I
Quero olhar sem nunca pestanejar até que me sequem os olhos.
(Há que começar com uma frase forte, que marque o leitor e o arrepie. O afastamento da estética pela estética produz o pensamento do leitor).
A intensidade do quadro, nas suas manchas de vermelho sangue vivo, contrastavam fortemente com o ar plácido do rapaz hermafrodito. Como se a inocência fosse arrancada num traje militar.
(Ainda o choque. Tentar ouvir o sofrimento do leitor. Jogar-lhe com manchas de tinta para cima e vê-lo sacudir-se como se salpicado de sangue).
A lança decorativa resta-lhe na mão. Na cabeça a coruja ilumina a sua sabedoria. Estranho jogo o da guerra e o do saber. Onde há um não devia haver o outro.
(Agora apela-se ao sentimento de justiça. Que o leitor sinta, e mais que isso saiba, que o que lê é boa literatura do seu tempo: cheia de ideias e valores, pronta a corrigir e carregar nos erros do passado).
II
Teria sido, certamente, capaz de restar ali por horas até que me secassem os olhos. Não, tanto não! estou ali para ver, ver sempre. Não para deixar de ver.
Queria saber se as manchas de tecido encarnado sobre a armadura dourada têm especial significado. A verdade é que não sei nada de arte. Estou aqui porque gosto de estar aqui. A estética leiga do olhar distante deste rapaz efeminado bastou para que me sentasse a vê-lo. Há outras coisas, mas são para a hora dos segredos. Em geral, a minha opinião é completamente leiga: gosto porque gosto, é há bastante que me chegue nesse gostar.
Sentado, de pé, de lado e por vezes mesmo com coragem para ser de frente olho o quadro. Depois do tempo desço as escadas depressa. Corro os placares um a um com uma calma rápida e mais que isso sedenta. Lá está! Por €3 trago-o para casa. Agora é só meu, como é de todos os outros que o pagam, compram e visitam. Olho-o com um enamoramento recém descoberto. Começo um namoro secreto com o quadro.