Mas o que imprime a sua marca ao Carnaval, o seu espírito enganador, é o dominó de veludo, conferindo aos que o usam o anonimato a que todo o homem aspira no fundo do coração. Tornar-se anónimo, no meio de uma multidão anónima, sem revelar nem sexo, nem origem, nem mesmo a expressão do rosto, porque a máscara desse hábito de frade louco só descobre dois olhos, brilhando como os olhos de uma muçulmana ou de um urso. Nenhum traço identificador; nem mesmo o contorno do corpo se desvenda. seios, coxas, faces, tudo desaparece. E escondido sob o hábito carnavalesco (como um desejo criminoso no coração, uma tentação irresistível, um impulso que aprece predeterminado) jaz o germe de qualquer coisa: de uma liberdade que o homem nem sequer se atreve a sonhar. O mascarado sente-se livre de fazer o que lhe aprouver. Todos os crimes impunes da cidade, todos os casos trágicos de confusão de identidade, são o fruto do Carnaval; e por outro lado muitas aventuras de amor se atam e desatam nesses dias em que nos libertamos do selo da personalidade, da servidão das nossas pessoas. Uma vez dentro da opa de veludo, a mulher perde o marido, o marido perde a mulher, o amante a bem amada. O ar crepita com o sal das contendas e loucuras, com a fúria das batalhas, com a agonia de uma noite de buscas infrutíferas, de desesperos. Nunca se sabe se dançamos com uma mulher ou com um homem. As márés sombrias de Eros, que exigem uma identidade total para inundarem a alma humana, explodem durante o Carnaval com uma força longamente represada e libertam estranhas criaturas primitivas- as perversões que são, suponho eu, o alimento da psique-, seres que se podem crer fugidos do monte Brocken ou das garras de Eblis. Sim, quem pode deixar de amar o Carnaval quando nele todas as dívidas se pagam, todos os crimes se expiam ou cometem, todos os desejos ilícitos se satisfazem, sem culpa ou premeditação, sem as penas que a consciência ou a sociedade humana combinam?
In "Quarteto de Alexandria. Baltasar"
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