Para o Pedro, que me ensinou a linguagem dos gestos. Para o Ricardo que nos vai ensinando a ser simples.
Agora tu estás deitado ao meu lado depois das minhas mãos te terem arrancado algo a que tu chamas prazer. Mas eu não estou lá, só o meu corpo. Agora eu estou junto à janela, o meu corpo adormecido ao teu lado. Não penses que eu não oiço a tua respiração curta, meio a medo. Eu sei que neste momento muitas palavras morrem na tua boca, asfixiadas pela minha incapacidade de levantar os braços para ti depois daquele instante. Eu sei que as coisas entre nós são sempre imcompletas: não que tu o digas, afinal tu nunca te queixas, mas o teu corpo, os teus olhos e mais que tudo o teu beijo contam-me da tua insatisfação.
Enquanto o meu corpo dorme ao teu lado eu vejo os contornos da vida que existe para lá da janela. É um espaço em que não é noite nem dia. Daqui vêem-se apenas as essências das coisas. E há pessoas tão felizes a viver para lá da janela do nosso quarto. Mas eu não te sei fazer feliz porque estou parado à janela quando devia estar a dormir ao teu lado e não apenas o meu corpo.
De manhã quando eu me levantar com o meu corpo tu ainda vais estar a dormir e a única coisa que peço é que te lembres de mim quando eu já estiver algures na Estrela. Aqui eu já sou um com o meu corpo, aqui no meio da vida apressada das pessoas que não conheço, das pessoas que não me pedem palavras. Entre esta gente que leva uma vida vulgar e tão desinteressante eu sinto-me vivo outra vez, como naquele instante, e então o jardim da Estrela já faz algum sentido e perder-me entre os papéis do escritório é sempre uma aventura. Porque eu gosto da minha vida como ela é, eu gosto da simplicidade banal dos dias em que ela corre. A mim basta-me saber o conforto do nosso apartamento na Lapa e da elegância da minha família e pouco mais. Quando o dia em que vais entender que eu não entendo os meandros de Herberto Hélder ou porque raio do gostas tanto das peças do Brecht? E as palavras, sempre as palavras, mais e mais palavras. É como se o teu pedido urgente de palavras me sufocasse constantemente. Porque eu não sei viver das palavras e tu não sabes disso.
Agora tu abres a porta do carro e chegou o fim do meu dia. É tempo para o meu corpo. Enquanto me beijas eu já estou outra vez na janela do nosso quarto, a janela das minhas noites, alheio aos teus jantares e às tuas saídas permitindo que o meu corpo leve a vida por mim eternamente repetida em gestos maquinais que nos vão rasgando por dentro.
Agora tu chegas, o corpo envolvido no meu. Primeiro os beijos, depois a camisa, de súbito as calças. Agora de joelhos, eu dentro da tua boca. O sangue corre mais depressa e eu cada vez mais quente. Observo. "Amo-te". E agora sou eu e tu num momento que eu vá aprendendo a encher de palavras.
6 comentários:
Gostei. Ligeiramente vertiginoso, como quem tem pressa de chegar ao fim. Mas a atmosfera geral está bem dada pelas palavras.
Parabéns,... estudante!
Obrigado. Fico contente que tenha gostado!
[Meu caro «Arquiduque»! Volto apenas por uma observação: reconhecer o carácter precursor de alguém de valor não significa endeusá-lo. Que a prosa do Frederico por vezes escorrega não é razão para que puristas da treta venham a correr zurzi-lo. É uma das abomináveis «tradições» nacionais: já o fizeram com Jorge de Sena, Alexandre O'Neil, Ary dos Santos, só para relembrar alguns... Aquilo que me interessa destacar é a atávica mesquinhez do meio literário (e académico também) português. Não acredito que pessoas sensatas e bem-formadas se entreguem a exercícios de escacha-pessegueiro por se deixarem cegar pela inveja. Isto sim, é muito, muito triste...
Obrigado por te teres «metido» na discussão!
Um abraço!
gosto gosto gosto. muito!!! mais uma vez, querido, a embelezar as minhas tardes... obrigada
Caro Ric,
E logo eu que nunca comento os meus posts a comentar o mesmo por duas vezes! Não podia estar mais de acordo com o que diz.
Abraço
bonito! triste com sabor do real. gostei muito*
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