O teu corpo deita-se todas as noites ao meu lado depois de ter estado dentro de mim. Mas só o teu corpo.
Eu deito-me ao lado do teu corpo todas as noites depois de o ter tido dentro de mim. Agora eu queria falar-te de coisas tristes, como dormir ao lado dum corpo, e dizer-te que nestas noites a noite prolonga-se por mim adentro, sem luz, sem estrelas, só o espaço vazio que é a verdadeira essência da noite juntamente com o silêncio. Mas não é possível falar ao teu corpo da noite quando a única maneira que ele tem de a sentir é dormindo.
De manhã, muito antes de eu acordar e ter palavras, o teu corpo vai erguer-se, perdido numa esquina da Estrela, e eu vou perder mais uma vez esse instante em que quase te tive, ficando apenas com o teu corpo.
Nós, eu e o teu corpo, vivemos uma relação viciada de gestos automáticos e rotinas enfadonhas já há tanto tempo entranhadas em nós que me torno incapaz de te dizer como odeio que me esperes todos os dias na paragem. Não pela vulgaridade do que significa ter-te à minha espera numa paragem de autocarro, ou pelo que isso denuncia da preciosa estabilidade das nossas vidas que tu nunca desejas quebrar, mas porque todos os dias eu sei que perdi mais um encontro contigo para ficar só com o teu corpo. Porque o instante em que abro a porta do carro é o instante em que tu acabas, em que acaba o teu dia e tu, depois de horas de trabalho, és incapaz de seres algo além do teu corpo. E não é que me importe de ter os teus braços tão fortes nos meus ombros ou de maquinalmente beijar-te, é apenas essa tua incapacidade de seres homem e me amares como homem, essa incapacidade que me deixa sempre a sós com o teu corpo.
É por isso que não te falo da noite e não te digo que do Restô se vê toda a Lisboa pombalina que tanto amamos, que às conversas sobre dramática da escrita se servem cogumelos e ao ênfase que se dá quando te leio Herberto Hélder servem-se salmão e caviar. Porque o que sabe o teu corpo do gosto do caviar, da poesia de Herberto Hélder ou da cabeça do empregado espetada viva no Terreiro do Paço? Que sensibilidade tem o teu corpo além desse quasemomento em que tu estás dentro de mim e eu sou um só- com o teu corpo.
Resta-nos agora a cidade, a mim, a ti e ao teu corpo, os dias calmos de Abril e a pressa eufórica das primeiras tardes de chuva em Setembro. Restam-nos os cafés da Baixa e os restos da vida elegante de por quem lá passa e resta a vontade de que um dia me convides para ir beber chá ao Rato.
Acima de tudo, resta esse momento em que eu, de joelhos, te tenho na boca e em que o teu corpo, segurando os meus cabelos, diz de mansinho: Amo-te. Agora voltas a ser tu, instantes breves, talvez um dia fiques mais tempo além da altura em que escorres e te esvais por mim adentro.
2 comentários:
e ainda me dizes que não sabes o que escrever... Está lindo.
que bonito e triste! real e amargo. ainda bem q encontrei este teu espaço ;)
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