segunda-feira, maio 23, 2011

Fragmentum Gustaui

Aquela cadeira tinha sido restaurada pela tia Bé. Era uma cadeira velha e de vime onde Gustavo gostava de sentar-se quando, era ainda miúdo, passava tardes no terraço da casa das Azinhagas do Mar a ver as ondas lamberem a encosta. Na altura da mudança do Artur a tia Bé tinha-a restaurado e oferecido ao casal. Gustavo soubera logo que ia ficar na marquise de ferro azul. Era uma pequena marquise de muitos vidros pequenos e quadrados e de ferro forjado azul que ligava por fora o escritório e a sala. Era ali, que nos crepúsculos já quentes de Maio Gustavo se sentava a ler. Tinha sempre ânsias de coisas bucólicas, como as saudades de um campo onde nunca tivesse tido uma infância. Como se o pateo ajardinado em baixo o fizesse pensar em montanhas e cozinhas impregnadas do cheiro axaropado das compotas em líquido ainda quente. Isto dava-lhe paz e deixava-o calmo. Pousava na mesa ao lado uma grande caneca com uma infusão de menta e hortelã. Esperava que arrefecesse e depois tragava em grandes goles até ao fundo. Lia à espera do efeito que chegava sempre: uma camada gentil e ligeira de suor refrescava todo o corpo. Depois, gostava ainda de abrir a palma da mão e espalmá-la contra as paredes curtas e férreas da marquise- o ferro eternamente frio em todos os seus cinco dedos. Eram tardes sem Lisboa e sem pessoas como se o mundo acontecesse num dos seus livros bucólicos de belas capas velhas de alfarrabista.

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