sábado, janeiro 27, 2007

A escrita

"O alívio que deriva do género de trabalho que produzo com o cérebro e o coração reside nisto: só no silêncio activo do pintor ou do escritor é que a realidade pode ser reelaborada e revelada no seu aspecto verdadeiramente significativo."

Lawrence Durrel in O Quarteto de Alexandria I. Justine.

Em dias que guardamos para nós

Hoje abandonei-me do mundo. Vim viver um bocado em mim. Deixei-me ficar na turbulência deliciosa e mansa de quem acorda e adormece entre as primeiras horas de sol. Dormi sem ninguém à minha espera e acordei quando esperava por mim.

Li, li muito, deixei-me ler. Perdi horas de livro na mão, enquanto subitamente andava lá por Alexandria entre uma Grécia que já não existe e uma cidade que só nós fazemos existir. Perdi-me por lá e demorei a voltar.

Voltei para escrever. Fui buscar palavras às salas da casa que ainda deixei na penumbra dos estores meio corridos. Achei-as em breves raios de luz que furavam caminho. Sentei-me para escrever cartas e escrever sobre escrever. Que encanto pensar em nós num dia que para nós guardámos e saber como gostamos do que fazemos.

Ouvia. Algures pela casa, nos caminhos do corredor, chegavam-me as vozes das divas que de manso me cantavam Vinícius. Deixei-me embebedar de leve numa dança que ainda não conheço, mas que o meu corpo soube bem desenhar.

Com a tarde regresso. É preciso espreitar o mundo pela janela e deixar a luz correr pelos estores agora abertos. Lá fora o dia, a vida- encontro-me.

Enquanto me olhas nas horas da escrita

Das palavras que toldo, que temo
Transformo.

Enquanto te digo encanto,
Te danço, te arrasto, te rasgo.

Enleias meu labor.

Teus cabelos,
Cavalos vagueando em torno do meu pescoço.

Meus olhos entornam vagas de amor
Que a ti tornam.

Desenho,
Descrevo,
Teu traço,
Te escrevo.

Volta-me

Enquanto te deixo
Me deixas.

Que importam as tuas carícias
Se tu não estás nelas?

Meu corpo, terra de abandono,
E o vento impele
Sobre a minha pele
Sinais da tua ausência.

Música cadente
Que me incandesce,
Resto teu porão esquecido,
Sensibilidade dos meus poros que te lembram.

Encanto, valsa, soneto,

Volta-me.

Enumeração

Encanto cadente
Valsa
Soneto
Serenata

Aliciante
Marcante
Maresia
Sereia

Semeio
Semente

Força
Esforço
Esgar
Frio
Elegante
Elogio

Dente
Densidade
Doar
Nostálgico

Número
Encanto
Enumerar

sábado, janeiro 13, 2007

Quando os nossos corpos

Teu corpo, que delicia,
Um encanto que acordo
Enquanto ainda dormes
Entre as minhas mãos

Minhas mãos que te prendem
E por onde teu corpo anda solto

Nossos corpos, geografias,
Por-do-Sol
Palavras

As tuas pernas enroladas nas minhas
Uma brincadeira,
De súbito os beijos

Um encanto
Agarro-te quando os teus olhos
Me dizem do desejo

Enterras-te em mim
Uma sede sem oásis

Uma busca intranquila

Meu corpo onde não paras
Mas ficas

Onde descansas em tumulto

Eu gemo aos teus ouvidos
De mansinho

Tu violas-me
Eu deixo

Até caíres sobre mim
Exausto das viagens

E quando a luz nos inunda o quarto

Eu sei que escolhes ficar por mais um dia.

Das palavras, que encanto

Correm-me palavras
Sempre
Constantes

A umas agarro-as
A outras deixo-as

Umas dizem-me
Outras ferem-me

Por vezes tenho medo delas
Por vezes deixo-as agonizar
Enquanto morrem
Na minha preguiça lenta

Enfrento-as
Há sempre essa hora
Em que elas me voltam
Rasgam-me magoam-me
Enaltecem-me elevam-me

Encantam-me

Colho-as
De leve
Escolho-as
Com precisão
Meço-as
Na balança que guardo em mim

E dou-as
Desapegado
Enquanto elas me fogem
Por entre os dedos
Das minhas mãos abertas

O Chá

Lisboa entardece no frio do seu sol de Janeiro. Entregas-me a uma esquina esquecida da tua rua. Há, de súbito, um cheiro que me alerta os sentidos. E de repente folhas de chá dançam-me com a coreografia milenar das mãos que as colhem quando o sol vem aquecer a Primavera, lá do outro lado do mundo.

O chá é como um líquido sagrado dos deuses com culto próprio. Uma palavra para mim: saboreia. Leve e suave, pequenas agulhas de prata. O chá entra delicadamente por mim, descobre-me. Primeiro o o nariz, os olhos, depois a boca e as mãos. O meu corpo tacteia o chá levemente, enquanto os meus dedos se prendem em torno de um corpo de vidro quase orgânico pousado numa folha de cobre.

Deixo-me estar mais um pouco nesta elegância descoberta de repente, mas com o cuidado de quem sabe apreciar as coisas. Fecho os olhos. Tudo me inunda. Um cheiro que quase se bebe em antecipação do que está para vir.

Palavras arrancadas a custo, numa altura que não é de palavras, mas de sentidos. Sentidos que me enleiam e que me levam. O chá...

P.S.- Não deixem de ir ao "Chá não falta" numa das esquinas da Andrade Corvo.

O Silêncio

O silêncio é

A atenção que deixamos recair sobre as coisas.