Não esperes que responda ao que me pedes. E não me leves a mal que o não faça. Aos oitenta e quatro anos aprendi a dizer não. Este não que descobri tão tarde não é, no entanto, igual a esse outro desses jogos perigosos de tirar e dar e que raramente quer dizer o que quer dizer. Assim, não esperes por mim. Não. Definitivamente.
Encontrei, nos campos de Lutércia, uma paz que nunca esperei e talvez por isso ela me saiba tanto melhor. Sei que os romanos urbanizados da grande Urbe acham estas terras selvagens e ermas. Não selvagens, mas virgens. Há qualquer coisa aqui que pode nascer. Perco alguns dias a pensar no que será e não chego a nenhuma conclusão. Mas sinto nesta terra uma vontade. É algo diferente desse infernal acampamento de Godorico onde conheci a verdadeira selvajaria dos bárbaros. Lutércia tem árvores altas e chãos fecundos e o mar é tão forte que o seu cheiro chega até aqui nas brisas das manhãs de Primavera.
Xenofonte levou-me a ver o mar. Esse grego velho que eu vi nascer e que é mais velho do que eu é o meu bordão de todas as horas. Na sua paciência infinita preparou tudo e num dia de Junho do ano passado meteu a sua senhora num carro e levou-me. Não te digo quantos dias levei porque prefiro acreditar que não sei esse número e que não os contei. Deixa-me que te fale do mar. Tu andaste nos barcos, mas alguma vez viste a fúria do mar? Quem pode, no resguardo do comandante, onde nos enfiam, ver a verdadeira fúria do mar? Pois eu te digo que o mar dos gauleses é solto e livre, como no fundo também eles, e que a vida de cem imperadores não bastaria para domá-lo. E prefiro que seja assim, que haja algo que fugiu à Ordem e à Norma. Não penses que me perdi nos excessos do orientalismo. Confesso-te, contudo, que gosto de ouvir os magos dos gauleses, a quem eles chamam druídas, e que tenho aprendido muito com eles. Falam-me de coisas distantes de nós e os seus deuses não são senão alma e alheios aos caprichos. Não seria melhor acreditar em deuses assim? Não penses também que aderi ao seu culto, no entanto, ou pior que virei cristã. Não. Cultivei um único ódio na vida e esse foi o ódio pelos cristãos. Não desejo nada de bom a esses semitas sujos e ao seu deus crucificado. Os cristãos trariam mais Norma do que Ordem. Se morro feliz com a idade a que cheguei uma das razões é saber que não serão precisos mais que dez imperadores, ou menos ainda, para que os nomes dessa gente nunca mais sejam escritos.
Mas fecha os olhos agora e não ouças mais os delírios desta velha. Não estou cansada da vida, mas estou já um pouco cansada de ir morrendo. Não sei se verei as folhas caírem e nascerem de novo nas grandes árvores de Lutércia e por certo Xenofonte é agora tão velho que, ainda que quisesse, não me poderia mais levar a ver o mar. E não, não voltarei a Roma. Queres que morra como uma grande matrona num leito de seda do grande palácio que construíste na Urbe? Perdoa o orgulho de uma velha que lhe toma a melhor, mas digo-te não. Uma coisa gostava no entanto, de ver-te outra vez e poisar a minha mão sobre o teu rosto. Também estás velho agora? Quantos anos passaram por ti desde que o meu rapaz se tornou um grande general do Império? Não me digas quantos pois prefiro fingir que os não contei.
Anseio apenas que na tua idade ainda não tenhas aprendido a dizer não como eu aprendi e que sejas tu a aceder ao meu pedido. Vem pelo caminho mais seguro, mas vem depressa, meu filho. Não que morra já, mas porque desejo mais que tudo ter-te a meu lado novamente.
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