segunda-feira, fevereiro 22, 2010

(Sem título)

À mesa o pouco pão é terra podre
Das terras que choraram a noite inteira.

Hoje o mar corre para as ribeiras
E espalha em todo o canto
O perfume enjoativo dos mortos
Em espanto.

Tudo é interior e fechado.

Negritude.

Eis que as ruas da cidade voltam a ser em pedra bruta.

Algures no oceano a ilha da Memória jaz desfeita.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Caleidoscópio

Fujo a cada impulso criador. Às vezes, por exemplo, estou parado em algum sítio... imagina a esplanada dum shopping dum subúrbio de Lisboa. Estou sentado, é Inverno, e apesar do frio o sol é quente que chegue para me espreguiçar na cadeira e lamentar não haver espreguiçadeiras. À minha frente há o barulho forte da auto-estrada que é o barulho mais lindo deste tempo. Tudo devia ser como a auto-estrada: veloz, moderno, eficiente e sem possibilidade de voltar atrás. Depois é assim, vês? Começo logo a divagar. A pensar muitas coisas. Quando estou sozinho penso porque acho que é o que as pessoas fazem quando estão sozinhas.

Mas voltemos ao assunto! Não, não vou fazer literatura agora se não a fiz antes.

Eu estou sentado. O mundo moderno está aberto à minha frente. Já falei da auto-estrada. Mas há betão por todo o lado. Muitos prédios onde vivem muitas pessoas em muitas casas. Foram todas equipadas no Ikea ou na Moviflor. É só uma questão de datas. Tudo é novo. O mundo moderno só existe a sério nos subúrbios onde não existem centros históricos. Foram deitados abaixo para construir eficientes repartições de finanças. Aquilo que o sociólogo da Câmara não deixou enfiar no entulho está no museu municipal ou à porta duma biblioteca da zona (quando há alguma).

Mas vês como me perco? Divagação outra vez!

Vou resumir os factos: é Inverno, mas o sol é quente e eu estou sentado na esplanada dum shopping suburbano com o mundo moderno à minha frente. Tudo o que eu disse antes cabe aqui: sem fazer literatura!

Conquanto esteja atento a tudo isto (repara como é elegante a palavra conquanto) há uns miúdos do liceu a conversar. Há aqui muitos miúdos do liceu porque são apenas 3h da tarde. Ali, naquela mesa, são dez: contei-os. Agora levantaram-se. Agora não há quase ninguém. Eu e uma senhora ali ao fundo sentada noutra mesa a falar ao telemóvel. Ela não tem o mundo moderno à sua frente, mas compõe a visão que eu tenho do mundo moderno.

É no meio disto tudo que tenho vontade de escrever. Nada disto cabia nas páginas dum romance. Um subúrbio, miúdos do liceu no shopping, a senhora a falar ao telemóvel. Depois penso que podia ter lugar num blogue. Num desses blogues que os tipos como eu têm, os tipos que querem escrever. Esses que os tipos como tu, os que escrevem mesmo, acham risível. Só acham risível porque é uma maneira literariamente polida de dizer digno de dó. É que "digno de dó", apesar da aliteração, não é nada polido. Não é nada digno de ser literário.

É isto mesmo, vês? É sempre assim! Penso em escrever. Mas depois penso no que é escrever: em tudo o que isso quer dizer, entendes? As implicações que tem. Escrever não é para um tipo numa esplanada dum shopping suburbano a falar de auto-estradas. Deve falar da vida. De pessoas. De complexidades. Deve ser uma coisa feita, construída. Olha, maquinada, que é mesmo a palavra ideal. Então não escrevo. Não escrevo mesmo. Recuso-me! A sério. Digo para mim "Não tires daí o caderno. Não escrevas. Não consegues. Escrever não é para tipos como tu. É para tipos mesmo bons que sabem o que fazem."

Nunca falei disto a ninguém. É paralisante, sabes? Tenho estórias na minha cabeça. É tão absurdo que narro para mim certos episódios porque passo. Narro-os como se estivessem escritos num livro escrito por mim. Mas eu posso lá escrever livros. Ou blogues. Ou coisas num caderno preto que se leva na mala.

Não escrevo, é como te disse. Fico muito tempo parado ao sol. A vontade passa. Com o tempo fica mais fácil. Eduquei-me bem. Agora já nem sinto vontade de escrever.

Fico sentado a pensar em muitas coisas como fazem todas as pessoas quando estão sozinhas.