Era tudo na banalidade dum restaurante pela hora do jantar. Algures em Lisboa, desses sítios onde, com hora marcada, se consegue uma mesa para sentar-se mais de oito. O preço, claro, vem com o corre-corre das pessoas por aqui e por ali roçando-se contra as costas das cadeiras (“Com licença, com licença!”), roçadas todas umas de encontro às outras numa rentabilização implacável do espaço.
Por sítios destes tudo começa em tom mais elevado, sobretudo as conversas. Leves, fluidas, banais e breves e sobretudo fáceis de mudar o rumo. Discorriam sobre tantas coisas poucas, memórias dum passado ainda recente, ainda presente em quem é jovem de mais para contar a memória em décadas.
E pelo meio dos outros ele rejubilava. Uma alegria exagerada, dessas que a culpa leva em lume brando até estar bem cozinhada. Uma euforia em melaço, quase aos gritos. Queria tudo ao mesmo tempo. Quase em pontas (as cadeiras sempre tão próximas) corria a mesa de ponta a ponta e perguntava tudo a todos: por onde estavam, que faziam, com que vagar lhes corria a vida mais que os dias. Dava grandes palmadas nas costas dos homens e beijos alongados pelas bochechas das meninas. Era como um vinho mau que todos devem suportar num jantar de cerimónia.
O outro ali ficava olhando, esperando, rindo por vezes. Como que aprendia. Sentados lado a lado quantas vezes ele lhe espetou os dedos no ombro “Então pá, que tal vai isso?”. Soltava lugares comuns em resposta. Percebia agora que amontoava palavras mais do que verdadeiramente falava. Deixava-as sair em catadupa, quase sem controlo, tantas vezes tão próximas da histeria do outro. Eram quase sempre molhos de palavras lambidas na vontade imensa que por uma vez soassem como antes, como quando conseguia falar e ser escutado.
Este é o momento em que a intimidade regride. E uma dor em todas as maneiras dolorosa atravessa-os aos dois, tão diferente porém em cada um, como os lados opostos e intocáveis de uma mesma coisa. Um soltava promessas de futuros jantares, anseios de encontros. Lançava-se num devaneio de projectos quixotescos como se de cada vez tentasse baixar a culpa por um fracasso que só ele considerava. Porque em verdade tantas promessas não eram mais que a negação do seu falhanço na gestão da sua vida, das suas horas onde os amigos podiam encontrá-lo talvez uma vez de dois em dois meses. O outro evitava-o enquanto se evitava. Aprendia o contrário da intimidade, que é bem mais difícil que o caminho contrário a esse. Recusava-se as respostas, moderava-se nos sorrisos, contava os olhares no medo que fossem já demais. Era uma luta de fera ferida travada consigo mesmo, em si mesmo, como se se negasse um grande prazer que sabia de antemão mais que efémero, algo já no limbo confuso e leve da sua vontade e do real.
Entre os dois não havia agora silêncios, mas vazios. Não havia nada para dizer à boca fechada agora que o seu quotidiano inexistente sufocava moribundo ao peso das horas. Porque entre eles calcavam-se fundas as horas, os dias, os espaços que não partilhavam mais, tudo aquilo que agora já não dividiam. E assim afundavam-se ainda mais nessa dança macabra e triste do desespero de recuperar algo que talvez se tivesse irremediavelmente transformado.
No fim de quase todas as coisas, depois de quase todas as lutas, entraram no carro para que ele o levasse a casa. E pela primeira vez o vazio, que entre eles se sobrepunha ao silêncio, tornara-se esmagador. E mesmo que tivessem tentado quebrá-lo não teriam sido capazes de quebrar algo que escapava desgraçadamente ao seu controlo.
Saiu do carro sem abraços, quase sem palavras. A dor era tão funda, tão cavada entre os dois no abismo do vazio que preferiam não se falar assim como dois amigos que, na iminência duma viagem, preferem não se encontrar no dia da partida para não sofrer mais esse instante. Não sabem que o sofrimento de partir não é senão a materialização do medo de perder que é o maior de todos os medos. Mas é ao mesmo tempo o alento do desejo de voltar. É quando a dor chega a sítios tão fundos que toca os nossos sentimentos que sabemos que é hora de forjar novas palavras e viver ainda novos dos infinitos quotidianos que se podem viver entre duas pessoas.
Por sítios destes tudo começa em tom mais elevado, sobretudo as conversas. Leves, fluidas, banais e breves e sobretudo fáceis de mudar o rumo. Discorriam sobre tantas coisas poucas, memórias dum passado ainda recente, ainda presente em quem é jovem de mais para contar a memória em décadas.
E pelo meio dos outros ele rejubilava. Uma alegria exagerada, dessas que a culpa leva em lume brando até estar bem cozinhada. Uma euforia em melaço, quase aos gritos. Queria tudo ao mesmo tempo. Quase em pontas (as cadeiras sempre tão próximas) corria a mesa de ponta a ponta e perguntava tudo a todos: por onde estavam, que faziam, com que vagar lhes corria a vida mais que os dias. Dava grandes palmadas nas costas dos homens e beijos alongados pelas bochechas das meninas. Era como um vinho mau que todos devem suportar num jantar de cerimónia.
O outro ali ficava olhando, esperando, rindo por vezes. Como que aprendia. Sentados lado a lado quantas vezes ele lhe espetou os dedos no ombro “Então pá, que tal vai isso?”. Soltava lugares comuns em resposta. Percebia agora que amontoava palavras mais do que verdadeiramente falava. Deixava-as sair em catadupa, quase sem controlo, tantas vezes tão próximas da histeria do outro. Eram quase sempre molhos de palavras lambidas na vontade imensa que por uma vez soassem como antes, como quando conseguia falar e ser escutado.
Este é o momento em que a intimidade regride. E uma dor em todas as maneiras dolorosa atravessa-os aos dois, tão diferente porém em cada um, como os lados opostos e intocáveis de uma mesma coisa. Um soltava promessas de futuros jantares, anseios de encontros. Lançava-se num devaneio de projectos quixotescos como se de cada vez tentasse baixar a culpa por um fracasso que só ele considerava. Porque em verdade tantas promessas não eram mais que a negação do seu falhanço na gestão da sua vida, das suas horas onde os amigos podiam encontrá-lo talvez uma vez de dois em dois meses. O outro evitava-o enquanto se evitava. Aprendia o contrário da intimidade, que é bem mais difícil que o caminho contrário a esse. Recusava-se as respostas, moderava-se nos sorrisos, contava os olhares no medo que fossem já demais. Era uma luta de fera ferida travada consigo mesmo, em si mesmo, como se se negasse um grande prazer que sabia de antemão mais que efémero, algo já no limbo confuso e leve da sua vontade e do real.
Entre os dois não havia agora silêncios, mas vazios. Não havia nada para dizer à boca fechada agora que o seu quotidiano inexistente sufocava moribundo ao peso das horas. Porque entre eles calcavam-se fundas as horas, os dias, os espaços que não partilhavam mais, tudo aquilo que agora já não dividiam. E assim afundavam-se ainda mais nessa dança macabra e triste do desespero de recuperar algo que talvez se tivesse irremediavelmente transformado.
No fim de quase todas as coisas, depois de quase todas as lutas, entraram no carro para que ele o levasse a casa. E pela primeira vez o vazio, que entre eles se sobrepunha ao silêncio, tornara-se esmagador. E mesmo que tivessem tentado quebrá-lo não teriam sido capazes de quebrar algo que escapava desgraçadamente ao seu controlo.
Saiu do carro sem abraços, quase sem palavras. A dor era tão funda, tão cavada entre os dois no abismo do vazio que preferiam não se falar assim como dois amigos que, na iminência duma viagem, preferem não se encontrar no dia da partida para não sofrer mais esse instante. Não sabem que o sofrimento de partir não é senão a materialização do medo de perder que é o maior de todos os medos. Mas é ao mesmo tempo o alento do desejo de voltar. É quando a dor chega a sítios tão fundos que toca os nossos sentimentos que sabemos que é hora de forjar novas palavras e viver ainda novos dos infinitos quotidianos que se podem viver entre duas pessoas.
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