Chegou, abeirou-se da estante da sala, escolheu um livro e seguiu para o quarto. Lembrou-se que a incoerência faz de nós seres fantásticos. Levantou o casaco caído no chão e, junto com o seu, pendurou-os em dois cabides junto à porta. Entrou no escritório, abeirou-se da estante, escolheu um livro. Sentou-se na cadeira de palhinha da Tia Bé.
O sorriso. Depois lembrarem-se de tantas coisas passadas juntos. Felizes, como se tivesse sido sempre assim. Esticou os pés em pontos de maneira a afundá-los completamente debaixo das cobertas. Tudo era diferente e estava tudo bem. Como é que podia ser? Ele que tinha ouvido horas e horas de lamúrias. "Um palerma, um frouxo, um incapaz." Estava bem capacitado o incapaz- boa conversa, grandes sorrisos. O sorriso. E como eles sorriam...
Fechou o livro. Levantou-se, correu as cortinas, baixou os estores, passou à sala, ajeitou as almofadas do sofá, tirou os discos que estavam na aparelhagem e no leitor de DVD's, esticou as pontas do tapete, ajeitou as revistas na mesa de centro. Ia passar à casa de jantar. Ele era sempre tão confiante. Entre os dois não havia dúvidas. Os amigos notavam, as irmãs dele notavam. Um dia até a mãe lho tinha dito. Ele era a parte cheia de segurança deles os dois. Já ele, mais sumido em quase tudo, pouco se dava pela confiança que tinha em si mesmo.
Irritavam-no os sapatos ridículos de berloque e que alguém com menos de trinta anos pudesse jantar com abotoaduras de punho. A camisa engomadíssima, o fato de corte italiano. O exagero, o barroquismo. Um lenço de pescoço- de facto só um palerma se lembra de usar com vinte e oito anos o mesmo acessório que o seu avô. Mas era mais que isso. A mão dada ao namorado. "Nunca me deu sequer a mão em público. Uma vez fui jogado escadas abaixo n'"A Brasileira" só para não nos verem juntos." Ali todos os viam juntos. Ele até queria que os vissem juntos.
As gaiolas. Na marquise azul da cozinha. Chá. Um bocado de leite. Duas colheres de açúcar. Três. Era normal, afinal. Eles nunca se tinham visto. Ele mesmo não o havia há eternidades. E depois de tudo o que ele tinha dito dele. Mas ainda assim. Era de mais. Um exagero. Um amuo por encontrar o ex-namorado feliz e contente com o namorado de agora. E ele estava tão bem. Tinha gostado tanto de o ver. Geoffroy também parecia ser bem simpático. Estava a adorar Lisboa.
Entrou no quarto. Vestiu o pijama. Deitou-se esticando os pés para os afundar debaixo dos cobertores.
- É perfeitamente normal. Não sei porque é que ficaste assim.
- Não gostei. Também posso não gostar.
- Sabes que não sou eu deitado na cama dele hoje à noite, não sabes?
(não podia deixar de sorrir)
- Sim, sei. Agora que dizes isso. Sim sei, sei mesmo. Não estás pois, não? (enquanto fazia um ar agradado de espanto). Chega-te aqui. (o braço por cima do ombro.
- Vais ler-me uma estória de embalar?
- Queres?
- Porque não?