Mas o que imprime a sua marca ao Carnaval, o seu espírito enganador, é o dominó de veludo, conferindo aos que o usam o anonimato a que todo o homem aspira no fundo do coração. Tornar-se anónimo, no meio de uma multidão anónima, sem revelar nem sexo, nem origem, nem mesmo a expressão do rosto, porque a máscara desse hábito de frade louco só descobre dois olhos, brilhando como os olhos de uma muçulmana ou de um urso. Nenhum traço identificador; nem mesmo o contorno do corpo se desvenda. seios, coxas, faces, tudo desaparece. E escondido sob o hábito carnavalesco (como um desejo criminoso no coração, uma tentação irresistível, um impulso que aprece predeterminado) jaz o germe de qualquer coisa: de uma liberdade que o homem nem sequer se atreve a sonhar. O mascarado sente-se livre de fazer o que lhe aprouver. Todos os crimes impunes da cidade, todos os casos trágicos de confusão de identidade, são o fruto do Carnaval; e por outro lado muitas aventuras de amor se atam e desatam nesses dias em que nos libertamos do selo da personalidade, da servidão das nossas pessoas. Uma vez dentro da opa de veludo, a mulher perde o marido, o marido perde a mulher, o amante a bem amada. O ar crepita com o sal das contendas e loucuras, com a fúria das batalhas, com a agonia de uma noite de buscas infrutíferas, de desesperos. Nunca se sabe se dançamos com uma mulher ou com um homem. As márés sombrias de Eros, que exigem uma identidade total para inundarem a alma humana, explodem durante o Carnaval com uma força longamente represada e libertam estranhas criaturas primitivas- as perversões que são, suponho eu, o alimento da psique-, seres que se podem crer fugidos do monte Brocken ou das garras de Eblis. Sim, quem pode deixar de amar o Carnaval quando nele todas as dívidas se pagam, todos os crimes se expiam ou cometem, todos os desejos ilícitos se satisfazem, sem culpa ou premeditação, sem as penas que a consciência ou a sociedade humana combinam?
In "Quarteto de Alexandria. Baltasar"
sexta-feira, fevereiro 20, 2009
Excertos- I
Foram os melhores dias da vida de Tancredi e de Angelica, vidas que viriam depois a ser tão diversas, tão pecaminosas sobre o inevitável fundo de dor. Nessa altura porém não o sabiam e ambicionavam um futuro que julgavam mais concreto, embora depois se revelasse feito apenas de fumo e vento. Quando já eram velhos e inultilmente sábios, os seus pensamentos regressavam a esses dias do desejo sempre presente porque sempre vencido, dos inúmeros leitos que se tinham oferecido e que tinham sido recusados, do frenesim sensual que, refreado, se sublimara, por um instante, em renúncia, ou seja, em verdadeiro amor. Esses dias foram a preparação para o casamento que, mesmo no plano erótico, foi um fracasso; uma preparação, porém, que assumiu o aspecto de algo independente, delicado e breve: como aquelas aberturas que sobrevivem às óperas esquecidas e que contêm em esboço e cheias de uma vitalidade velada de pudor, todas as árias que sem qualquer destreza eram depois desenvolvidas na ópera, e fracassavam.
In "O Leopardo"
Quanto a mim, foi como se não tivesse lá estado, ou muito pouco... Na obscuridade da capela, iluminada apenas pelos dois cilícios do altar, naão vi a quem dava a mão. O bom Henri de Montchevreuil, que me servia de testemunha, disse-me qualquer coisa, mas não percebi o quê. Não ouvi o rei responder às perguntas do arcebispo, não me ouvi a mim própria consentir na minha elevação. Só recuperei a consciência de mim mesma por volta do Agnus Dei para reflectir que estava a ser tão glorificada neste mundo que tinha motivos para recear ser humilhada e confundida no outro; e recaí no meu estupor até ao último evangelho, quando subitamente disse a mim mesma que não poderia subir mais alto.
Comecei, então, a temer o tédio.
In "A Alameda do Rei"
In "O Leopardo"
Quanto a mim, foi como se não tivesse lá estado, ou muito pouco... Na obscuridade da capela, iluminada apenas pelos dois cilícios do altar, naão vi a quem dava a mão. O bom Henri de Montchevreuil, que me servia de testemunha, disse-me qualquer coisa, mas não percebi o quê. Não ouvi o rei responder às perguntas do arcebispo, não me ouvi a mim própria consentir na minha elevação. Só recuperei a consciência de mim mesma por volta do Agnus Dei para reflectir que estava a ser tão glorificada neste mundo que tinha motivos para recear ser humilhada e confundida no outro; e recaí no meu estupor até ao último evangelho, quando subitamente disse a mim mesma que não poderia subir mais alto.
Comecei, então, a temer o tédio.
In "A Alameda do Rei"
terça-feira, fevereiro 17, 2009
Tela Roubada de A. (Revisited)
Entenda-se umas águas furtadas na Baixa de Lisboa. É Maio e por isso há sol. Frente a uma das janelas da casa há uma cadeira e uma mesa próxima da cadeira. A. está sentada e tem uma revista sobre o colo. As mãos, por vezes, passam as folhas, mas ela está sobretudo distraída com a luz da manhã lá fora. Olha para o lado. Sobre o sofá está o vestido que usou ontem à noite. Caído ao acaso A. descobre-lhe uma posição estética como se tivesse caído assim com alguma razão. Depois volta a concentrar-se na luz que vem da janela. Ainda tem a revista no colo, mas já não a folheia. Em cima da mesa há um copo com sumo de laranja. A. pegue nele e leva-o aos beiços. Bebe uns goles. Pousa o copo e levanta-se. Debruçada sobre o varandim A. corta algumas camélias. A. tem três varandins e ao longo deles plantou camélias. Antes havia rosas, encarnadas e brancas, mas o seu cheiro intenso e doce empastava a casa nos dias quentes de Agosto. Era apenas insuportável. Então A. desceu à Parça da Figueira e numa loja de esquina comprou sementes de camélia. Delicadamente, como quem estuda um gesto sem saber A. pega numa jarra. As camélias estão agora na jarra e A. dá-lhes um último toque. Pára uns momentos entre o distraída e o absorta e pensa no que irá fazer. Há mais um corpo deitado na sua cama e há que equacioná-lo. Entra no quarto. O homem está só ligeiramente tapado pelo lençol. A. repara nas costas fortes, nos ombros largos e na pele profundamente morena. E na luz que entra pela janela e banha o corpo do homem que dorme. A. entra na banheira. Com um gesto rápido roda a torneira e sente a água fria. O corpo contrai e a respiração torna-se mais rápida. Sente cada parte. Enquanto passa o sabão pelo corpo lembra-se da noite d'ontem. A música, a dança frenética, a casa, a cama, o seu corpo demasiado branco contra o corpo dele demasiado moreno. A. envolve-se agora na toalha. No quarto ele acordou com o som da água e levantou-se. Veste-se rapidamente e diz que prefere tomar banho em casa. A. olha-o talvez esperando que ele saia do quarto. Ele senta-se numa ponta da cama ainda por fazer. A. arranja os cabelos, livra-se da toalha e veste o vestido amarelo. Ele olha-a sempre em tudo. Ela está de costas, ams ve-o e isso deixa-a feliz.
Agora sairam. Passaram o Rossio e começam a entrar na Praça da Figueira. Daqui a pouco não será mais manhã. Gentilmente ele abre-lhe a porta da Confeitaria Nacional. Ouve-se uma música alegre. Dessas que os cantores americanos lançam na Primavera. Ela sobe a escada à frente e lá em cima escolhe a mesa. Senta-se numa cadeira junto à janela. O empregado vem e eles pedem. Enquanto esperam e depois enquanto comem falam de coisas supinamente triviais. C. tinha uma exposição perto da Graça que eles tinham que ir ver. I. lançava um novo romance nessa tarde, mas ele não podia ir. E depois a política, e a sociedade e o estado da arte. Mas a vida acontecia lá fora. A. equilibrava-se agora entre a conversa com ele e a vista sobre a Praça da Figueira. E os skaters perto da estátua, e os homens encostados à paragem do metro de olhares vagos, e as prostitutas que abriam as janelas das suas pensões de ratos e baratas. Os autocarros amarelos da Carris e os eléctricos estridentes. As pessoas apressadas e mais aquela que quase ia sendo atropelada por não respeitar o sinal. Os miúdos que chupavam em grandes doces ou trincavam bons bolos e as mães desesperadas com o melaço que escorre e mancha e suja tudo. E a possibilidade de tantas outras coisas entre a janela de casa e o varandim da Confeitaria Nacional. Ele está a pagar. Ela lança a mão à bolsa, mas ele cobre o gesto com a sua mão. Eles descem a escada e ela vai à frente. Já na rua despedem-se com um beijo. E têm mesmo que ir ver a exposição de C. e ele não vai mesmo poder ir hoje ao lançamento do livro de I., mais por embirração do que por indisponibilidade. A. tem que passar por casa antes de ir almoçar com L. como prometeu. Levanta o pulso e olha o relógio. Ainda tem tempo. A. desce a Rua Augusta. Quantas vezes podem oferecer drogas a uma pessoa? Os turistas debruçados nas montras das lojas típicas e os portugueses a encherem a Zara. E som e luz e cor. E vida! E A. chega a uma Praça do Comércio agora restaurada, agora longe dos tempos da crise. O coração da cidade bate ao mesmo tempo que o seu. Cedo A. vai partir para Berlim e ainda não sabe quando volta. Voltar isso há-de voltar. Tem voltado sempre à cidade. E no cais das colunas, o rio em frente e a cidade nas costas, A. fecha os olhos e inspira com força. Tem os pulmões cheios do ar do rio. Agora A. constrói o amanhã.
Agora sairam. Passaram o Rossio e começam a entrar na Praça da Figueira. Daqui a pouco não será mais manhã. Gentilmente ele abre-lhe a porta da Confeitaria Nacional. Ouve-se uma música alegre. Dessas que os cantores americanos lançam na Primavera. Ela sobe a escada à frente e lá em cima escolhe a mesa. Senta-se numa cadeira junto à janela. O empregado vem e eles pedem. Enquanto esperam e depois enquanto comem falam de coisas supinamente triviais. C. tinha uma exposição perto da Graça que eles tinham que ir ver. I. lançava um novo romance nessa tarde, mas ele não podia ir. E depois a política, e a sociedade e o estado da arte. Mas a vida acontecia lá fora. A. equilibrava-se agora entre a conversa com ele e a vista sobre a Praça da Figueira. E os skaters perto da estátua, e os homens encostados à paragem do metro de olhares vagos, e as prostitutas que abriam as janelas das suas pensões de ratos e baratas. Os autocarros amarelos da Carris e os eléctricos estridentes. As pessoas apressadas e mais aquela que quase ia sendo atropelada por não respeitar o sinal. Os miúdos que chupavam em grandes doces ou trincavam bons bolos e as mães desesperadas com o melaço que escorre e mancha e suja tudo. E a possibilidade de tantas outras coisas entre a janela de casa e o varandim da Confeitaria Nacional. Ele está a pagar. Ela lança a mão à bolsa, mas ele cobre o gesto com a sua mão. Eles descem a escada e ela vai à frente. Já na rua despedem-se com um beijo. E têm mesmo que ir ver a exposição de C. e ele não vai mesmo poder ir hoje ao lançamento do livro de I., mais por embirração do que por indisponibilidade. A. tem que passar por casa antes de ir almoçar com L. como prometeu. Levanta o pulso e olha o relógio. Ainda tem tempo. A. desce a Rua Augusta. Quantas vezes podem oferecer drogas a uma pessoa? Os turistas debruçados nas montras das lojas típicas e os portugueses a encherem a Zara. E som e luz e cor. E vida! E A. chega a uma Praça do Comércio agora restaurada, agora longe dos tempos da crise. O coração da cidade bate ao mesmo tempo que o seu. Cedo A. vai partir para Berlim e ainda não sabe quando volta. Voltar isso há-de voltar. Tem voltado sempre à cidade. E no cais das colunas, o rio em frente e a cidade nas costas, A. fecha os olhos e inspira com força. Tem os pulmões cheios do ar do rio. Agora A. constrói o amanhã.
terça-feira, fevereiro 10, 2009
Em Alexandarplatz ou Um dia na toirada ou ainda Viagem entre a Alemanha e a arena dentro de mim mesmo
Para G., sem autorização de ser miserabilista.
Algures no vazio de Alexanderplatz passeia uma multidão de gente. Os sons estridentes da cidade, entre os comboios velozes e os infindáveis autocarros. A Galeria e as salsichas e os donuts e todas as coisa que fazem uma praça da cidade.
Depois olhei para dentro de mim mesmo.
Era um dia de arena e toirada. E a vida feito toiro marrava num recanto até correr na minha direcção. E fiquei sem ar e quase sem pulmões e não respirei durante segundos demasiado longos. E tive os olhos sempre fechados. Mas quando os abri tinha agarrado o toiro pelos cornos.
Algures no vazio de Alexanderplatz passeia uma multidão de gente. Os sons estridentes da cidade, entre os comboios velozes e os infindáveis autocarros. A Galeria e as salsichas e os donuts e todas as coisa que fazem uma praça da cidade.
Depois olhei para dentro de mim mesmo.
Era um dia de arena e toirada. E a vida feito toiro marrava num recanto até correr na minha direcção. E fiquei sem ar e quase sem pulmões e não respirei durante segundos demasiado longos. E tive os olhos sempre fechados. Mas quando os abri tinha agarrado o toiro pelos cornos.
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