A medo abre a porta do quarto devagar. Esperou meticulosamente de olhos abertos a chegada desta hora que o relógio do quarto parecia fazer demorar. Os pés descalços, para não fazer barulho, entram no corredor. Nas paredes altas repetem-se os quadros de avoengos antigos, presenças assustadoras de uma infância ainda há pouco vivida, que de novo parecem semi-cerrar os olhos para lhe lembrar que o que faz é mal feito. Felizmente que ao fundo resta a grande imagem da Pietá, consolo eterno da avó, e em segredo também seu. Para si foi sempre ele nos braços da Virgem em vez do Cristo morto. Ele nos braços da mãe, não no fim da vida, mas numa espécie de vida fetal ainda por nascer.
Uma porta, outra porta, mais duas. Por fim, o grande quarto de hóspedes. Ele resta breves minutos indefinidos numa infinita espera. As mãos arriscam a maçaneta por várias vezes sem nunca a agarrar, até que se sente invadido por um surto de coragem e abre a porta. Todo aquele momento gira na sua cabeça fazendo dançar um turbilhão de ideias. Como se vem tornando habitual vive e pensa os instantes tudo ao mesmo tempo o que torna tudo mais confuso. Em si resta um misto de terror e de auto-reprovação apimentado por uma curiosidade de descoberta, descoberta que é mais sua do que de qualquer outro. Mas ainda que pense este momento serão ainda precisos alguns anos para que uma maturidade crescente lhe permita arrancar estas conclusões à memória. Será preciso passar a calma acastanhada dos outonos cadentes e os rigores frios de um Inverno que se anuncia cada vez mais próximo até chegar a uma Primavera (que por ora ele nem imagina que possa existir) libertadora e fulgurante culminando com o seu corpo nú nas águas de uma praia nesse Verão catárquico que há-de chegar. Mas isto são tudo coisas que se avizinham nas estações e que moram no seu futuro.
De mansinho, Gustavo abre a porta do quarto de hóspedes. Como uma terra prometida a imagem tão ansiada: o corpo nú de Martinho estendido sobre a cama sem qualquer coberta. Revela-se numa beleza fria de estátua ao mesmo tempo desejável e distante, provocatória sem que em si Martinho faça nada para o ser. Afinal, o primo dorme na tranquilidade do seu sono nú e talvez seja isso mesmo que faz dele ainda mais belo e ao mesmo tempo (felizmente) intocável. O corpo de Gustavo cede naturalmente e o sangue começa a correr com mais força. Mas não há em si nenhuma vontade de se tocar. De certa forma isso estragaria a intensidade deste momento. Este é afinal um instante de descoberta e de alguma maneira, ainda que vaga, Gustavo tem já noção disso. Não é como aquelas tardes quentes de verão em que a visão do corpo semi-nú e molhado de Martinho o faz correr para o toillette do pavilhão da piscina na quinta dos avós. Gustavo descobre com algum prazer que este não é um momento físico. Enquanto a penumbra o vai permitindo ver o corpo nú do primo e os olhos se habituam à escuridão Gustavo estuda cuidadosamente cada bocado de Martinho. É como um exercício analítico em que o estudo do corpo nú de Martinho lhe vai permitindo conhecer o que lhe agrada ou não. Martinho serve de primeira base para uma definição do seu gosto. Este gosto que agora se torna claro e vai adquirindo os seus moldes e que faz Gustavo entender que embarcou numa viagem sem regresso possível. Não que alguma vez a caravela tivesse prometido algum regresso, mas só agora, perante o corpo nú de Martinho, símbolo de tudo aquilo que ao mesmo tempo esconde e anseia, é que se apercebe disso.
Demora-se no quarto um tempo que ele próprio preferiu não contar. Sempre junto à porta, tentando o mais possível manter-se imóvel e sem fazer barulho. Felizmente Martinho não acorda. Nunca saberá desta noite nem da importância desta noite na vida do seu primo Gustavo. Gustavo por seu lado percebe muitas coisas. Fecha a porta. Em volta, no comprido corredor, já não há nada de acusativo nos olhos pintados nas telas dos avoengos, reflexo das acusações que se fazia a si próprio. Mas ao fundo a Pietá ainda resta como imagem de consolo, mãe para sempre carinhosa e protectora que o amparará num mundo que acaba agora e num outro que começa. O mesmo silêncio de volta ao seu quarto, os pés deslizando de mansinho sobre o tapete. A porta fecha-se. Gustavo volta para os seus lençóis. Como sempre a janela resta aberta (marca do seu medo infantil do escuro). Nunca Gustavo ansiou tanto pela chegada da manhã. Saberá mais tarde que a nova manhã trará o seu Outono e por vezes desejará um outro tempo até que as manhãs repetidas lhe tragam um novo Verão.
quarta-feira, fevereiro 28, 2007
segunda-feira, fevereiro 26, 2007
Amar e um piano
Os dedos esguios buscam nas teclas frias do piano o calor da carne dela enquanto ela se contorce sobre si mesma numa dança lenta, mas contínua. É como se ela se entregasse a ele entregando-se ao piano e à música que ele desenha sobre as teclas. Ele busca-a incessantemente no piano e conhece cada curva do seu corpo através de cada nota.
Ela tem um corpo esguio e magro. É como se fosse uma flor de cristal e a todo o momento restasse o perigo de partir os braços. Mas os braços não se partem voam. Ou esvoaçam parecendo que voam. Ela embebeda-se na música dele, doce, suave, calma, como uma primavera que de súbito tivesse chegado mais cedo. Os dedos dele nunca se alteram só a música cresce e se transforma, agora intensa, depois não tanto. As musas vêm buscá-la. A música transporta-a a algo divino, ascético. O corpo não pára jamais. É como se continuadamente fizesse amor com a música, com o piano e por fim com ele. É como se ele lentamente a conhecesse, a masturbasse e finalmente a penetrasse em cada tecla.
Ele toca, ela dança. Olham-se, anseiam-se, desejam-se, mas jamais se tocam.
Ela tem um corpo esguio e magro. É como se fosse uma flor de cristal e a todo o momento restasse o perigo de partir os braços. Mas os braços não se partem voam. Ou esvoaçam parecendo que voam. Ela embebeda-se na música dele, doce, suave, calma, como uma primavera que de súbito tivesse chegado mais cedo. Os dedos dele nunca se alteram só a música cresce e se transforma, agora intensa, depois não tanto. As musas vêm buscá-la. A música transporta-a a algo divino, ascético. O corpo não pára jamais. É como se continuadamente fizesse amor com a música, com o piano e por fim com ele. É como se ele lentamente a conhecesse, a masturbasse e finalmente a penetrasse em cada tecla.
Ele toca, ela dança. Olham-se, anseiam-se, desejam-se, mas jamais se tocam.
E se o verão de súbito regressasse?
Talvez te diga das cartas,
Das folhas,
E do chá nas tardes calmas de Inverno.
Porque a minha vida é como o livro manso
Que resta na mesa de cabeceira.
Leio(-me) devagar .
Invento nos livros uma mitologia
Nova e minha.
Não tenho mais que te diga. Tu procuras tanto de mim.
De súbito peço: esgota-me.
Levanta o livro da mesa e lê-me vorazmente.
Que saudades do verão que volta com a tua voz
Enquanto tu enches o quarto de mim,
Palavras que buscas nos livros.
Traz de volta o sol e o encanto de ser feliz sem roupa
Enquanto deixamos o corpo adormecer
À beira-mar.
É à beira-mar que cultivamos nossa terra de sonhos,
Desejos que escreves na areia
E que o mar apaga.
Aguardo.
As horas rasgam os dias
Sem sequer pensar em nós.
Só um mês,
Mais uns dias.
Agora a primavera.
Depois o verão.
Enquanto,
Anseio...
Das folhas,
E do chá nas tardes calmas de Inverno.
Porque a minha vida é como o livro manso
Que resta na mesa de cabeceira.
Leio(-me) devagar .
Invento nos livros uma mitologia
Nova e minha.
Não tenho mais que te diga. Tu procuras tanto de mim.
De súbito peço: esgota-me.
Levanta o livro da mesa e lê-me vorazmente.
Que saudades do verão que volta com a tua voz
Enquanto tu enches o quarto de mim,
Palavras que buscas nos livros.
Traz de volta o sol e o encanto de ser feliz sem roupa
Enquanto deixamos o corpo adormecer
À beira-mar.
É à beira-mar que cultivamos nossa terra de sonhos,
Desejos que escreves na areia
E que o mar apaga.
Aguardo.
As horas rasgam os dias
Sem sequer pensar em nós.
Só um mês,
Mais uns dias.
Agora a primavera.
Depois o verão.
Enquanto,
Anseio...
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