sábado, dezembro 29, 2007

Escrever

Escrever sobre nós e sobre aquilo que sentimos não guarda nada em si de extraordinário. Qualquer um é capaz de escrever sobre o que tem aflorado na pele.

Escrever sobre o resto, tudo aquilo que existe além de nós, é bem mais difícil. Criar outros Eus (qualquer personagem criada por nós é sempre um alter ego) implica ao mesmo tempo uma catábase e uma anábase em nós mesmos, porque a escrita, como qualquer forma de produção artística, é o melhor exemplo do acto fenomenológico. Nada do que existe para nós pode ser exterior a nós mesmos, o que não impede que muitas dessas coisas nos sejam estranhas. A viagem à percepção dessas coisas que temos interiorizadas mas em campo inexplorado representa em simultâneo a dor profunda de arrancar algo de nós e a alegria maior de nos conhecermos mais profundamente.

Qualquer personagem nasce das dores do seu criador, porquanto qualquer personagem é uma parte desse mesmo criador a que foi dada forma e nome concreto. A partir do momento que algo tem nome é real e existe! A Palavra define tudo.

Quem escreve, escreve assim para ser Deus não de si mesmo, mas em si mesmo.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Duas janelas ou Espaço de se ver o mar

Ambas chegam até onde o mar começa
E na maioria das vezes vão até onde o mar acaba.

Por onde- as palavras

Para Rosa de Medeiros Carreiro em certa noite

Pensei em dizê-las,
Um sorriso, em sussurro,
Correndo em riacho, torrentes,
por onde- as palavras...

domingo, dezembro 16, 2007

Talvez ou Viagem Breve em torno das ideias

Servília em viagem. O corpo na liteira, largado como as peles de leopardo largadas sobre o corpo frio. Busca do calor. Lá fora o mundo. Por uma nesga, uma cortina. Diáfano.

Gustavo e o excesso. A busca de algo entranhado. O páteo certo. Talvez o mar do Meco e as medidas exactas de um páteo branco. Como que algas nos seus pés. É uma dança em torno de si mesmo. Haverá tempos? Quantos aoristos? Onde se encontra Gustavo na verdade? A casa, a árvore, o mar. Por aí andará Gustavo.

Lucília quase por nascer. Demóstenes segurando-lhe a mão. Amedrontad(). Mais eu do que ela. Não há paisagens que lhe descreva. Talvez as mãos, o cabelo, por certo o corpo quebrado em contorno na cintura. Lucília, como um prazer desenrolado na língua. Para quando?

Depois Tristão Vaz da Cunha e Gabriel Tavares, ainda longe, mais que muito incertos, aquém das ideias, mas já além de mim mesmo. Como que existem sem mesmo eu conseguir que existam. Quem dirá deles alguma coisa? Quem poderá fazê-lo?

Começo pelo corpo. É sempre preciso dar-lhes um corpo. Mais tarde talvez a vida.

Poesia d'Inverno

Tempo d'Inverno,

Sem palavras, sem sol, até mesmo sem sombras.

É como tactear às cegas num quarto de luz.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

O Início de outra história ou Tempo vigilante das saudades

Para a Sofia Palma Baracho, que me fez lembrar os cheiros. Para as minhas avós e todas as tardes em que tudo começou assim.

- Não mexa nisso Margarida! Já sabe que não gosto que mexa nisso. Era da minha mãe.
(Tem o ar calmo. Lá fora pela janela o dia é mais ou menos idêntico. As mãos são já máquinas automáticas de fazer tempo cada vez que segura as agulhas.)

-Tu tens mãe, avó!?
(O ar breve e marcado do espanto natural.)

-Claro que sim Margarida. A mãe da avó é a avó Luísa.

Fala por sorrisos. Margarida encontra um lugar rápido nas pernas cansadas da avó. As mãos mansas que a acolhem já largaram as agulhas. Que se diria de Penélope nesta cena?