quarta-feira, agosto 08, 2007

Conto de Servília (1ª parte)- Corpus et Verbum

O conto de Servília baseia-se na minha leitura de As memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar. Não tem assim nada de original na sua essência. Contudo, também não foi minha intenção plagiar a autora. O que aqui se apresenta é o resultado do acto fenomenológico da escrita.

Maruliano meu avô acreditava nos astros. Gastou os últimos dias de uma vida calma perdido no seu observatório achando pela primeira vez para si astros que outros haviam encontrado. Foi nesses anos de criança e com Maruliano que me apercebi da importância de descobrirmos em nós mesmos aquilo que já outros descobriram. Só aí é que as coisas passam a ser verdadeiramente nossas. Foi debaixo da sua capa que encontrei o mundo que ficava do outro lado do portão da nossa villa. O mercado era o centro buliçoso da cidade e como todos os lugares de negócio era interdito às mulheres. Só àquelas que não podiam traçar os seus antepassados até épocas longínquas é que se permitia perderem os dias atrás de uma banca qualquer. Mais tarde apercebi-me da diferença entre quem compra e quem vende: o vendedor pode até exercer uma certa pressão sobre o comprador, mas quem vende precisa desesperadamente mais de quem compra do que o contrário. Esta verdade revelou-se-me ao longo dos anos nas caras dos muitos mercadores que encontrei pelos mercados onde estive.

Não sei se alguma vez acreditei nos astros. De resto, isso foi de pouca importância no correr da minha vida. Era mulher demais para me dedicar à astronomia, era patrícia demais para me perder na astrologia. Encontrei-me em outros campos. O meu corpo foi o primeiro e o mais importante. Nunca fui capaz de amá-lo porque nunca fui capaz de entender essa filosofia que encontra no corpo um ser ao mesmo tempo estranho e íntimo, companheiro de jornada, exterior a nós mesmos. Só os homens podem amar os seus corpos porque só eles podem procurar a sua ascese. As mulheres não têm tempo para isso. A sua sobrevivência insiste num jogo diário que decide quem ganha e quem perde, quem continua e quem cessa de existir. Ao meu corpo domei-o sempre sob jugo forte.

Adriano, meu primo, amou os corpos nessa profundidade filosófica. Encontrei sempre beleza nas suas palavras, mas já não fui capaz de a reconhecer nos corpos que teimava em divinizar. Adriano, meu imperador, gabou-se de ter melhorado a vida das mulheres. Nunca lhe censurei esta vã-glória. Era a sua condição natural de homem e não algo que ele pudesse contornar que o impedia de ver o breve alcance das suas leis. Também não tentei explicar-lho nas muitas cartas que trocámos. Não é para o mundo dos homens perceber o mundo das mulheres. Os homens andam por estradas longas e abertas, as estradas com que construíram o mundo. As mulheres movem-se por becos tortuosos, quase sempre sem saída. Tão tortuosos que atrevo-me a dizer que é mais difícil morrer velha e patrícia em Roma que velho e imperador. O casamento e a minha partida para o Lácio trouxeram-me a certeza de que não há lugar para as mulheres no mundo que é Roma. Mesmo as grandes patrícias devem nascer sob a sombra paterna, viver sob a sombra matrimonial e morrer sob a sombra dos filhos. A glória que foi reservada a algumas não foi senão o resto da glória dos homens a quem se ligaram e que tantas vezes ajudaram a construir.

Foi esta certeza da minha dificuldade de mulher que me fez olhar para o meu corpo. Tirei dele tudo o que ele me pôde dar. Tive a sorte, mais que a inteligência, de ter tido olhos sempre tão claros como os espelhos que me reflectiam e vontade de me ver neles. Soube pesar o tempo em medidas tão exactas que pude usar o meu corpo consoante cada época que a vida me trouxe. Na minha juventude levei-o em jogos perigosos de sedução em que se promete nada, perde-se muito e compromete-se tudo. Mas soube orientá-lo bem nos sentidos que me interessavam e não houve homem, enquanto a minha pele foi fresca, que me tenha resistido. Cedi poucas vezes às tentações do corpo. Talvez tenha sido o bocado de estoicismo que me sobrou da minha educação: não aceitei nenhum senhor, nem mesmo esse. Lamento-me, no entanto, dessas fraquezas que me seriam breves de esquecer não fosse a imensa vergonha que me trazem. Essas são as cicatrizes do meu corpo.

Hoje tenho a certeza, que também já esboçava na altura, de que o meu corpo foi o meu melhor aliado político nas poucas ambições que tive com o meu marido. Achei sempre extraordinário que duas criaturas que nutriam uma profunda indiferença uma pela outra se entendessem tão bem na política. Talvez porque ele tivesse a masculinidade necessária e eu o conhecimento induzido dum mundo tão parecido com o das mulheres. Não acho que seja por acaso que a palavra política é feminina. Tivémos os dois uma ambição medida e sem grandezas e sobretudo uma consciência clara da nossa posição enquanto primos do imperador. De quase nada valia em Roma o nosso parentesco com Adriano a não ser para nos granjear inimigos que quase nunca conhecemos em aberto, mas contra os quais tivemos que lutar até ao fim da vida. De resto, em Roma nunca conheci diferença entre ter-se a cabeça a prémio ou ostentar-se o título imperial.
Talvez esta fosse uma razão secreta para Adriano ter estado tão pouco tempo em Roma, perdido nos seus ímpetos criadores. Ou talvez porque foi o primeiro homem a aperceber-se que Roma era já todo o mundo aonde chegavam as estradas e o latim e não mais essa capital, em tanto já decadente, que agonizava longe dos seus adorados Júlios e Antónios, esses patrícios que traçavam as suas ascendências além da realeza até aos casamentos celestes. Não havia lugar na Urbe para os imperadores nascidos de homens. Esses tinham o seu lugar nas estradas que saem das sete colinas a construir o mundo novo. Adriano soube-o melhor que outros.

Os meus receios políticos ligaram-me desde o início a Plotina, a imperatriz de Trajano, e a quem Adriano me recomendara. Quando a conheci Plotina vivia já nessa casa pequena onde morreu à margem da cidade e à margem da vida. Trajava nos seus véus de luto a única soberba que lhe conheci: a de ser uma matrona romana dos tempos da Respublica. A sua vida marginal não fez dela na sua viuvez, no entanto, uma mulher desatenta do mundo. O espaço da sua casa tinha o tamanho dos seus aposentos no palácio imperial. Confessou-me mais tarde que isto não se devia ao acaso e menos ainda à humildade: este era o espaço preciso em que se habituara a governar. Com Plotina entrei realmente no mundo das mulheres. No mundo das mulheres encontrei os limites do meu corpo e aprendi com dura facilidade que o que nos ganha o mundo dos homens perde-nos quando o mundo passa a ser no feminino. O nosso não é um mundo de corpos, mas da palavra. O mundo das mulheres é o mundo da palavra. O dos homens o mundo das palavras. Os homens, que são senhores do tempo, podem perder-se na busca ascética que cada palavra encerra num significado único que a singulariza e a torna ao mesmo tempo distante e próxima das outras palavras igualmente únicas. Para nós, que vivemos de bocados de tempo, cada palavra encerra o significado do universo. É preciso ter a atenção das mãos que vagueiam pelo tear na escuta das palavras das mulheres. As suas palavras são um código antigo de múltiplos significados em poucos significantes. O instante da palavra mal entendida pode deitar a perder o mundo de uma mulher.

2 comentários:

Arquitetura da Ausência disse...

sou brasileiro, professor de literatura e pretenso escritor...seus textos encantaram-me... és chagado pelo dom da escrita e do sutil escrutínio das coisas ao redor... meus parabéns e meus pêsames... um grande abraço transcontinental...
p.s.: caso interesse conhecer o que tento compor, vá lá:
www.esbocoseestilhacos.blogspot.com

Arquitetura da Ausência disse...
Este comentário foi removido pelo autor.