sábado, dezembro 02, 2006

Lá onde passa o rio da minha aldeia

O rio da minha aldeia quase não existe no Verão, mas no Inverno as chuvas enchem-no e ele corre entre as pedras até ir desaguar noutro rio que eu não sei.

Às vezes gosto de olhar o rio da minha terra, no enclave em que nos abandona. E então deito-me a pensar em memórias de infância que vou fabricando enquanto a tarde me deixa.

O rio da minha aldeia faz-me lembrar o cheiro da compota e as horas de espera para que a compota fique pronta e as estórias que uma avó me contaria numa cozinha velha até as horas acabarem. Faz-me pensar em brincar no coreto com os outros meninos e jogar ao pião e ao arco e a coisas antigas de que os rios estão entranhados por força da sua longa vida.

O rio da minha aldeia vai furioso no Inverno, mas só me lembra coisas calmas como dias de escola com a chuva a bater nas janelas e as horas a morrerem no grande relógio ou em noites frias de nevoeiro com o corpo esticado à lareira.

O rio da minha aldeia nada sabe do que está para além do rio onde desagua e que eu não sei. Não sabe de Lisboa, nem das suas cores nem das coisas que eu gosto e que quero para mim, por isso eu não quero o rio da minha aldeia nem ele me quer, porque não tem nada para me dar. Mas há tardes em que olho o rio da minha aldeia e imagino...

4 comentários:

RIC disse...

Uma bela variação de «Os sinos da minha aldeia»... Sem forçosamente o ser.

Anónimo disse...

Caro amigo
isto da blogosfera é como as cerejas...
Foi por "indicação" de um pessoa que ambos admiramos, o Ric, que descobri este teu blog. Já o vi todo e estou muito agradado com o que li.
É apaixonante a forma como falas de Lisboa, e como falas de ti e dos outros, que afinal fazem parte de ti.
Gostei muito de vários posts, lá para trás, que não comento apenas por serem já antigos.
Escolhi este para me apresentar, pois é sobre as tuas raízes, tão diferentes da tua cidade, mas que são tuas e que por vezes te fazem sonhar. É bonito.
Vou estar atento e vais "ter-me" à perna, no futuro.
Eu sou um blogger recente, muito autodidacta nestas coisas, mas cá me vou arranjando e, como tu, gosto acima de tudo de partilhar gostos, sentimentos, emoções.
Um abraço.

Filipe Gouveia de Freitas disse...

Caro pinguim, não costumo comentar os meus post's, mas tinha que lhe dar as boas vindas. Muito obrigado pelo seu tão agradável comentário. No entanto, o seu comentário leva-me a fazer aquilo que me parece ser ao mesmo tempo o maior desejo e o maior erro de quem escreve: falar do que escreveu! Assim, vou procurar não errar muito.

Eu nasci no Funchal, onde volto nas férias, e fui criado num dos muitos subúrbios de Lisboa. Desde os 15 anos, agora tenho 22, que estudo na capital. Logo, a minha vivência é completamente (sub)urbana e não rural. Escrevi este texto porque há cerca de quatro anos que me mudei para uma aldeia na zona saloia a 16km de Lisboa. O pequeno rio que corre à entrada dessa mesma aldeia, que de todo em todo considero minha, é que me fez escrever isto. Apenas o rio, e não quaisquer raízes de cariz rural que não possuo.

Mais uma vez obrigado, outro abraço!

Anónimo disse...

Estou farto de comer peixe. Trutas...
À mais de oito dias que a nossa dieta alimentar se resume às primas do salmão. Cozidas, grelhadas, fritas, enfim...trutas.
E a culpa é toda da mãe, não da minha, da nossa.
De seis em seis anos, Sereno, o rio que rasga todo o concelho de Afazeres, vai de férias. Sem mais, de férias. Deixando para trás centenas e centenas de trutas em pânico com as guelras a barbatanear.
De seis em seis Verões o metro e vinte de água que faz as delícias de novos e velhos, enamorados ou irremediavelmente solitários, passa a um centímetro e vinte de infinita tristeza e as consequências são como facilmente se entende, por demais trágicas.
A coisa não correria tão mal se o Sereno preferisse a neve à praia. Bem vistas as coisas, um rio pouca falta faz no Inverno, mas em pelo Agosto, no mais recôndito interior, todas as gotas de água são preciosas.
Chateia-me o calor, chateia-me a falta de banhos, chateia-me não poder ver Carolina em biquíni, com a sua pele branca insultada por ondulantes cabelos negros, nos meus sonhos suspensos sobre um arco margaridas. Mas neste momento, sentado à mesa, o que realmente me chateia é esta estúpida truta acastanhada, submersa em arroz de tomate e a visão de todas as suas irmãs, irmãos, primos, tios e afins que ainda se espreguiçam no congelador, depois de terem sido apanhados à pazada, no lunar leito do Sereno.