Tenho por hábito passear entre a Baixa e o Chiado tanto como tenho o hábito de não escrever sobre mim e aquilo que faço, ou pelo menos não directamente. O primeiro prende-se com o meu lado de alpinista social, o segundo com o meu ar pseudo-intelectual de quem procura estar ausente à escrita que produz. Um dos sítios que encontrei para melhor conjugar estas duas facetas da pessoa que sou eu é um simpático cadeirão preto colocado de costas para a janela da segunda sala da Bertrand Chiado. É um dos espaços mais agradáveis de leitura que Lisboa oferece e já cheguei a passar tempos bem largos ai sentado, normalmente ao cair da tarde, perdido e absorto em livros, ausente de qualquer outra realidade.
A última vez que lá estive tinha de facto um propósito: ia em busca de um presente para umas primas pequenas. Presente esse que os deuses haviam guardado para mim num canto escondido da última sala- era o único volume em toda a Lisboa. E a par encontrei mais dois livros que levaram a que me sentasse no dito cadeirão: "Fim d'Época" de Lourenço Pereira Coutinho e "Geneticamente Fúteis" de Cláudio Ramos.
Uma vez que apenas li ambos en passant vou guardar as críticas e ater-me a breves comentários que me parecem interessantes. "Fim d'Época" passa-se na Lisboa da primeira década do Século XX tendo como personagem principal o Dr. Miguel Sebastião Telles de Almeida, filho dos Condes de Valverde. As descrições ricas e o tratamento cuidado da época, fundado nos conhecimentos do autor que além de historiador já publicou ensaios sobre a época, fazem da obra um agradável retrato da alta sociedade lisboeta e das suas preocupações políticas, sociais e económicas que por sua vez a torna agradável a quem, como eu, vive em paixão constante pela História Social. "Genéticamente Fúteis" passa-se na Lisboa da primeira década do Século XXI. Conta a história do assassinato e consequente investigação do crime dum afamado colunista social e da trupe que vivia em seu redor. A escrita não é das melhores e, muito num estilo da literatura-light, é pouco profunda atendendo mais às frivolidades da acção que à importância quer da descrição, quer da reflecção. Notemos agora aspectos interessantes: se pusermos as classes que cada livro representa, que pretende ser a mesma com 100 anos de diferença, nós é que encontraremos diferenças abismais. Não só a maneira de estar, mas sobretudo a maneira de ver e entender o mundo, bem como a imagem que certa classe projecta de si mesma mudou radicalmente, talvez como nunca antes tenha mudado num tão curto espaço de tempo. A família e as soirées, a arte de receber e de estar com amigos, as discussões sobre o tenso ambiente político de "Fim d'Época" são substituídas em "Geneticamente Fúteis" pelas festas e vernisages, a arte de enganar e fazer amigos proveitosos e as discussões sobre o cabeleireiro ou o último desfile daquele costureiro famosíssimo.
Dizer que prefiro um ao outro está longe do ambito desta crónica. Tenho as minhas escolhas pessoais e reservo a outros o direito de terem as suas. Note-se apenas a mudança de uma elite culta e preocupada, ainda que um pouco desfazada da realidade, para uma pseudo-elite sem ethos ou mesmo savoir-faire que o seu autor retrata como sendo de facto geneticamente fútil.
Se puderem e quiserem vão a uma livraria peguem nos dois livros, escolham um canto e tirem as vossas próprias conclusões. Só peço que me deixem o meu cadeirão contra a janela.
1 comentário:
Agora quando for à Bertrand do rua Garrett vou olhar para essa cadeira à espera de te encontrar. Enfim...
O teu comentário é claramente (assumidamente?) falacioso. O Cláudio Ramos não pode escrever sobre o que não conhece. Há em Portugal uma elite culta (à qual não pertenço, por isso não falo em causa própria) muito mais vasta do que aquela que havia no final do século XIX. Deves estar farto de ler Eça, aquilo era tudo verniz. Tinham frisas no S.Carlos para se verem uns aos outros, os vestidos, os penteados etc.
É verdade que a maior parte de nós é irremediavelmente shallow, mas sempre foi. E será isso mau?
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