sábado, janeiro 28, 2006

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz no autocarro

Num belo dia solarengo o Grande Júri e o Pequeno Ruiz decidiram dar um passeio de autocarro para ver as vistas. Entraram e sentaram-se lá atrás nos bancos de quatro. Iam os dois muito felizes e na paragem seguinte entra uma mãe com a sua filha de quinze anos e um pai com o seu bebé que não podia ter mais que dois. Sentaram-se todos nos bancos de quatro ao lado dos bancos do Grande Júri e do Pequeno Ruiz.

Para surpresa do Pequeno Ruiz a menina de quinze anos de imediato se mete com o bebé e começa a fazer um brrrr infinito com os lábios. quando a menina ia nuns surpreendentes dez minutos sem parar sequer para apanhar fôlego no seu brrrr contínuo o Pequeno Ruiz perguntou ao Grande Júri:
- Oh Grande Júri, ela é tonta?
- Não, respondeu o Grande Júri, o mais certo é ser uma estudiosa de pedagogia que está a ver a influência que a estupidez humana tem nos bebés.
- Ah, disse o Pequeno Ruiz, claro! Tens toda a razão. como tu és esperto Grande Júri.
Entretanto, os dois observavam atentamente. Quando ela consegue por o bebé num estado de histeria tal que ele já grita por todos os cantos da boca, e para espanto de todos, ela própria desata a urrar como se fosse uma macaca.
- Oh Grande Júri, estou a ficar com medo. E se daqui a nada ela se pendura nos varões do autocarro? disse o Pequeno Ruiz com uma certeza quase absoluta de que era isso que ela faria a seguir.
- Não tenhas medo, explicou o Grande Júri. Isto são técnicas muito evoluídas de investigação.

Quando a criança não tinha mais pulmões por onde gritar e a menina de quinze anos deu por finda a investigação o Pequeno Ruiz viu ser-lhe tirada uma dúvida que alimentava já há uns minutos- era verdade, ela efectivamente conseguia falar. Aliás, conseguia-o de tal forma que assim que terminou a investigação pôs-se logo a falar com a sua mãe e o pai do bebé.
- Na nossa família há muita boniteza, dizia ela. Eu sou fantástica e a minha mãe é maravilhosa.
A mãe comovida riu-se com o elogio.
- É verdade, prosseguiu ela. Se tivesses os dentes todos e um pentado fashion como o meu eras um espanto.
Aqui o Pequeno Ruiz não aguentou mais e teve que perguntar ao Grande Júri:
- Oh Grande Júri, mas a mãe é horrível (leia-se urrível)! Magra parece um esquifo, com a cara chupada, a pele envelhecida, um nariz que mete medo e uns óculos de fundo de garrafa. Além disso a miúda tem o cabelo liso e comprido, isso não tem nada de fashion.
- Oh meu pobre Pequeno Ruiz. Nada disso interessa. Isto é o verdadeiro amor filial.

Entretanto o Grande Júri e o Pequeno Ruiz saíram. Foram visitar a cidade grande e nelas viram coisas de espantar e de pasmar de que se falará neste espaço em hipóteses futuras.

Quando a noite já ia alta correram para apanhar o autocarro de volta. Duas paragens depois entram a mãe e a filha. Desta vez o Pequeno Ruiz, expedito, sacou de um bloco de notas que tinha comprado e disse:
- Desta feita não me escapa nada!
De um vasto rol de profundos ensinamentos que a menina deixou escapar pela boca nessa viagem o Pequeno Ruiz reteve sobretudo estes:
A menina fumava um maço de tabaco por dia, mas não era viciada e largava quando quisesse (o Pequeno Ruiz louvou-lhe a força); entre o tempo da mãe dela e o seu era tudo diferente- a mentalidade, tudo diferente (o Pequeno Ruiz só lamentou que a menina não tivesse dito o que, além da mentalidade, mais era diferente, pois ouvi-lo de tão sábia estudiosa seria uma preciosa ajuda).
Porém, o ensinamento mais precioso que tirou foi que a confiança leva um minuto a perder e toda uma vida a recuperar.
Aqui, e comovido até às lágrimas, o Pequeno Ruiz perguntou:
- Oh Grande Júri, mas isto não é uma frase estilo novelas da NBP, muito ao sabor "Morangos com Áçúcar"?
- Que grande estupidez disses tu Pequeno Ruiz. Isto é a sabedoria popular no seu mais alto expoente- na boca de uma menina de quinze anos que berra e urra para um bebé durante vinte minutos para, certamente, estudar a sua reacção.
- Oh Grande Júri, como és inteligente, quem me dera ser como tu.
- É por isso que eu sou o Grande júri e tu és o Pequeno Ruiz.
- Oh Grande Júri, se não fosses tu o que seria de mim?

domingo, janeiro 15, 2006

Choro de meus amigos perdidos

Choro meus amigos perdidos. Das lágrimas com que os choro eu me renasço.

O tempo passou a vida depressa enquanto eu, por um bocado, fechei os olhos. Muitas vezes o encarnado rodou a terra, tantas quantas o ocre mudou de cheiro. O grande pássaro umbi-umbi rumou para longe levando nas costas de suas asas a grande serpente da memória estendida. Ela, a serpente, devorou meus amigos perdidos enquanto os instantes me fabricavam sonhos bons de sonhar enquanto por instantes fechei os olhos. Ela, a serpente, precisa sempre de mais gente para botar seus ovos e continuar o ciclo da vida de seus olhos fundos. O nome de meus amigos perdidos foi parido nos cestos de adivinhação e sussurrado nas cabaças de todas as sanzalas. Por isso, ela, a serpente, os devorou.
Agora viro minhas costas ao norte porque o mar me chama para sul. Fugir com as aves. Ouço na sabedoria das letras escritas pelos mais-velhos o chamado do grande muatiânvua e corro a abraçar as Lundas para encher meu nariz de terra.

O muatiânvua pintará meu rosto de ocre e cerrará meu corpo de fogo. Fará meu gosto de sal e minha boca de trigo. Meus ouvidos serão de música para ouvir. Muatiânvua me forjará então de novo.

Dizem que ela, a serpente, não aguenta mais com o peso do seu fardo-memória. Cada ovo que ela bota e cada filho que de lá nasce carrega consigo um pouco dessa dor. Assim, é que na terra de quem tem boca se aprendeu a dizer saudade. Talvez meus amigos renasçam de seus ovos.

Enquanto,
Choro meus amigos perdidos. Das lágrimas com que os choro eu me renasço.

Aristocracia

(Luiz Capucho e Suely Mesquita)

Sua aristocracia vem de algum mistério
é sério
você é sério demais
pros seus poucos anos
um rapaz sem planos como você
devia estar
jogando bola
vendo televisão
indo ao cinema
pensando em dinheiro e sexo e só isso
nada de poemas
sobre os animais humanos
nada de filosofias
um rapaz sem planos
um brasileiro
um rapaz do interior
sua aristocracia deslocada
é uma delicadeza
da vida bruta
você é o olho do mundo
no seu lugar
só você vê daí
você pode contar
daí você pode contar

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Aurora ou Sonhos de uma infância mitológica

Quando nasceste para mim já eras velha. Embora eu não me lembre desse momento em que nasceste para mim tenho a certeza de que já eras velha e tenho a certeza de que o facto de não me lembrar quer dizer apenas que exististe desde que eu existo. Assim, será melhor dizer que desde que eu sou tu és velha.
Os teus olhos claros já eram baços por cansaço de ver, já eras alta e grandiosa como uma alemã e só o teu cabelo ainda não era, aliás como não é hoje, completamente branco- como se fosse um último sinal de resistência a uma velhice que mais tarde descobri te custava a suportar.
Mas enquanto fui menino nada disso interessava, porque tu eras a avó e isso era tudo o que bastava para te descrever, o que, de resto, para uma definição de criança é já bastante.
Não sei quando se estreitaram os laços entre nós, sei que demorou muito tempo e que o tempo é muito irregular quando se é criança. Não percebia quando discutias com o pai e depois choravas, nem gostava quando ralhavas comigo. No entanto, dessa infância muito antiga lembro-me de um palco grande e amplo, que era também a minha secretária, onde me vestias e lembro um saco muito grande feito de palha onde cabiam a tua cozinha e as tuas receitas, o ar frio de Novembro e a banca dos legumes, os teus dedos sábios tacteando com uma visão perfeita o que era melhor. Foram, sem eu saber os primeiros laços, os primeiros segredos só nossos que tinhas o cuidado de não encher com demasiadas palavras.
Então eu cresci: cresceram os braços, cresceram as pernas, as mãos e os pés. Cresci e de menino fiz-me rapaz. Chegou a escola. Com ela vieram tardes de televisão que sabiam a sandes de manteiga, queijo e marmelada e a cacau quente. Tardes que se repetiam sempre iguais sem que isso fosse um problema para nenhum dos dois. Eram os ritos, esses momentos tão importantes em que a vida se repete vezes e vezes sem conta, em que o mesmo gesto existe na continuidade de todas as horas. Mas ainda não tinham chegado os momentos mágicos.
Apareceram mais tarde, quando descobri o caminho do liceu e as alegrias da rua, nos dias em que ficava em casa, entre as duas e as quatro, à hora em que as horas morrem. E aí nasceram as histórias. Ouvi-as todas muitas vezes, porque só vale a pena ouvir histórias se as ouvirmos muitas vezes, porque não interessa só saber contar uma história- interessa conhecer-lhe a essência. Só se consegue chegar à essência duma história quando no-la contam muitas vezes, todas as versões, todas as palavras, toda a história.
Nas tuas histórias havia um grande planalto a que deste o nome de Huíla e havia sítios misteriosos com nomes de feitiçio- a Chibia, a serra da Leba… Havia reinos e palácios estranhos que chamavas de sanzalas e quimbos e reis de cara preta sem princesas que salvar. Havia gado e mulheres que esmagavam o milho no pilão, porque as tuas histórias são de um tempo em que a riqueza ainda vinha da terra. Falavas de povos estranhos e davas-lhes nomes fantásticos- cuonhamas, mucobais e quiocos- e envolvias tudo com palavras mágicas duma língua que mais tarde soube chamar-se Umbundo. Nas tuas histórias também havia um mundo muito novo à espera de ser moldado e homens ainda de barro cru e de capacete colonial que o amavam de mãos fechadas. Havia um pai herói que fazia bem de rei justo e que era amado por todos. E por fim uma menina chamada Aurora que soube amar tanto esse pai-herói-rei.
Foi então que eu descobri que antes de eu ser tu já eras há muitas eras e que nem sempre tinhas sido velha. Para grande surpresa de garoto que descobre a infância da avó tu também tinhas sido menina e tinhas sonhado sonhos cor da terra nessa África lá longe. Descobri assim a tua infância dentro desses contornos esbatidos que fazem da infância de quem é velho toda uma nova mitologia.
Agora vem avó, que é tempo de mais histórias, e juntos sonhemos novamente de mãos dadas teus sonhos africanos de menina.

Estórias do Grande Júri e do Pequeno Ruiz

ao Lusillo

As estórias destes dois amigos nasceram faz já algum tempo, se a memória não me falha, em terras francesas.

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz são dois amigos que gostam de andar por aí a passear. O primeiro é um grande C feito com a curva da mão esquerda e o segundo um pequeno e longo C feito com a curva da mão direita- a isto se resumem os nossos dois amigos.

O Grande Júri e o Pequeno Ruiz gostam de olhar para as pessoas e para o mundo e trocar ideias sobre aquilo que vêem e vivem. É isso que aqui hão-de fazer- deixar as suas impressões.

Divirtam-se com as estórias dos dois!

Sic Incipitur

Este blog nasce de uma grande vontade de escrever que existe em mim desde quase sempre. Aparece com uma descoberta lenta e deliciosa, que saboreei com cuidado, do valor das palavras. Surge de brincadeiras com as palavras dentro de uma infinitude que lhes oferecemos.

Este blog aparece também impulsionado por uma grande amiga, que por estas bandas virtuais dá pelo nome de colher de chá (vejam http://asvedettestambemseabanam.blogspot.com e adorem), que me encorajou a fazê-lo. Alguém que eu adoro e admiro e com quem partilho e discuto este gosto estranho e por vezes frustrante de escrever.

Sic Incipitur, assim se começa, um projecto que em mim se ambiciona há muito tempo. Porque quem escreve, escreve sempre para ser lido. E como diz Novalis "Urge que o leitor seja o autor-aumentado".