segunda-feira, agosto 27, 2007

Ser poeta, o que é?

À Rosa Carreiro.

Há por aí uma bela dona que me chama de poeta.

Não me insultes de maneira vil, dona rica. Não quero ser poeta, não quero.

Ser poeta é andar de cabeça perdida, sem cabeça talvez e não ver as cores havidas das coisas vividas de cada dia em mim.

Ser poeta é saber significados ocultos, palavras, tumultos, que os ferem a eles mais do que a nós. É dar nós em pontas de facas. É ser esmoleiro, alarde, aldrabão.

Ser poeta é ser vendido às coisas do havido. É ser poeta repetido e reclamar uma invenção.

Ser poeta é tanta coisa sem saber se é pouca, se muita, se tanta, se coisa alguma. É andar perdido e gostar-se de lá estar.

Ser poeta é fazer más rimas, é criticar em palavras finas as finuras d'outros que tais.

Ser poeta é soltar ais. Ais que não são nossos, dores que não podemos haver.

Ser poeta é tudo isto, é pior ainda talvez. É uma história nunca finda, viagem morta de vez.

Que'é ser poeta não sei. Não sou, não quero, não posso. Falta-me o orgulho moço de por dados a rolar em mim.

Por isso te peço bela dona não me chames poeta ainda que em tal palavra finda dar-me meu triste fim.

Criar ou O desespero do acto e da palavra

Criar.

É ainda o peso aterrador da palavra que me assusta, que me ausenta. O medo da palavra que me atormenta. Quedo, imóvel, instável, cruzo no tempo do instante a possibilidade da palavra,

Criar.

Enlaço, engano, enredo. É uma fonte de fictícias ilusões abstraídas obtidas no momento mais desesperante dos momentos, o momento errante. Errando, escrevendo, criando, temendo.

Criar.

É ainda o peso aterrador da palavra que se alevanta para o levante de inesgotáveis invenções que a palavra há-de guardar.

Lembrança do Verão

Já não é mais a tarde,
Mas a memória da tarde.

Já não é mais a música,
Mas a memória da música.

O espaço de recordar. Vivo talvez para a lembrança.

Ando perdido entre o que foi e o que me fica.
Entretanto apenas recordo.

Embaraço das horas
Contadas sendo vividas ou lembradas.
Quem sabe para que se vê?
Se para viver se para lembrar.

Já não é mais o cheiro,
Mas a memória do cheiro.

Já não é mais o Verde,
Mas a memória do Verde.

Lembro o tempo vivido
Até que o tempo vire para o viver.

Vivo para a lembrança. Talvez.

A dança dos mosquitos

O silêncio imenso da noite é quebrado pelo zumbir tremeluzente dos mosquitos. Em cada quarto cada um prepara uma orgia de sangue. É irónico que nos comam enquanto sonhamos.

Enquanto espero o fim das férias

Já não estou,

Ou por outra
Estou mas não fico.

Agora só anseio por lembrar.

sábado, agosto 25, 2007

Tarde de Primavera numa sala de retratos

Para o Ricardo Proença que me pediu uma coisa assim.

Há uma sala velha. As paredes estão pintadas de novo. Creme. Em tempos foram cor-de-rosa. No pequeno sofá semi-curvo e de canto, que também é rosa, as molas saem por debaixo do acento. Um número pouco certo e certamente alternado de almofadas esconde o que falta. Guardam em si desenhos a ponto cruz da vida oriental. Buscam conforto em coisas que não existem. Há duas senhorinhas: uma ao lado do sofá, a outro no outro canto da sala. Há também cadeiras. Tudo é rosa e tudo tem as molas a sair.

Na senhorinha do canto da sala está sentada uma mulher mais ou menos velha. Tem os cabelos longos como as suas pernas e um vestido de veludo púrpura cobre-lhe os pés como um mar. Os cabelos debatem-se entre o louro e o branco evidente. Tem de volta do pescoço um fio de lã. Faz crochet. No sofá há uma velha realmente velha. Magra, cadavérica. Os braços, que são ossos, estão destendidos sobre o sofá. Usa um vestido leve de flores. Ao piano, que fica na outra parede da sala, uma criança de dez anos toca uma sonatina furiosa. Tem os cabelos em ouro, molhados e ondulados e veste um fato de banho. Toca com uma calma complacente, mas a música que sae do piano é imensa.

A sala é pejada de retratos antigos a preto e branco. Nos dois maiores uma senhora e um senhor olham-se e cumprimentam-se. Não têm braços com que se tocar. Lamentam-se. Noutro decorre um piquenique. Uma rajada de vento ameaça fazer voar os chapéus de pluma das elegantes senhoras que seguram os chapéus com uma mão e as saias com a outra. Um rapaz de fato à maruja olha curioso para as saias das primas. O bebé que está no outro retrato cai e chora por uma mãe que não lhe pode valer, por não existir naquele mesmo espaço. A noiva do retrato pequeno rasga o vestido contra a mão imperiante do marido complacente e espectante. O comendador assusta-se com o bolor que já lhe come as pernas no seu retrato.

De súbito, a mulher mais ou menos velha suspira:
- A Primavera outra vez.
A velha do sofá parece despertar por um segundo para voltar a ficar absorta outra vez. As figuras dos retratos descobrem-se. Cumprimentam-se, parentes que não se veem há muito tempo. Talvez há tempo demais. O bebé pára de chorar vendo a mãe e o pai que lhe vão fazendo caretas que divertem todos. Todos riem. As três mulheres na sala não estão ausentes, mas distantes da cena. Permanecem. Trocam-se estórias, anedotas de salão e novidades de coisas que podem ter-se passado há um século.

A Primavera entra pela sala. As cortinas brancas tornam-se imensas até cobrirem tudo. Há o silêncio. Um silêncio feliz de quem viveu muito.

As cortinas retornam. A sala continua velha e pintada de novo. A criança terminou a sonatina. Já nenhuma das três tem um ar fantasmagórico e já não existem cabelos estendidos até ao joelho. Uma mulher de sessenta anos bem passados põem a mão sobre o ombro da criança:
- Vamos lanchar? Há refresco de maracujá, sussurra como um segredo.
-E a Titi, perguntam os olhos da criança num tom naturalmente subido.
-Adormeceu.
As duas contemplam a mulher nonagenária que dorme ausente no sofá. Saem por uma porta. A velha fica a dormir com a cortina esvoaçando.

Dentro de mim

Para o meu Pedro Miguel.

Há um recanto onde há palavras,
Tardes de segredo.

Em quantas manhãs esvaziámos boca e alma?
Quantas vezes nos percorremos um ao outro
Na busca do que o outro é?

Questionámo-nos ao longo das noites
Em rumos obtusos de significados
Como músicas sussurradas em lábios
Que encerram dentes cerrados.

Perdi-te, achaste-me. Foi ao contrário
Também.

E agora há um dia em que estamos parados na elegância
De Lisboa,
Há uma mesa de café verde e há as nossas mãos
Que nos desenham entre as nuvens de Monet.

Busca-me até ao Tejo,
Dentro de ti
Como tu estás dentro de mim.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Conto de Servília (1ª parte)- Corpus et Verbum

O conto de Servília baseia-se na minha leitura de As memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar. Não tem assim nada de original na sua essência. Contudo, também não foi minha intenção plagiar a autora. O que aqui se apresenta é o resultado do acto fenomenológico da escrita.

Maruliano meu avô acreditava nos astros. Gastou os últimos dias de uma vida calma perdido no seu observatório achando pela primeira vez para si astros que outros haviam encontrado. Foi nesses anos de criança e com Maruliano que me apercebi da importância de descobrirmos em nós mesmos aquilo que já outros descobriram. Só aí é que as coisas passam a ser verdadeiramente nossas. Foi debaixo da sua capa que encontrei o mundo que ficava do outro lado do portão da nossa villa. O mercado era o centro buliçoso da cidade e como todos os lugares de negócio era interdito às mulheres. Só àquelas que não podiam traçar os seus antepassados até épocas longínquas é que se permitia perderem os dias atrás de uma banca qualquer. Mais tarde apercebi-me da diferença entre quem compra e quem vende: o vendedor pode até exercer uma certa pressão sobre o comprador, mas quem vende precisa desesperadamente mais de quem compra do que o contrário. Esta verdade revelou-se-me ao longo dos anos nas caras dos muitos mercadores que encontrei pelos mercados onde estive.

Não sei se alguma vez acreditei nos astros. De resto, isso foi de pouca importância no correr da minha vida. Era mulher demais para me dedicar à astronomia, era patrícia demais para me perder na astrologia. Encontrei-me em outros campos. O meu corpo foi o primeiro e o mais importante. Nunca fui capaz de amá-lo porque nunca fui capaz de entender essa filosofia que encontra no corpo um ser ao mesmo tempo estranho e íntimo, companheiro de jornada, exterior a nós mesmos. Só os homens podem amar os seus corpos porque só eles podem procurar a sua ascese. As mulheres não têm tempo para isso. A sua sobrevivência insiste num jogo diário que decide quem ganha e quem perde, quem continua e quem cessa de existir. Ao meu corpo domei-o sempre sob jugo forte.

Adriano, meu primo, amou os corpos nessa profundidade filosófica. Encontrei sempre beleza nas suas palavras, mas já não fui capaz de a reconhecer nos corpos que teimava em divinizar. Adriano, meu imperador, gabou-se de ter melhorado a vida das mulheres. Nunca lhe censurei esta vã-glória. Era a sua condição natural de homem e não algo que ele pudesse contornar que o impedia de ver o breve alcance das suas leis. Também não tentei explicar-lho nas muitas cartas que trocámos. Não é para o mundo dos homens perceber o mundo das mulheres. Os homens andam por estradas longas e abertas, as estradas com que construíram o mundo. As mulheres movem-se por becos tortuosos, quase sempre sem saída. Tão tortuosos que atrevo-me a dizer que é mais difícil morrer velha e patrícia em Roma que velho e imperador. O casamento e a minha partida para o Lácio trouxeram-me a certeza de que não há lugar para as mulheres no mundo que é Roma. Mesmo as grandes patrícias devem nascer sob a sombra paterna, viver sob a sombra matrimonial e morrer sob a sombra dos filhos. A glória que foi reservada a algumas não foi senão o resto da glória dos homens a quem se ligaram e que tantas vezes ajudaram a construir.

Foi esta certeza da minha dificuldade de mulher que me fez olhar para o meu corpo. Tirei dele tudo o que ele me pôde dar. Tive a sorte, mais que a inteligência, de ter tido olhos sempre tão claros como os espelhos que me reflectiam e vontade de me ver neles. Soube pesar o tempo em medidas tão exactas que pude usar o meu corpo consoante cada época que a vida me trouxe. Na minha juventude levei-o em jogos perigosos de sedução em que se promete nada, perde-se muito e compromete-se tudo. Mas soube orientá-lo bem nos sentidos que me interessavam e não houve homem, enquanto a minha pele foi fresca, que me tenha resistido. Cedi poucas vezes às tentações do corpo. Talvez tenha sido o bocado de estoicismo que me sobrou da minha educação: não aceitei nenhum senhor, nem mesmo esse. Lamento-me, no entanto, dessas fraquezas que me seriam breves de esquecer não fosse a imensa vergonha que me trazem. Essas são as cicatrizes do meu corpo.

Hoje tenho a certeza, que também já esboçava na altura, de que o meu corpo foi o meu melhor aliado político nas poucas ambições que tive com o meu marido. Achei sempre extraordinário que duas criaturas que nutriam uma profunda indiferença uma pela outra se entendessem tão bem na política. Talvez porque ele tivesse a masculinidade necessária e eu o conhecimento induzido dum mundo tão parecido com o das mulheres. Não acho que seja por acaso que a palavra política é feminina. Tivémos os dois uma ambição medida e sem grandezas e sobretudo uma consciência clara da nossa posição enquanto primos do imperador. De quase nada valia em Roma o nosso parentesco com Adriano a não ser para nos granjear inimigos que quase nunca conhecemos em aberto, mas contra os quais tivemos que lutar até ao fim da vida. De resto, em Roma nunca conheci diferença entre ter-se a cabeça a prémio ou ostentar-se o título imperial.
Talvez esta fosse uma razão secreta para Adriano ter estado tão pouco tempo em Roma, perdido nos seus ímpetos criadores. Ou talvez porque foi o primeiro homem a aperceber-se que Roma era já todo o mundo aonde chegavam as estradas e o latim e não mais essa capital, em tanto já decadente, que agonizava longe dos seus adorados Júlios e Antónios, esses patrícios que traçavam as suas ascendências além da realeza até aos casamentos celestes. Não havia lugar na Urbe para os imperadores nascidos de homens. Esses tinham o seu lugar nas estradas que saem das sete colinas a construir o mundo novo. Adriano soube-o melhor que outros.

Os meus receios políticos ligaram-me desde o início a Plotina, a imperatriz de Trajano, e a quem Adriano me recomendara. Quando a conheci Plotina vivia já nessa casa pequena onde morreu à margem da cidade e à margem da vida. Trajava nos seus véus de luto a única soberba que lhe conheci: a de ser uma matrona romana dos tempos da Respublica. A sua vida marginal não fez dela na sua viuvez, no entanto, uma mulher desatenta do mundo. O espaço da sua casa tinha o tamanho dos seus aposentos no palácio imperial. Confessou-me mais tarde que isto não se devia ao acaso e menos ainda à humildade: este era o espaço preciso em que se habituara a governar. Com Plotina entrei realmente no mundo das mulheres. No mundo das mulheres encontrei os limites do meu corpo e aprendi com dura facilidade que o que nos ganha o mundo dos homens perde-nos quando o mundo passa a ser no feminino. O nosso não é um mundo de corpos, mas da palavra. O mundo das mulheres é o mundo da palavra. O dos homens o mundo das palavras. Os homens, que são senhores do tempo, podem perder-se na busca ascética que cada palavra encerra num significado único que a singulariza e a torna ao mesmo tempo distante e próxima das outras palavras igualmente únicas. Para nós, que vivemos de bocados de tempo, cada palavra encerra o significado do universo. É preciso ter a atenção das mãos que vagueiam pelo tear na escuta das palavras das mulheres. As suas palavras são um código antigo de múltiplos significados em poucos significantes. O instante da palavra mal entendida pode deitar a perder o mundo de uma mulher.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Versos pouco inspirados para os dias de férias

De mar e ondas, novas verdades.

Intensos caminhos, rios,
Riscos corridos sobre as ondas
Da manhã que tarda em chegar.

O dia começa às onze
Com o corpo estendido sobre a cama.
O sol existe na extensão da alvura
Dos meus lençóis.

As coisas gozam uma existência
Calma, cálida, breve,
Temperada.
O tempo é medido em proporções diferentes do ser.

Existimos de outra maneira.
As tardes são como os avessos de nós mesmos.
Longos instantes sobre o calor abrasador
Em que o nosso mundo vive
Das praias onde as horas nos permitem chegar.

De mar e ondas as noites,
Com cheiro de sal e coisas das ilhas.
A elegância dos turistas passeia-se
Nos múltiplos promenades das ruas.
São festas de vestidos brancos e ondulantes
Com encantos musicais
Que se pode dizer surgirem dentro de nós.

De mar e ondas e cores
Os sonos, os sonhos,
Vagos, distantes, confusos,
Linhas blândulas, obnubiladas,
Existências vagueantes, calmas,
Plácidas.
Segredos de agora, depois,
De amanhã, de outros dias.

De mar e ondas os tempos...