sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Conjunto de quatro telas roubadas ou Quatro amigos retratados em dois presentes, um futuro e um intermeio

IVAN

Está lá em baixo, sentado num penhasco qualquer. Tem as costas meio curvadas. Tem as pernas ao acaso. E olha o mar.

Que será que faz? (Tem um caderno em branco nas mãos). Respira. Fundo e forte. E olha o mar.

Cada onda rebenta dentro dele mesmo e deixa-lhe os pés molhados. (Será que está descalço?) O mar é azul. Muito azul. Intensamente azul.

Há vento, uma brisa, e os cabelos finos agitam-se. Ele continua a respirar. Fundo e forte.

O mar é um prolongamento dele mesmo. Ele é forte e duro como o mar.

Lá, em cima do penhasco, sentado sobre as ondas, o rapaz de asas marcadas pelo fogo é infinitamente belo.


ROSA

A Rosa chega ao Kaffa e entre a conversa vai murmurando entre dentes “A mesa do canto, por favor. A mesa do canto!” A Rosa chega ao Kaffa e ri-se e alegra-se porque a mesa do canto está livre. Entra, senta-se e despacha os pratos sujos em cima da mesa com grande rapidez. Até agora nunca parou de falar.

A Rosa chega ao Kaffa e fala duma maneira ininterrupta. Às vezes diz tolices, mas o que ela nunca diz são coisas sem sentido. Senta-se na mesa do canto porque é o melhor sítio para se observar as pessoas. A Rosa chega ao Kaffa e gosta de observar as pessoas.

O empregado é muito simpático e a Rosa é sempre simpática para ele mesmo quando não tem vontade de ser simpática. Porque a Rosa é naturalmente simpática.

A Rosa alegra todos à sua volta com a sua conversa. Ela sabe ter uma conversa animada, interessante e em que qualquer um cabe e tem lugar.

Às vezes a Rosa pára de falar. Olha para o lado esquerdo, onde se senta o seu homem. Ri porque ter o seu homem ao seu lado no Kaffa numa tarde de sol e com boa companhia a lembra de como ela é feliz.

Mas é tudo muito breve. Volta logo a falar.

A Rosa usa um casaco encarnado e um colar comprido de contas ao pescoço. Não é alta, mas é linda.

A Rosa tem fome da vida e tem fome da cidade. É por isso que gosta de ir ao Kaffa em dias de sol e sentar-se na mesa do canto.

Às vezes a Rosa pára de falar, pouco depois de chegar ao Kaffa, e olha para o lado esquerdo. É sempre um momento que passa num instante. Mas é quando é melhor ver a Rosa sorrir.


HUGO

Enquanto o suor escorre fino e frio pelo rosto do pintor o Hugo diverte-se. O pintor tem um ar sério e muito grave e traça cada pincelada como se em cada uma Deus (que é o próprio pintor) criasse de novo o mundo (que é cada pincelada). O pintor nunca dirá ao Hugo para ficar quieto e o Hugo não vai ficar quieto até que o pintor lho peça. Diverte-se a criar este ciclo que apenas ele pode quebrar.

Não é que ele se mexa muito, ou fale, ou esteja a ser alarve. Assim, o Hugo seria apenas para o pintor mais um parvenu para ser pintado. Às vezes o braço descai, outras o braço treme, outras agita-se e outras ainda desenha círculos breves com as pontas dos dedos.

O Hugo tem o cotovelo esquerdo apoiado na mesa e a mão direita derramada sobre ela. Aberto está um livro com alguns sermões do Padre António Vieira. A edição é do Hugo. Do pescoço cai-lhe o cachecol azul, porque os cachecóis do Hugo são como jóias que ele usa, e o cachecol azul é a jóia mais delicada. É preciso mais que este pintor para perceber a elegância do Hugo.

O pintor olha para ele como quem lança um anátema. O Hugo é o retratado mais herético que ele já teve. Porque os retratados são muito direitos e bem comportados e têm orgulho que o pintor lhes pinte o retrato. Porque os retratados deste pintor são parvenus. Mas o Hugo não é um parvenu para ser pintado. Em conjunto com os braços, dobrado e derramado, com o Vieira e o cachecol azul o Hugo pôs na ponta da mesa um frasco imenso de wasabi e uma lindíssima caixa repleta de delícias turcas.

Às vezes o braço descai. Mas o Hugo tem sempre aquele sorriso de quem também sorri com os olhos que se abre ligeiramente entre os beiços ao canto esquerdo. E o sorriso faz o pintor pintar fino e frio.


ANA

É uma manhã de sábado e é Primavera. Porque o céu está limpo a luz de Lisboa é incomparável. A varanda das águas furtadas tem camélias plantadas. A Ana experimentou rosas primeiro, mas as rosas não resistem tanto como as camélias e as rosas intoxicavam a casa de um cheiro melado nas tardes de Verão. A Ana experimentou depois as camélias e agora estão na varanda das águas furtadas.

A Ana tem uma cadeira frente à janela. A janela tem quase o pé direito da sala e abre para uma praça de Lisboa. A Ana senta-se na cadeira frente à janela numa manhã de sábado de Primavera.

Numa mesa ao canto há dois copos usados e agora vazios. A Ana ontem foi ao teatro e voltou tarde depois de passar por Santos. A Ana ainda dançou um bocado no Lux. Mas só um bocado porque a Ana não perde noites, goza-as. Quando chegou a casa bebeu alguma coisa com ele. Agora, numa manhã de sábado de Primavera, ele está nu, deitado na cama do quarto grande. Ela está sentada frente à janela e pensa no que vai fazer no dia de hoje. Uma amiga tem uma exposição de pintura numa galeria do Rato. Depois há-de jantar num restaurante qualquer. A Ana é conhecida nas galerias e nos restaurantes porque a Ana tem uma vida. A vida da Ana é a Cidade. Às vezes o teatro, os bailados, os concertos, mais raramente a ópera. Muitas vezes as tertúlias, os cafés, os Grémios, mais raramente o Bairro Alto.

A Ana é aquilo que ela fez de si mesma.

Daqui a cerca de duas horas ele vai acordar. A Ana vai voltar ao quarto, vai guardar a roupa da noite passada e vai vestir o vestido amarelo. Porque a Ana pode vestir um vestido amarelo numa manhã de sábado de Primavera. Depois vão falar e rir muito e descer as escadas do prédio. Então a Ana há-de ir ao encontro da Cidade.

Vão tomar o pequeno-almoço à Confeitaria Nacional e vão ficar numa mesa frente a uma janela porque a Ana não pode ficar nunca sem ver a Cidade. Depois a Ana vai despachá-lo com uma desculpa qualquer. Qualquer pessoa que passasse e lhe perguntasse ele diria que era namorado dela. A Ana não diria o mesmo. Antes de ir a casa chamar almoço a uma sandes rápida a Ana desce a Rua Augusta, atravessa a Praça do Comércio e chega ao Rio. Ela é parte da sua cidade em cada rua.

Em frente ao rio a Ana respira. É assim que a Ana constrói o amanhã.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Tejo Brasileiro

Quem dera Tom Jobim. Por um pouco numa escada de Lisboa. Um porto. O crepúsculo outra vez. Passando em minha frente breve garota de Ipanema. De pé descalço pela calçada do Chiado. Lá vai ela. Me enche de graça.

Entretanto olhos de oliva espreitam do canto. Vinícius, Deus meu, que saudade. E tudo na esquina entre o Carmo e a Trindade.

E Chico que passa com a Banda, Caetano tão ao de leve segurando a mão de sua irmã Bethânia.

Lisboa, suave, namora o Tejo, lá até onde ele chega na Baía de Salvador.