuba, mãe,
Para contar histórias de um terror novo

Este é o tempo que temos
Para povoar a memória de novas coisas
Sem que por isso nos abandonem as Parcas

O tempo das novas tragédias
Que calam sobre a poeira da terra
O grito das mulheres de Tróia.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Etiqueta

Então lá fui etiquetado pela colher de chá. Normalmente, nem sequer alinhava nestes rituais estranhos do mundo virtual (este consiste em escrever 6 coisas aleatórias sobre mim), mas este ritual é diferente, porque, e consta no prinmeiro da lista:

1. Tenho uma coisa (será que lhe posso chamar uma afectção, não será muito gay?) pela etiqueta, não uma extrema exigência, mas algum cuidado e atenção;

2. Sou completamente viciado em refrigerantes com gás. A 7Up, o Sumol de Laranja e a Brisa de Maracujá estão em primeiro lugar ex aequo;

3. Adoro dançar. Quando saio à noite normalmente danço imenso e até tive aulas de hip-hop, agora só falta ter jeito;

4. Sou provavelmente a pessoa mais previsível que existe ou pelo menos uma das mais previsiveis;

5. O Gabriel García Marquéz é o meu escritor favorito;

6. Serei com certeza no futuro um brilhante professor universitário. (Na verdade a característica deste último ponto é a minha, por vezes assustadora, falta de modéstia).

quarta-feira, agosto 30, 2006

Estórias das paredes desta quinta

Às velhas fidalgas da vila da Ponta-do-Sol por quem o tempo passou sem darem por isso, para que saibam que há ainda quem as recorde.

O braço estendido para abrir o portão. O pedaço de ferro enferrujado já se arrasta quase sozinho agora que lhe começam a faltar as forças para reproduzir um gesto maquinal de tempos já quase perdidos. Agora que Agosto está perto do fim a grande alameda que conduz à casa enche-se de uva americana. E os seus braços velhos e as suas pernas cansadas chegam apenas para colher o suficente que lhe mate a saudade de um tempo em que braços mais viris que os seus limpavam as videiras por esta altura. A grande casa, velha de trezentos anos, ergue-se imensa na beleza da sua simplicidade, uma grande porta, sete janelas com caixilhos magnânimos de pedra trabalhada. Tudo por aqui é velho como ela, de um tempo que o tempo já levou há muito tempo, de uma memória perdida na memória das coisas. Agora ela é velha, como os galhos das videiras, velha como as pedras do pateo, velha como o tempo é velho e por isso ainda mais velha, por ser tanta coisa velha ao mesmo tempo.

Lá dentro as três salas continuam numa escuridão a média-luz, sempi-eterna, como se uma morte anunciada lhes tivesse chegado e mesmo depois de morta ela continuasse ali só para garantir aquela casa. Os braços ainda abriam o portão, as pernas ainda subiam para apanhar as uvas, mas quando tinha Madalena realmente morrido era um mistério de que ela mesma não conhecia a resposta. Muitas vezes nas horas mortas, que agora eram tantas, jogava-se a advinhar esse momento em que a vida acabara, mas em que ela, por falta de qualquer acidente que lhe parasse o coração continuara a viver. Às vezes pensava que tinha sido no seu décimo quinto aniversário quando acordou com os berros da Luzia, uma das criadas, a dizer que a Sra D Teodora, a velha tia, tinha morrido. Essa tia Teodora que mais que tia tinha sido uma avó, por falta da verdadeira que morrera antes de Madalena ter três anos, essa tia que enfeitava as horas de sereias e fadas e sabia falar das plantas e das flores e das frutas e sabia de tudo e de nada. Mas Teodora morrera quando ela era ainda tão jovem e ninguém se morre de viver aos quinze anos. Não podia ter sido quando os pais morreram naquele horrível acidente, encosta abaixo, quando regressavam de umas férias na quinta do visconde de Bianchi. Nunca sofrera tanto, mas nunca sentira a família tão unida. Foi um tempo em que aprendeu o valor das serras da sua ilha e de que no último minuto a voz do sangue clama sempre mais alto. Podia ter sido quando percebeu que nunca iria amar e se resignou ao condão de ser a tia solteira de muitos sobrinhos; ou quando os manos abandonaram a vila para ir para o Funchal; ou quando o mundo mudou, as criadas fizeram as malas e levaram os homens da fazenda consigo. Capaz que tivesse sido nos primeiros anos da velhice, em que as sobrinhas Andrade e Mello tornaram cada vez mais espaçadas as suas visitas à quinta até que o grande relógio da sala deixasse de bater a hora das suas chegadas. Talvez a grande resposta fosse que Madalena tivesse morrido em cada um destes momentos e que uma partida do Senhor seu Deus que tanto amava lhe tivesse dado o golpe final sem lhe tirar a vida.

Havia uma coisa que Madalena sabia: nem ela nem aquela casa eram já deste tempo. Porque no tempo de Madalena a simples menção do nome dos Pina e Câmara era suficiente para tremer o mundo, para fazer mudar o curso das águas, sobretudo quando o pai cavalgava os seus cavalos, tão senhor da sua fúria, dando ordens a todos, viesse Rei ou Papa para detê-lo. Antes bastava estender a mão que viriam as criadas da casa, os pensamentos transportados telepaticamente numa sedução dos caprichos de quem nasceu para ser servida. O pai já não lia na lareira da saleta, o piano restava fechado sem mãos que o tocassem, os quartos jaziam vazios, camas de ferro velho sem roupa, porque agora não havia ninguém que nelas matasse o cansaço. O tempo passara e agora Madalena sabia que não dera por ele. Agora, enquanto restava na grande poltrona com o gato no colo só uma pergunta lhe vinha constantemente à cabeça :"Depois de nós, quem há-de vir para nos lembrar?"

segunda-feira, julho 31, 2006

Nós- eu e o teu corpo

O teu corpo deita-se todas as noites ao meu lado depois de ter estado dentro de mim. Mas só o teu corpo.

Eu deito-me ao lado do teu corpo todas as noites depois de o ter tido dentro de mim. Agora eu queria falar-te de coisas tristes, como dormir ao lado dum corpo, e dizer-te que nestas noites a noite prolonga-se por mim adentro, sem luz, sem estrelas, só o espaço vazio que é a verdadeira essência da noite juntamente com o silêncio. Mas não é possível falar ao teu corpo da noite quando a única maneira que ele tem de a sentir é dormindo.

De manhã, muito antes de eu acordar e ter palavras, o teu corpo vai erguer-se, perdido numa esquina da Estrela, e eu vou perder mais uma vez esse instante em que quase te tive, ficando apenas com o teu corpo.

Nós, eu e o teu corpo, vivemos uma relação viciada de gestos automáticos e rotinas enfadonhas já há tanto tempo entranhadas em nós que me torno incapaz de te dizer como odeio que me esperes todos os dias na paragem. Não pela vulgaridade do que significa ter-te à minha espera numa paragem de autocarro, ou pelo que isso denuncia da preciosa estabilidade das nossas vidas que tu nunca desejas quebrar, mas porque todos os dias eu sei que perdi mais um encontro contigo para ficar só com o teu corpo. Porque o instante em que abro a porta do carro é o instante em que tu acabas, em que acaba o teu dia e tu, depois de horas de trabalho, és incapaz de seres algo além do teu corpo. E não é que me importe de ter os teus braços tão fortes nos meus ombros ou de maquinalmente beijar-te, é apenas essa tua incapacidade de seres homem e me amares como homem, essa incapacidade que me deixa sempre a sós com o teu corpo.

É por isso que não te falo da noite e não te digo que do Restô se vê toda a Lisboa pombalina que tanto amamos, que às conversas sobre dramática da escrita se servem cogumelos e ao ênfase que se dá quando te leio Herberto Hélder servem-se salmão e caviar. Porque o que sabe o teu corpo do gosto do caviar, da poesia de Herberto Hélder ou da cabeça do empregado espetada viva no Terreiro do Paço? Que sensibilidade tem o teu corpo além desse quasemomento em que tu estás dentro de mim e eu sou um só- com o teu corpo.

Resta-nos agora a cidade, a mim, a ti e ao teu corpo, os dias calmos de Abril e a pressa eufórica das primeiras tardes de chuva em Setembro. Restam-nos os cafés da Baixa e os restos da vida elegante de por quem lá passa e resta a vontade de que um dia me convides para ir beber chá ao Rato.

Acima de tudo, resta esse momento em que eu, de joelhos, te tenho na boca e em que o teu corpo, segurando os meus cabelos, diz de mansinho: Amo-te. Agora voltas a ser tu, instantes breves, talvez um dia fiques mais tempo além da altura em que escorres e te esvais por mim adentro.
Não sei viver além do quotidiano.
Chegam nas manhãs de Agosto
Coisas alegres de que te fale
Coisas do cheiro do Verão
Que as ondas que chegam às ilhas
Touxeram.

O piano deita o cheiro do Verão
Ao toque de cada tecla
Contando estórias da infância
Que guardámos dentro dele,

Estórias de quando o Mundo
Cabia
Numa praia e numa sala

Em que os nossos corpos
Molhados
Sobre os arraiolos da avó
Nos davam, com certeza dumas palmadas,
A certeza de que éramos felizes.

São estóriasde subir a ribeira
E descobrir sempre a frescura do Verde
Enquanto a água nos escorre nos pés
E o doce sabor das bananas
Nos invade a boca.

Agora o nosso cheiro suado
Confunde-se com
O cheiro das noites de Verão
Que é o cheiro
De quem está cansado e feliz
De se por ao lado do sofá
Com a mão da mãe
Na cabeça
Enquanto
A avó canta
Num som que muito além do Verão
Não mais deixará de visitar
Os nossos ouvidos.

É disto que te falam
As manhãs de Agosto
Quando o teu corpo amanhece,
Fresco de Luz,
E tu, da janela do teu quarto,
Mergulhas no mar
Prenhe do cheiro das coisas do Verão.

domingo, julho 30, 2006

Carta que Teodoro de Freitas nunca escreveu a sua prima, Noémia das Mercês

Querida Prima,

Escrevo-lhe porque ao fim destes anos veio-me hoje uma visão que me fez pensar em si: um piano! É bem verdade, um piano. Esse piano que me trouxe logo a sua imagem e a sua lembrança à minha está em casa de tal menina que com seus olhos prendeu os meus. Mas oiça-me minha adorada prima, se o verde dos olhos de tal menina cortejada superam o castanho dos seus olhos, as mãos pobres e gordas desta não têm a elegância que nas suas vive.

Porque esta menina, querida prima, apesar de ter uns olhos de um verde tão profundo como o seu dote, toca numa sala onde o excesso em tudo toca e onde a toda a hora o chapéu de um senhor está sujeito a roçar-se nas cortinas que descem por todo o lado. Não toca ela nessa sala onde toca a prima que guarda na tinta rosa das suas paredes o segredo dos primeiros olhares trocados, a prima tão moça e eu já homem feito, a prima com tanto para aprender e eu julgando que já tanto sabia. Essa sala onde roubávamos horas à costura da Titá para trocar sobre a forma desses livros encadernados do escritório do pai confidências tão íntimas como o são elogiar as suas mãos. E depois a prima enchia as horas que sobravam de música, porque a música vive bem dentro das suas mãos, diria dentro de si, agitando-se continuamente e enfeitiçando as horas. Como as donzelas coquettes enchem com flores os seus cestos, a prima enche o ar de música na leveza do ron-ron dos seus vestidos que descançam sobre o banco desse bem-dito piano.

Estivesse eu aí e não ouvesse mar entre nós, uma vez mais a roubaria e sobre a vista do balcão lhe diria, querida prima, que não há vista que supere a sua vista e que o odor estontiante de tudo o que é natural e bom e que nos rodeia é mil vezes inferior ao simples perfume que de manhã deixa cair atrás das orelhas num gesto de suprema elegância, pois em si tudo é elegante, as mãos, as luvas, o cabelo, pois nasceu com a certeza de que o mundo é seu, e é de facto, só pelo simples facto de ter nascido com as mãos que mais delicadamente alguma vez poisaram sobre um piano!

Amo-a, mas agora não há tempo para o amor, pois na sala ao lado deste gabinete umas mãos pobres e gordas esperam por mim agora que cometi o erro de lhe dar a ela, e não a si adorada prima, as minhas palavras que, como bem sabe, prendem mais que tudo o resto.

Seu primo,

Theodoro de Freittas

segunda-feira, julho 24, 2006

Rondó de palavras

A inspiração é sempre algo muito difícil em mim, tremendo sobre o terror das minhas próprias letras escritas sobre o papel.
É um tempo difícil quando deixo que as palavras fujam e vem nos meus pés, fruto das minhas ideias movidas, preguiça de correr para buscá-las. Quem diz preguiça diz medo porque é verdade que as palavras dão medo e que a metafísica de amar as palavras é como respirar o perfume que está na tua mesa: cansa, mas o primeiro é sempre bom.

As palavras têm uma luz consigo, mas a maneira de a ver é tão difícil que temos que sentar e não ter preguiça de escrever Verde e Mar, mesmo para perceber que são palavras diferentes.

Lentamente agora bebo o cálice das palavras, antídoto do medo, agora que chega o crepúsculo e está quse na hora do Sol tomar seu banho de Lua, lá na linha onde terminam as ondas.

As paredes do meu quarto enchem-se agora de palavras enquanto a preguiça se esgota com as linhas do meu caderno.

A cama, terra de segredos fechados, e os olhos postos no mundo, que começa na janela do meu quarto, e a noite que me traz as palavras que me escaparam no dia.

sábado, julho 22, 2006

O Mar e também os Verdes que a Ilha esconde

Para Sofia Palma Baracho, que guarda comigo os segredos das florestas.

Diz-me do mar para que eu te fale de Marta Telles e dos seus traços em tons carmim.

Então, na sala de refrescos de um grande palácio insular, verás pela clara-bóia como as luzes da manhã da minha ilha são diferentes.

O medo de perder o sol farte-á subir as escadas, para que estejas certa de que as nuvens ainda não vieram morar nos picos dos montes.

Molha agora os teus pés de mansinho na água, com cuidado para que te não rolem os calhaus, e deixa que o mar te beba delicadamente.

Do alto da montanha entenderás a verdade que a ilha encerra sobre a ciência do Verde, e de uma golfada verás como nós respiramos as quatro estações.

Deixa cair a noite. A noite aqui chega tarde e com aviso do sol. A noite aqui é só um dia mais escuro.

Do alto da ponte, na velocidade do teu carro, olha as luzes que bordam as encostas da cidade e respira outra vez.

Perde o mar, as montanhas, o verde, guarda o cheiro intenso que a neblina deixou sobre as flores, larga o corpo, queda-livre, aprende os segredos que esconde o coração da ilha.

Enquanto chega o sono

Para Marta Vieira da Silva.

Há uma certa poesia nos olhos fechados duma criança enquanto dorme. Nos olhos da Marta há a poesia de quem sonha depois de um dia a brincar entre os livros e se deita cansada de ter esgotado a vida que aquele dia lhe deu.

Quando fecha os olhos diz devagar "Não tenho sono" só para poder vir para a minha cama. Então eu abro os lençóis e ela adormece junto de mim. Eu fico guardado nos sonhos dela, porque os sonhos da Marta traçam o labirinto das minhas esperanças até que tudo se perca quando lhe toco os cabelos. A partir daí já mais nada importa, o mundo pára na seda dos cabelos dela: a Marta é maior que o mundo porque o seu desejo de viver é tão grande e ainda assim cabe na pequena biblioteca onde a Marta gasta os seus dias em brincadeiras e sendo grande não vai além dos muros do jardim da casa da avó que vão até onde chega o mar.

A Marta tem uma doçura verde na sua ânsia de ser crescida. E eu, enquanto ela dorme e lhe toco nos cabelos, tenho uma ânsia doce que a vida passe gentilmente por ela.

Mas a vida nunca passa gentilmente.

Mas nada disso importa enquanto a Marta dorme e a poesia se desenha em mim.

sexta-feira, julho 14, 2006

Licor de Tangerina

"O licor servia-se às sextas-feiras, depois do jantar com bolo de laranja. Assim, aprendi que a vida se serve quente ou fria, em banho-maria, com as suas caldas e essências para beber devagar em pequenos copos de vidro."

Ana Paula Tavares in "A Cabeça de Salomé"

sábado, julho 08, 2006

Viagem em Lisboa, em torno de nós mesmos

Para Sara Guia d'Abreu, com toda a minha admiração.

Há no teu nome uma melodia delicada, como as notas que o Tom desenhava no piano.

Viver-te é como ver Van Gogh a pintar uma tela cheia de cores. O teu vestido enrosca-se por nós nos bares do Bairro Alto, mesmo quando não o trazes e o som dos teus risos vai além da noite, até às minhas tardes de Junho para nelas derramar o sol eufórico como as músicas da Ella. Como se eu agora fosse o Sinatra e tu a Fitzgerald a cantar "The Lady is a Tramp" e isso nos lembrasse de súbito de um tempo em que eles ainda não nos existiam.

Agora temos o corpo deitado na relva (mesmo contra as ordens do sr. Agostinho) e o muundo que vemos para lá dos óculos de sol é ainda muito fosco e tem continuamente o toque do liceu a pautar-lhe os ritmos. É um tempo delicado de já não infância mas ainda de crescimentos. Tu guardas nas mãos algo. Ofereces-me as primeiras palavras.

Agora eu estou sentado numa grande poltrona, é uma sala velha dum palácio do Bairro Alto. Tchekov está ao meu lado e tu simplesmente não queres mais Ivan Vasilievitch.
Dás-me a mão para corrermos até ao teu sofá nas Ruínas do Carmo. agora vemos o Tejo todo. Tu dizes que o Tejo continua a ser o grande rio da nossa vida, que é a vida de Lisboa. E enquanto Lisboa namora o Tejo há vedettes que se abanam sobre os seus cariocas de limão escondendo estórias de tabus e mariscos. Nós gastamos a tarde a despechar confissões nas nossas chávenas de chá, porque já estamos sentados numa varanda às Escolas Gerias, mas ainda a ver o Rio.

Vivemo-nos só de vez em quando, mas olha como a cidade dança connosco os choros do Tom quando estamos juntos! E assim, viver-te é cada vez melhor, com o rio, com as flores, com os risos, meu encanto de cantos tão distantes, amiga de ontem e hoje, tu que me inspiras quando fazes biquinho enquanto lembras a Ivan Vasilievitch que são teus os prados de Valovyl.

domingo, junho 25, 2006

Contaminatio

"Difícil é saber de frente a tua morte
E não te esperar nunca mais nos espelhos da bruma"

Sophia de Mello Breyner Andresen in Navegações

Difícil é saber de frente a morte dos meus sonhos
E não os esperar nunca mais nos espelhos da vida

sexta-feira, junho 16, 2006

Tríptico da Dificuldade

I
Difícil é buscar
Continuamente
As palavras

II
Difícil é saber
Da tua ausência
Na continuidade
De todas as horas

III
Difícil é continuar
À tua espera
Nos minutos infinitos
Mesmo quando a noite
Já se levantou sobre nós
E a Lua Nova
É presságio de que não virás

sábado, junho 10, 2006

Midsummer night dream

O teu corpo tem um gosto estranho que provém do facto de beberes shot's sempre sentado nas noites de Junho do Bairro Alto.

Tu sabes beber. E quando digo isto não é com mansidão, mas com carinho nas palavras. Tu bebes com a elegância de se saber estar em qualquer lado, mesmo nas noites mais frias de Junho (que as há!) quando só querias um casaco por cima dos ombros. Ainda assim, não deixas de beber, nunca com exagero, sempre suavemente como alguém que realmente aprecia o que faz e imprime a cada gesto, neste caso a cada gole, a certeza interior dos gestos que são definitivos, porque são importantes.

E o mais estranho, não é o teu corpo erguer-se acima dos outros numa elegância impar em qualquer tasca do Bairro Alto, estranho é como os teus lábios em volta de um copo fazem com que o calor e o frio dessas noites de Junho me excitem mais e mais no desejo do teu corpo.

É como uma bebedeira de muitos shot's bebidos todos de uma vez (o limão só com açúcar, nada de canela, se faz favor), que está longe da elegância deliciosa dos teus lábios suavemente em cada gole, mas que é quase tão gulosa como tu e certamente incontrolável. Fogo do álcool que me queima as entranhas numa ânsia súbita de entrar pelas tuas entranhas e unir os nossos corpos num cio furioso numa esquina estranha do Bairro Alto.

A noite vai-se instalando cada vez mais. Tu sabes beijar, beijas como bebes, com a sofreguião elegante do gole em cada vez que a tua língua busca algo na minha boca. A pele sente o calor, mais forte, mas nunca como num filme porno espanhol. É uma coisa do cinema francês onde numa tela gigante numa língua de suma elegância Isabel Huppert e Catherine Deneuve dançam a dança antiga das damas sedutoras esperando que Fanny Ardant saia do piano para se nos juntar. Beijo-te como se elas se rissem sobre nós com grandes flutes de cristal num champagne precioso.

A noite, sempre a noite, ainda mais a noite. O Junho, tão diferente dos Junhos da minha infância. O calor, tão palpável que era capaz de o engarrafar. Os teus lábios em torno de um copo. A maneira como chupas o limão. E eu de cabeça perdida enquanto anseio por ti e por Junho.

sábado, junho 03, 2006

Fundação Medeiros e Almeida

Num transversal pequena e simpática da Avenida da Liberdade (Rua Rosa Araújo) ergue- -se, entre a sombra de umas poucas árvores, a Fundação Medeiros e Almeida.

Casa-museu, o edifício alberga dentro de si uma impressionante e magnífica colecção construída pelo seu falecido patrono ao longo de toda uma vida. Os corredores e salas do palacete são uma deliciosa viagem pela estética de uma pessoa, estética que nos oferece uma envolvência delicado no bom e no belo passeando pelos mais variados objectos, dando-nos a certeza de que é possível viver-se numa obra de arte.

Um viagem aconselhada a todos os amantes do belo para se aproveitar uma das muitas tardes quentes que Lisboa agora oferece!

sábado, maio 27, 2006

Assim, de repente...

Ao Luisillo.

Numa noite de calor fresco que nos sabia como a promessa de um banho de água morna que se toma de manhã e nos desperta os sentidos, deixámo-nos cair nas confissões. Foi uma noite de palavras- palavras que os dias que nos separavam pediam há já algum tempo. Foi uma noite lenta de intimidades rápidas e tão complexas que nos permitimos viver como as mãos escorregam pelo marfim frio de um piano para lhe roubar as notas mais fundas.

Podia ter sido nessa hora de calor insuportável, quando no relógio de García Marquéz batem as três, enquanto estávamos deitados nas redes dos nossos alpendres. Podiámos ter escolhido falar por aí. Mas esperar até ao calor tropical dos verões colômbianos ia demorar tempo de mais. E nessa noite fomos nós que construímos o tempo.

Os teus olhos nunca me mentem e o meu corpo cai de leve sobre o teu. O teu abraço surge de repente para criar espaço para as palavras. E assim, de repente, largaste as tuas palavras sobre mim com uma insustentável leveza. Numa noite de palavras, as tuas palavras tão poucas para que tudo continue bem.

Para mim também Tu és o mais importante!

quinta-feira, maio 11, 2006

Os Aristocratas

Estreou recentemente "Os Aristocratas".

Desaconselhado a pessoas sensíveis, "Os Aristocratas", é uma fabulosa viagem ao mundo da comédia e àquela que, provavelmente, será a maior piada do mundo.

Correndo o rsico mais perigoso no humor- que é o de falar sobre ele e de o teorizar- o autor deste genial documentário percorre todas as vertentes de uma única piada sem que ela nunca perca graça.

"Os Aristocratas" joga com os nossos preconceitos mais profundos e assim leva-nos numa interessante viagem aos limites e às barreiras que a sociedade e nós mesmos nos impomos.

Lie with me- Vem comigo

Provavelmente o filme já estará fora de cena. Mas se tiverem a incrível sorte de descobrirem que não está não deixem de ir ver.

Brilhantemente interpretado, Lie with me, é uma viagem ao mundo da linguagem sexual e da viagem que nos leva do sexo aquilo que pode ser o amor. De uma beleza estética impressionante e de um erotismo delicado e elegante é um filme a não perder.

segunda-feira, maio 01, 2006

Poema ao 25 de Abril

I
Espera que o sol seja muito quente
E então sai à rua.
Caminha pelo lado da sombra sem nunca
Tirares os olhos do outro lado.
Vê como o mestre-d’obras
Desenhou todas aquelas janelas
Só para que tu as pudesses ver esta tarde

Continua a caminhar.
Deixa que o cheiro,
Que de súbito se instalou no teu coração,
Te indique o caminho.

Quando chegares ao jardim
Atraído pelo cheiro das coisas frescas
Que vivem no calor da tarde
Senta-te debaixo da sombra do grande caramanchão
Que está no centro do jardim.
Ouve o riso das crianças que brincam no parque
À tua frente
Para aprenderes como o mundo é ainda jovem
E por momentos deixa-te levar.
Agora abre o livro-
Lê dez páginas e respira,
Respira fundo
E deixa que o sol profundo que se instalou
Entre as três e as quatro
Se instale também dentro de ti;
Que ele te invada o corpo.

O rio continua à tua frente
E a cidade pulsa agora nas tuas veias.
Por esta altura já todos os cheiros te chegaram,
As aves voam cada vez mais alto.
Respira fundo.

II
Quando abrires os teus olhos
Ainda prontos para ver tanta coisa
Lembra-te de Abril.
Lembra-te desse dia em que se começou
A construir a tua tarde.

Quando respirares fundo
Pensa nos capitães em suas chaimites
E deixa que o cheiro inexistente dos cravos
Te chegue ao nariz.

Olha agora o sol de frente,
Ele já não te pode mais queimar,
Agora, Abril construiu s liberdade.

sábado, abril 22, 2006

Suavemente

As tuas mãos percorrem o meu corpo suavemente.
Eu deixo-me ir,
Como as folhas dos campos franceses
Que caem continuamente sobre os lagos
Sem saberem de estações.

Amar-te é como olhar de frente
Os campos verdes da França
E perceber que o fim está sempre além da próxima colina.

Os teus lábios encostam-se
Agora ao meu peito.

O vento
Leva os nossos suspiros profundos
Até que se percam nas cores do pôr-do-sol.

As tuas mãos descem até à minha cintura,
E como num quadro de Dali
Entras por mim adentro.
Os nossos corpos fundem-se.

Não há grandes clarões sobre nós
(Que agora somos um só),
Mas a tua boca ainda sussurra as palavras certas,
Narcisos que acariciassem de súbito os meus ouvidos.

Amamo-nos
No mesmo ritmo que os arcos
Fazem vibrar os violinos
Nas orquestras de Bach.

À beira do lago,
Já coberto de folhas,
Nossos corpos caem, cansados e vivos do amor
Até que o Sol venha lembrar-nos
Do futuro dos próximos dias.

domingo, março 19, 2006

A Domani

Para a Tânia Caldeira Pereira Paes, erasmiana em Messina, na Sicília.

Agora que partiste, resta a sede do teu regresso.

Enquanto,
É como se as coisas estivessem prenhes de ti
E tocar os cantos da tua ausência é quase tão real
Como tocar-te.

Algumas palavras:
Canto, riso, manga, cheiro,
euforia, música.
A tua guitarra resta encostada à parede
À espera dos teus dedos;

Nós restamos
De braços abertos
À espera que voltes
Com a música dos pássaros de Junho.

quarta-feira, março 01, 2006

Mafalda Arnauth

Para a Raquel Eugénio, que partilha comigo este gosto por fadistices e que me falou de Mafalda Arnauth.

Preparo a casa e preparo-me a mim. O silêncio. Pelas janelas entra o sol e o já quase calor das três da tarde, ora mágica dos latinos em que se tecem os sonhos reais. A luz prende-se nas cortinas e eu deixo que durma.

Ligo a aparelhagem. Deixo que o som me inunde, deixo que se transforme em música dentro de mim. Mafalda Arnauth canta com alma ao som da guitarra portuguesa. É uma música muito antiga que os seus dedos desenham há coisa de uns anos. Mas é como se estivesse estado sempre lá. A música de Mafalda Arnauth não tem tempo- é de sempre, porque é uma música que conhece a essência do Fado, sofrido, cantado, rido, mas acima de tudo vivido. Os fados de Mafalda Arnauth oferecem acima de tudo uma vivência essencial do Fado.

E eu ouvia-a. E fui lusitano, caminhei sobre Lisboa, dei bom dia à varinas, escutei os pregões, roubaram-me os maridos, chorei muito. Estava lá tudo para que não faltasse nada. E no fim acredito como ela, "Bendito Fado, bendita gente!".

sábado, fevereiro 11, 2006

Quando os poemas vêm em dias nocturnos

Há dias em que escrever é uma dor muito grande. Esses dias, quando são dias, parecem noites. Nascem com hora marcada para acabar. Simplesmente anseio que essa hora chegue mais cedo. Nunca presto tanta atenção ao rodar dos relógios como nesses dias, porque cá dentro é sempre de noite até efectivamente ser dia outra vez. Também há poesia nesses dias nocturnos- é mais magoada. São dias para ler a dedicatória de um namorado no livro velho. São palavras delicadas, curtas como convém, numa tinta de azul claro. Já têm em si uma poesia seca. Se o dia vem delas ou as encontro por ser noite enquanto é dia, não sei. Mas roubam a pouca música das minhas palavras.

Eu gosto de escrever poemas magoados, mas só nestes dias- assim grito mais claro como desejo a manhã.

domingo, fevereiro 05, 2006

Amar-te

Amar-te não é fácil quando te carrego comigo
No cansaço das minhas tardes em longas viagens suburbanas

Quando as geografias das nossas cidades
Das nossas palavras
E dos nossos corpos
São ainda tão diferentes

É difícil amar-te nas manhãs de Sol
Dos Junhos veraneanos
Na profundidade da água
Na inteireza do Verde

Custa amar-te
Quando isso pede que me desligue de mim
Quando o corpo se impulsiona para uma oferta
Sem egoísmos
Quando corremos para a formação de um "nós"

Como é difícil dizer as palavras
Quando as horas nos perpertuam
Em conflitos
Que não nos trazem nada da música nem dos pássaros

Não é fácil amar-te além dos rios
Dos montes
Das passagens
Dos nossos dias
Dos caminhos luminosos
Das flores
Dos peixes

Não é fácil amar-te
Para lá dos sentidos
Dos pensamentos
Para sempre as palavras

Não é fácil

Mas vale a pena!

Onde encontrar a poesia

Uma das coisas que mais me ocupa a cabeça é precisamente onde se encontra a poesia- donde nascem os versos? Sophia de Mello Breyner falava de uma ligação íntima das coisas para a construção do seu habitat pessoal.

Assim, talvez a poesia se ache na construção de um pequeno vocabulário com conceitos bem próprios. Para Sophia falamos claramente do branco, da casa, do mar, do pátio e da Hélade. Eu prefiro outras coisas, buscar a poesia noutras palavras.

Hoje por exemplo encontrei-a num grande tacho com cogumelos frescos lá dentro. Para mim há poesia que chegue num tacho de cogumelos frescos e na sua cozinha.

Há também pequenos momentos poéticos nos nossos dias: quando uma luz desvulgariza a árvore que está sempre no nosso caminho, numa janela de Alfama, na maneira como o vento mexe nos casacos e nos cabelos. Há poesia nos cavalos e nos ramos dos chorões.

Tudo o que mexe ou que fazem mexer é poesia. Talvez eu procure os meus conceitos em pequenas coisas que por breves momentos se transformam dando-nos uma alegria diferente.

Talvez procure palavras como água, rio, árvores e sobretudo Verde- a minha poesia é decididamente Verde.

É em busca do Verde que vou agora- para mais palavras, para mais poesias.

sábado, janeiro 28, 2006

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz no autocarro

Num belo dia solarengo o Grande Júri e o Pequeno Ruiz decidiram dar um passeio de autocarro para ver as vistas. Entraram e sentaram-se lá atrás nos bancos de quatro. Iam os dois muito felizes e na paragem seguinte entra uma mãe com a sua filha de quinze anos e um pai com o seu bebé que não podia ter mais que dois. Sentaram-se todos nos bancos de quatro ao lado dos bancos do Grande Júri e do Pequeno Ruiz.

Para surpresa do Pequeno Ruiz a menina de quinze anos de imediato se mete com o bebé e começa a fazer um brrrr infinito com os lábios. quando a menina ia nuns surpreendentes dez minutos sem parar sequer para apanhar fôlego no seu brrrr contínuo o Pequeno Ruiz perguntou ao Grande Júri:
- Oh Grande Júri, ela é tonta?
- Não, respondeu o Grande Júri, o mais certo é ser uma estudiosa de pedagogia que está a ver a influência que a estupidez humana tem nos bebés.
- Ah, disse o Pequeno Ruiz, claro! Tens toda a razão. como tu és esperto Grande Júri.
Entretanto, os dois observavam atentamente. Quando ela consegue por o bebé num estado de histeria tal que ele já grita por todos os cantos da boca, e para espanto de todos, ela própria desata a urrar como se fosse uma macaca.
- Oh Grande Júri, estou a ficar com medo. E se daqui a nada ela se pendura nos varões do autocarro? disse o Pequeno Ruiz com uma certeza quase absoluta de que era isso que ela faria a seguir.
- Não tenhas medo, explicou o Grande Júri. Isto são técnicas muito evoluídas de investigação.

Quando a criança não tinha mais pulmões por onde gritar e a menina de quinze anos deu por finda a investigação o Pequeno Ruiz viu ser-lhe tirada uma dúvida que alimentava já há uns minutos- era verdade, ela efectivamente conseguia falar. Aliás, conseguia-o de tal forma que assim que terminou a investigação pôs-se logo a falar com a sua mãe e o pai do bebé.
- Na nossa família há muita boniteza, dizia ela. Eu sou fantástica e a minha mãe é maravilhosa.
A mãe comovida riu-se com o elogio.
- É verdade, prosseguiu ela. Se tivesses os dentes todos e um pentado fashion como o meu eras um espanto.
Aqui o Pequeno Ruiz não aguentou mais e teve que perguntar ao Grande Júri:
- Oh Grande Júri, mas a mãe é horrível (leia-se urrível)! Magra parece um esquifo, com a cara chupada, a pele envelhecida, um nariz que mete medo e uns óculos de fundo de garrafa. Além disso a miúda tem o cabelo liso e comprido, isso não tem nada de fashion.
- Oh meu pobre Pequeno Ruiz. Nada disso interessa. Isto é o verdadeiro amor filial.

Entretanto o Grande Júri e o Pequeno Ruiz saíram. Foram visitar a cidade grande e nelas viram coisas de espantar e de pasmar de que se falará neste espaço em hipóteses futuras.

Quando a noite já ia alta correram para apanhar o autocarro de volta. Duas paragens depois entram a mãe e a filha. Desta vez o Pequeno Ruiz, expedito, sacou de um bloco de notas que tinha comprado e disse:
- Desta feita não me escapa nada!
De um vasto rol de profundos ensinamentos que a menina deixou escapar pela boca nessa viagem o Pequeno Ruiz reteve sobretudo estes:
A menina fumava um maço de tabaco por dia, mas não era viciada e largava quando quisesse (o Pequeno Ruiz louvou-lhe a força); entre o tempo da mãe dela e o seu era tudo diferente- a mentalidade, tudo diferente (o Pequeno Ruiz só lamentou que a menina não tivesse dito o que, além da mentalidade, mais era diferente, pois ouvi-lo de tão sábia estudiosa seria uma preciosa ajuda).
Porém, o ensinamento mais precioso que tirou foi que a confiança leva um minuto a perder e toda uma vida a recuperar.
Aqui, e comovido até às lágrimas, o Pequeno Ruiz perguntou:
- Oh Grande Júri, mas isto não é uma frase estilo novelas da NBP, muito ao sabor "Morangos com Áçúcar"?
- Que grande estupidez disses tu Pequeno Ruiz. Isto é a sabedoria popular no seu mais alto expoente- na boca de uma menina de quinze anos que berra e urra para um bebé durante vinte minutos para, certamente, estudar a sua reacção.
- Oh Grande Júri, como és inteligente, quem me dera ser como tu.
- É por isso que eu sou o Grande júri e tu és o Pequeno Ruiz.
- Oh Grande Júri, se não fosses tu o que seria de mim?

domingo, janeiro 15, 2006

Choro de meus amigos perdidos

Choro meus amigos perdidos. Das lágrimas com que os choro eu me renasço.

O tempo passou a vida depressa enquanto eu, por um bocado, fechei os olhos. Muitas vezes o encarnado rodou a terra, tantas quantas o ocre mudou de cheiro. O grande pássaro umbi-umbi rumou para longe levando nas costas de suas asas a grande serpente da memória estendida. Ela, a serpente, devorou meus amigos perdidos enquanto os instantes me fabricavam sonhos bons de sonhar enquanto por instantes fechei os olhos. Ela, a serpente, precisa sempre de mais gente para botar seus ovos e continuar o ciclo da vida de seus olhos fundos. O nome de meus amigos perdidos foi parido nos cestos de adivinhação e sussurrado nas cabaças de todas as sanzalas. Por isso, ela, a serpente, os devorou.
Agora viro minhas costas ao norte porque o mar me chama para sul. Fugir com as aves. Ouço na sabedoria das letras escritas pelos mais-velhos o chamado do grande muatiânvua e corro a abraçar as Lundas para encher meu nariz de terra.

O muatiânvua pintará meu rosto de ocre e cerrará meu corpo de fogo. Fará meu gosto de sal e minha boca de trigo. Meus ouvidos serão de música para ouvir. Muatiânvua me forjará então de novo.

Dizem que ela, a serpente, não aguenta mais com o peso do seu fardo-memória. Cada ovo que ela bota e cada filho que de lá nasce carrega consigo um pouco dessa dor. Assim, é que na terra de quem tem boca se aprendeu a dizer saudade. Talvez meus amigos renasçam de seus ovos.

Enquanto,
Choro meus amigos perdidos. Das lágrimas com que os choro eu me renasço.

Aristocracia

(Luiz Capucho e Suely Mesquita)

Sua aristocracia vem de algum mistério
é sério
você é sério demais
pros seus poucos anos
um rapaz sem planos como você
devia estar
jogando bola
vendo televisão
indo ao cinema
pensando em dinheiro e sexo e só isso
nada de poemas
sobre os animais humanos
nada de filosofias
um rapaz sem planos
um brasileiro
um rapaz do interior
sua aristocracia deslocada
é uma delicadeza
da vida bruta
você é o olho do mundo
no seu lugar
só você vê daí
você pode contar
daí você pode contar

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Aurora ou Sonhos de uma infância mitológica

Quando nasceste para mim já eras velha. Embora eu não me lembre desse momento em que nasceste para mim tenho a certeza de que já eras velha e tenho a certeza de que o facto de não me lembrar quer dizer apenas que exististe desde que eu existo. Assim, será melhor dizer que desde que eu sou tu és velha.
Os teus olhos claros já eram baços por cansaço de ver, já eras alta e grandiosa como uma alemã e só o teu cabelo ainda não era, aliás como não é hoje, completamente branco- como se fosse um último sinal de resistência a uma velhice que mais tarde descobri te custava a suportar.
Mas enquanto fui menino nada disso interessava, porque tu eras a avó e isso era tudo o que bastava para te descrever, o que, de resto, para uma definição de criança é já bastante.
Não sei quando se estreitaram os laços entre nós, sei que demorou muito tempo e que o tempo é muito irregular quando se é criança. Não percebia quando discutias com o pai e depois choravas, nem gostava quando ralhavas comigo. No entanto, dessa infância muito antiga lembro-me de um palco grande e amplo, que era também a minha secretária, onde me vestias e lembro um saco muito grande feito de palha onde cabiam a tua cozinha e as tuas receitas, o ar frio de Novembro e a banca dos legumes, os teus dedos sábios tacteando com uma visão perfeita o que era melhor. Foram, sem eu saber os primeiros laços, os primeiros segredos só nossos que tinhas o cuidado de não encher com demasiadas palavras.
Então eu cresci: cresceram os braços, cresceram as pernas, as mãos e os pés. Cresci e de menino fiz-me rapaz. Chegou a escola. Com ela vieram tardes de televisão que sabiam a sandes de manteiga, queijo e marmelada e a cacau quente. Tardes que se repetiam sempre iguais sem que isso fosse um problema para nenhum dos dois. Eram os ritos, esses momentos tão importantes em que a vida se repete vezes e vezes sem conta, em que o mesmo gesto existe na continuidade de todas as horas. Mas ainda não tinham chegado os momentos mágicos.
Apareceram mais tarde, quando descobri o caminho do liceu e as alegrias da rua, nos dias em que ficava em casa, entre as duas e as quatro, à hora em que as horas morrem. E aí nasceram as histórias. Ouvi-as todas muitas vezes, porque só vale a pena ouvir histórias se as ouvirmos muitas vezes, porque não interessa só saber contar uma história- interessa conhecer-lhe a essência. Só se consegue chegar à essência duma história quando no-la contam muitas vezes, todas as versões, todas as palavras, toda a história.
Nas tuas histórias havia um grande planalto a que deste o nome de Huíla e havia sítios misteriosos com nomes de feitiçio- a Chibia, a serra da Leba… Havia reinos e palácios estranhos que chamavas de sanzalas e quimbos e reis de cara preta sem princesas que salvar. Havia gado e mulheres que esmagavam o milho no pilão, porque as tuas histórias são de um tempo em que a riqueza ainda vinha da terra. Falavas de povos estranhos e davas-lhes nomes fantásticos- cuonhamas, mucobais e quiocos- e envolvias tudo com palavras mágicas duma língua que mais tarde soube chamar-se Umbundo. Nas tuas histórias também havia um mundo muito novo à espera de ser moldado e homens ainda de barro cru e de capacete colonial que o amavam de mãos fechadas. Havia um pai herói que fazia bem de rei justo e que era amado por todos. E por fim uma menina chamada Aurora que soube amar tanto esse pai-herói-rei.
Foi então que eu descobri que antes de eu ser tu já eras há muitas eras e que nem sempre tinhas sido velha. Para grande surpresa de garoto que descobre a infância da avó tu também tinhas sido menina e tinhas sonhado sonhos cor da terra nessa África lá longe. Descobri assim a tua infância dentro desses contornos esbatidos que fazem da infância de quem é velho toda uma nova mitologia.
Agora vem avó, que é tempo de mais histórias, e juntos sonhemos novamente de mãos dadas teus sonhos africanos de menina.

Estórias do Grande Júri e do Pequeno Ruiz

ao Lusillo

As estórias destes dois amigos nasceram faz já algum tempo, se a memória não me falha, em terras francesas.

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz são dois amigos que gostam de andar por aí a passear. O primeiro é um grande C feito com a curva da mão esquerda e o segundo um pequeno e longo C feito com a curva da mão direita- a isto se resumem os nossos dois amigos.

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz gostam de olhar para as pessoas e para o mundo e trocar ideias sobre aquilo que vêem e vivem. É isso que aqui hão-de fazer- deixar as suas impressões.

Divirtam-se com as estórias dos dois!

Sic Incipitur

Este blog nasce de uma grande vontade de escrever que existe em mim desde quase sempre. Aparece com uma descoberta lenta e deliciosa, que saboreei com cuidado, do valor das palavras. Surge de brincadeiras com as palavras dentro de uma infinitude que lhes oferecemos.

Este blog aparece também impulsionado por uma grande amiga, que por estas bandas virtuais dá pelo nome de colher de chá (vejam http://asvedettestambemseabanam.blogspot.com e adorem), que me encorajou a fazê-lo. Alguém que eu adoro e admiro e com quem partilho e discuto este gosto estranho e por vezes frustrante de escrever.

Sic Incipitur, assim se começa, um projecto que em mim se ambiciona há muito tempo. Porque quem escreve, escreve sempre para ser lido. E como diz Novalis "Urge que o leitor seja o autor-aumentado".