sexta-feira, outubro 24, 2008

Passeio do pequeno conde ou Viagem em redor de outros

Esta gente aqui sentada é sempre algo estranha. O mundo passa veloz lá fora, tão mais veloz quanto tudo anda mais rápido. E passam as luzes e vagueamos no escuro a 200km/h até que se ouve uma claro som, quase sempre sobreposto aos outros, que anuncia: "próxima paragem...".

Esta gente aqui sentada não tem pressa, mesmo quando tem. Há quem bata um pé nervoso e vá dando estalidos com a língua. Outros bufam constantemente. Alguém há-de ter a culpa por chegarem atrasados onde hão-de chegar. Alguém que não eles. Todos nós os outros. Mas o tempo não passa, só o nervosismo deles aumenta. O comboio continua estagnado enquanto viaja à velocidade da escuridão.

O pequeno conde senta-se alheado e distante numa cadeira a um canto. Um homem, à sua frente, tira da mala uma sanduíche. Trinca-a em grandes nacos que mastiga com vontade. Ver alguém abrir uma mala é sempre uma surpresa, uma interrogação e um verdadeiro acto de coscuvilhice, porque é simplesmente impossível resistir à curiosidade. É assim como um Kinder Surpresa, três desejos num só, mas numa versão adulta, melhorada e que não faz mal aos dentes embora não comporte tanto leite para beneficiar os ossos. É como dizia, resistir a olhar é quase impossível. E o momento melhor é aquele antes, em que estabelecemos um jogo de adivinhas connsoco mesmos. O que será? Ah, uma sanduíche, nota com ar aborrecido. O pequeno conde ouve muitas vezes a voz da mãe na cabeça. Que não se deve olhar, nem espreitar, nem coscuvilhar. Mas a mãe não anda por aqui todos os dias e sabe pouco desta tentação.

Mas há mais pessoas neste micro-universo que se reorganiza a cada nova paragem. São mulheres de encantos fanados e roupas justas. São crianças aspersoras que balançam o guarda-chuva molhado dum lado para o outro. São pais que berram e pais que se deixam estar enquanto a filha mama furiosamente a ponta do casaco. São novos executivos que berram muito alto ao telémovel. "Sim, estou no metro. Não, não, claro que posso falar! Diga, diga..." e aumentam a frequência em decibéis impossíveis para se fazerem ouvir. São jovens suburbanos que chegam do colégio e entrando no Rato só querem ouvir a senhora do anúncio anunciar que a próxima paragem é Odivelas.

Onde quer que pare a vida desta gente, ou Olaias ou Areeiro, ela passa e pára no Metro. E há quem não perceba e quem não pense nisso. Até o pequeno conde lhe dedica pouco tempo. Mas há perguntas que ficam. Quantas vezes ao longo da vida teremos visto a mesma pessoa no comboio sem nos darmos conta?

E há vezes, embora houvesse mais antigamente, em que o Metro pára no túnel escuro. É como se a escuridão forçada acordasse as gentes. De súbito, e por não mais tempo que isso, todos sabem do momento comum que vivem e do micro-kosmos onde se encontram. Agora há amigos dum minuto a quem dizer "E eu que estava cheia de pressa!", ou "Isto é sempre o mesmo!". Até o pequeno conde, entusiasmado, se vira para a senhora velha e gorda ao seu lado e diz "Que aborrecido, não é? Isto do Metro parar...". E a senhora torce o nariz, mas consciente de que não terá mais amigos senão o pequeno conde durante o tempo de paragem do Metro, ri, concorda acenando com a cabeça e continua a conversa.

E o metro voltou a andar. A seguir é a vez do pequeno conde sair. Não olha para trás, mal se despediu da senhora velha e gorda, não voltará a pensar nela. O pequeno conde poucas vezes voltará a pensar em todas estas coisas no correr deste e doutros dias. Mas é certo que a vida do pequeno conde há-de voltar a passar pelo metro e lá passando há-de parar nesse tempo infinito entre uma estação e outra em que se formam micro-kosmos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma das coisas às quais me vai custar voltar.
Por aqui é só bicicletas e frio nas orelhas.

*
s. (em Gent)