Eventualmente descobrimos que os fins de semana também são bons para dormir, que devemos pedir e guardar recibos e que nem sempre, quando chove o dilúvio em Lisboa, podemos apanhar um táxi pela impossibilidade de o pagar.
Temos que acordar ao sábado, olhar para a pilha de louça na cozinha, pôr alguma coisa a tocar e arregaçar as mangas. As caixas no pátio que estão há mês e meio para serem deitadas fora e que de tanta chuva muito provavelmente qualquer dia dissolvem-se continuam lá, imóveis pela preguiça de quem as devia levar- eu. Depois é arrumar o quarto com tudo o que isso tem- varrer, aspirar, limpar o pó, guardar a roupa, nunca necessariamente por esta ou pela mesma ordem. Abrir o frigorífico, imaginar o que se pode fazer com o que lá há. A ditadura dos congelados farta-nos só para nos rendermos à ditadura dos fritos. Um dia vou sentar-me a ver daqueles blogues com conselhos bons e práticos e rápidos e coloridos e sofisticados para pratos saudáveis, mas não é hoje. Não. Hoje é uma caneca quente de cappucino para começar com o dia e depois ovos mexidos com linguiça e tomate. Sim, ovos mexidos. Porque quero, porque me apetece, porque são meus!
Poder escolher o que fazer e ter tempo, espaço, cabeça e acima de tudo dinheiro para o fazer. Hoje a feira de velharias no jardim da Estela. Amigos, conversas, cacaus quentes. À tarde uma exposição de arte. Agora sem culpas, sem contar à míngua os cêntimos e irremediavelmente ter que fazer o telefonema: "Oh mãe, eu queria mesmo ir, mas não tenho dinheiro". Depois ter que suportar a vergonha dos gritos de que sou um bebé que nunca cresce por saber que depois disso o dinheiro vinha. Não é uma vergonha antecipada, mas atrasada de ter conseguido viver assim, cada vez com menos peso "Ela acaba sempre por dar". O dinheiro sim. Mas não o que ele significa, não o esforço que representa. Não o poder dizer "É meu!" não pelo orgulho de ter, mas pelo orgulho do que foi feito para ter. "Ganharás o pão com o suor do teu rosto!". E é um pão que sabe melhor, Mesmo se molhado em gotas de suor porque é meu e não o pedi a ninguém.
Sou algo entre o proletário e o pequeno burguês que neste país onde escolho ficar se chama classe média, Reclamo das condições do trabalho, para depois admitir que são boas comparadas com o resto que há pr'aí, para trabalhar dias seguidos cronometrados pelo relógio do canto esquerdo do computador à espera que me diga que passaram nove horas e posso voltar para casa. Eventualmente vai acabar por dizer-me que é sexta-feira, mesmo a qualquer outro dia da semana, e que posso ir para casa dois dias descansar.
Para dormir até tarde, para arrumar a casa, para ouvir música durante esse tempo, para me render aos fritos ou aos congelados. Para ler, escrever, sair, passear- fazer o que eu quiser apenas porque me apetece. E poder sonhar, sonhar sempre. Mas agora sonhar com o que pode vir e não com o que já foi. Sonhar em construir e não só em preservar. E acho que a isso, neste país em que escolho ficar e em todos os outros do Ocidente se chama viver.
Esta casa de dois quartos, com um pátio atrás e com uma sala mais pequena que o quarto da mãe no Funchal, é onde os sonhos vêm morrer e as ilusões acabam. Esta casa de dois quartos onde estão as minhas coisas e esta sala que eu arranjei (quase) como quis são minhas e são onde sonho sonhos novos e onde penso como deixá-los permanecer sonhos, mas encontrar para eles um espaço real nisto que eu agora construí para mim e que parece chamar-se Vida.