Querida Prima,
Escrevo-lhe porque ao fim destes anos veio-me hoje uma visão que me fez pensar em si: um piano! É bem verdade, um piano. Esse piano que me trouxe logo a sua imagem e a sua lembrança à minha está em casa de tal menina que com seus olhos prendeu os meus. Mas oiça-me minha adorada prima, se o verde dos olhos de tal menina cortejada superam o castanho dos seus olhos, as mãos pobres e gordas desta não têm a elegância que nas suas vive.
Porque esta menina, querida prima, apesar de ter uns olhos de um verde tão profundo como o seu dote, toca numa sala onde o excesso em tudo toca e onde a toda a hora o chapéu de um senhor está sujeito a roçar-se nas cortinas que descem por todo o lado. Não toca ela nessa sala onde toca a prima que guarda na tinta rosa das suas paredes o segredo dos primeiros olhares trocados, a prima tão moça e eu já homem feito, a prima com tanto para aprender e eu julgando que já tanto sabia. Essa sala onde roubávamos horas à costura da Titá para trocar sobre a forma desses livros encadernados do escritório do pai confidências tão íntimas como o são elogiar as suas mãos. E depois a prima enchia as horas que sobravam de música, porque a música vive bem dentro das suas mãos, diria dentro de si, agitando-se continuamente e enfeitiçando as horas. Como as donzelas coquettes enchem com flores os seus cestos, a prima enche o ar de música na leveza do ron-ron dos seus vestidos que descançam sobre o banco desse bem-dito piano.
Estivesse eu aí e não ouvesse mar entre nós, uma vez mais a roubaria e sobre a vista do balcão lhe diria, querida prima, que não há vista que supere a sua vista e que o odor estontiante de tudo o que é natural e bom e que nos rodeia é mil vezes inferior ao simples perfume que de manhã deixa cair atrás das orelhas num gesto de suprema elegância, pois em si tudo é elegante, as mãos, as luvas, o cabelo, pois nasceu com a certeza de que o mundo é seu, e é de facto, só pelo simples facto de ter nascido com as mãos que mais delicadamente alguma vez poisaram sobre um piano!
Amo-a, mas agora não há tempo para o amor, pois na sala ao lado deste gabinete umas mãos pobres e gordas esperam por mim agora que cometi o erro de lhe dar a ela, e não a si adorada prima, as minhas palavras que, como bem sabe, prendem mais que tudo o resto.
Seu primo,
Theodoro de Freittas
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