quinta-feira, janeiro 12, 2006

Aurora ou Sonhos de uma infância mitológica

Quando nasceste para mim já eras velha. Embora eu não me lembre desse momento em que nasceste para mim tenho a certeza de que já eras velha e tenho a certeza de que o facto de não me lembrar quer dizer apenas que exististe desde que eu existo. Assim, será melhor dizer que desde que eu sou tu és velha.
Os teus olhos claros já eram baços por cansaço de ver, já eras alta e grandiosa como uma alemã e só o teu cabelo ainda não era, aliás como não é hoje, completamente branco- como se fosse um último sinal de resistência a uma velhice que mais tarde descobri te custava a suportar.
Mas enquanto fui menino nada disso interessava, porque tu eras a avó e isso era tudo o que bastava para te descrever, o que, de resto, para uma definição de criança é já bastante.
Não sei quando se estreitaram os laços entre nós, sei que demorou muito tempo e que o tempo é muito irregular quando se é criança. Não percebia quando discutias com o pai e depois choravas, nem gostava quando ralhavas comigo. No entanto, dessa infância muito antiga lembro-me de um palco grande e amplo, que era também a minha secretária, onde me vestias e lembro um saco muito grande feito de palha onde cabiam a tua cozinha e as tuas receitas, o ar frio de Novembro e a banca dos legumes, os teus dedos sábios tacteando com uma visão perfeita o que era melhor. Foram, sem eu saber os primeiros laços, os primeiros segredos só nossos que tinhas o cuidado de não encher com demasiadas palavras.
Então eu cresci: cresceram os braços, cresceram as pernas, as mãos e os pés. Cresci e de menino fiz-me rapaz. Chegou a escola. Com ela vieram tardes de televisão que sabiam a sandes de manteiga, queijo e marmelada e a cacau quente. Tardes que se repetiam sempre iguais sem que isso fosse um problema para nenhum dos dois. Eram os ritos, esses momentos tão importantes em que a vida se repete vezes e vezes sem conta, em que o mesmo gesto existe na continuidade de todas as horas. Mas ainda não tinham chegado os momentos mágicos.
Apareceram mais tarde, quando descobri o caminho do liceu e as alegrias da rua, nos dias em que ficava em casa, entre as duas e as quatro, à hora em que as horas morrem. E aí nasceram as histórias. Ouvi-as todas muitas vezes, porque só vale a pena ouvir histórias se as ouvirmos muitas vezes, porque não interessa só saber contar uma história- interessa conhecer-lhe a essência. Só se consegue chegar à essência duma história quando no-la contam muitas vezes, todas as versões, todas as palavras, toda a história.
Nas tuas histórias havia um grande planalto a que deste o nome de Huíla e havia sítios misteriosos com nomes de feitiçio- a Chibia, a serra da Leba… Havia reinos e palácios estranhos que chamavas de sanzalas e quimbos e reis de cara preta sem princesas que salvar. Havia gado e mulheres que esmagavam o milho no pilão, porque as tuas histórias são de um tempo em que a riqueza ainda vinha da terra. Falavas de povos estranhos e davas-lhes nomes fantásticos- cuonhamas, mucobais e quiocos- e envolvias tudo com palavras mágicas duma língua que mais tarde soube chamar-se Umbundo. Nas tuas histórias também havia um mundo muito novo à espera de ser moldado e homens ainda de barro cru e de capacete colonial que o amavam de mãos fechadas. Havia um pai herói que fazia bem de rei justo e que era amado por todos. E por fim uma menina chamada Aurora que soube amar tanto esse pai-herói-rei.
Foi então que eu descobri que antes de eu ser tu já eras há muitas eras e que nem sempre tinhas sido velha. Para grande surpresa de garoto que descobre a infância da avó tu também tinhas sido menina e tinhas sonhado sonhos cor da terra nessa África lá longe. Descobri assim a tua infância dentro desses contornos esbatidos que fazem da infância de quem é velho toda uma nova mitologia.
Agora vem avó, que é tempo de mais histórias, e juntos sonhemos novamente de mãos dadas teus sonhos africanos de menina.

3 comentários:

colher de chá disse...

A infãncia é sempre doce. Mesmo com as agruras da vida, as crianças têm qq coisa de magia que as faz virar o mundo do avesso e dar-lhe cheiro de algodão doce. E que bonito isso é. E que melhor ainda, quando das nossas lindas avós se trata.
Beijos à tua. Que agr vou telefonar à minha. :)
São um doce. A delícia das nossas tardes de meninos-adultos.

Anónimo disse...

apenas aqilo em q n pude deixar d pensar,1reflexo d mim mm:"exististes dd q eu existo"como td q antes d nós sermos já o era mas k n existia!tb a mnh vó o era(e k o seja por mt+tempo, e q o volte a ser),assim como a"nova mitologia"q talvez sp la teña estado ou q td a narrativa k apareceu"entre as duas e as quatro"q é ag uma satisfação surreal, possa antes ter sido uma resignação ao real."o tempo é mt irregular qd se é criança"pq qd somos crianças há ainda uma esperança, ainda q ténue d não nos perdermos nas convenções lineares, básicas e racionais dos adultos, como o tempo q acreditam existir chamando passado, presente e futuro,forjando um ciclo e entalando-o entre defenições palváveis.meu kerido archdduke, guarde sp no coração tds os "reinos e palácios estraños",os"sítios misteriosos"e os"nomes fantásticos" e q as estórias d criança alumiêm nao o q existe mas o q é!!um beijo mt gd da sua amiga

Filipe Gouveia de Freitas disse...

Minhas queridas, é com felicidade que vejo que o que escrevo cumpre a sua missão: duas visões tão diferentes (serão assim tão diferentes?) das mesmas palavras. Ishtar, ainda o tempo nos dará muito tempo para falarmos do Tempo. Beijo grande para as duas.