Às velhas fidalgas da vila da Ponta-do-Sol por quem o tempo passou sem darem por isso, para que saibam que há ainda quem as recorde.
O braço estendido para abrir o portão. O pedaço de ferro enferrujado já se arrasta quase sozinho agora que lhe começam a faltar as forças para reproduzir um gesto maquinal de tempos já quase perdidos. Agora que Agosto está perto do fim a grande alameda que conduz à casa enche-se de uva americana. E os seus braços velhos e as suas pernas cansadas chegam apenas para colher o suficente que lhe mate a saudade de um tempo em que braços mais viris que os seus limpavam as videiras por esta altura. A grande casa, velha de trezentos anos, ergue-se imensa na beleza da sua simplicidade, uma grande porta, sete janelas com caixilhos magnânimos de pedra trabalhada. Tudo por aqui é velho como ela, de um tempo que o tempo já levou há muito tempo, de uma memória perdida na memória das coisas. Agora ela é velha, como os galhos das videiras, velha como as pedras do pateo, velha como o tempo é velho e por isso ainda mais velha, por ser tanta coisa velha ao mesmo tempo.
Lá dentro as três salas continuam numa escuridão a média-luz, sempi-eterna, como se uma morte anunciada lhes tivesse chegado e mesmo depois de morta ela continuasse ali só para garantir aquela casa. Os braços ainda abriam o portão, as pernas ainda subiam para apanhar as uvas, mas quando tinha Madalena realmente morrido era um mistério de que ela mesma não conhecia a resposta. Muitas vezes nas horas mortas, que agora eram tantas, jogava-se a advinhar esse momento em que a vida acabara, mas em que ela, por falta de qualquer acidente que lhe parasse o coração continuara a viver. Às vezes pensava que tinha sido no seu décimo quinto aniversário quando acordou com os berros da Luzia, uma das criadas, a dizer que a Sra D Teodora, a velha tia, tinha morrido. Essa tia Teodora que mais que tia tinha sido uma avó, por falta da verdadeira que morrera antes de Madalena ter três anos, essa tia que enfeitava as horas de sereias e fadas e sabia falar das plantas e das flores e das frutas e sabia de tudo e de nada. Mas Teodora morrera quando ela era ainda tão jovem e ninguém se morre de viver aos quinze anos. Não podia ter sido quando os pais morreram naquele horrível acidente, encosta abaixo, quando regressavam de umas férias na quinta do visconde de Bianchi. Nunca sofrera tanto, mas nunca sentira a família tão unida. Foi um tempo em que aprendeu o valor das serras da sua ilha e de que no último minuto a voz do sangue clama sempre mais alto. Podia ter sido quando percebeu que nunca iria amar e se resignou ao condão de ser a tia solteira de muitos sobrinhos; ou quando os manos abandonaram a vila para ir para o Funchal; ou quando o mundo mudou, as criadas fizeram as malas e levaram os homens da fazenda consigo. Capaz que tivesse sido nos primeiros anos da velhice, em que as sobrinhas Andrade e Mello tornaram cada vez mais espaçadas as suas visitas à quinta até que o grande relógio da sala deixasse de bater a hora das suas chegadas. Talvez a grande resposta fosse que Madalena tivesse morrido em cada um destes momentos e que uma partida do Senhor seu Deus que tanto amava lhe tivesse dado o golpe final sem lhe tirar a vida.
Havia uma coisa que Madalena sabia: nem ela nem aquela casa eram já deste tempo. Porque no tempo de Madalena a simples menção do nome dos Pina e Câmara era suficiente para tremer o mundo, para fazer mudar o curso das águas, sobretudo quando o pai cavalgava os seus cavalos, tão senhor da sua fúria, dando ordens a todos, viesse Rei ou Papa para detê-lo. Antes bastava estender a mão que viriam as criadas da casa, os pensamentos transportados telepaticamente numa sedução dos caprichos de quem nasceu para ser servida. O pai já não lia na lareira da saleta, o piano restava fechado sem mãos que o tocassem, os quartos jaziam vazios, camas de ferro velho sem roupa, porque agora não havia ninguém que nelas matasse o cansaço. O tempo passara e agora Madalena sabia que não dera por ele. Agora, enquanto restava na grande poltrona com o gato no colo só uma pergunta lhe vinha constantemente à cabeça :"Depois de nós, quem há-de vir para nos lembrar?"
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