quinta-feira, março 27, 2008

Carta de Servília a Décimo

Não esperes que responda ao que me pedes. E não me leves a mal que o não faça. Aos oitenta e quatro anos aprendi a dizer não. Este não que descobri tão tarde não é, no entanto, igual a esse outro desses jogos perigosos de tirar e dar e que raramente quer dizer o que quer dizer. Assim, não esperes por mim. Não. Definitivamente.

Encontrei, nos campos de Lutércia, uma paz que nunca esperei e talvez por isso ela me saiba tanto melhor. Sei que os romanos urbanizados da grande Urbe acham estas terras selvagens e ermas. Não selvagens, mas virgens. Há qualquer coisa aqui que pode nascer. Perco alguns dias a pensar no que será e não chego a nenhuma conclusão. Mas sinto nesta terra uma vontade. É algo diferente desse infernal acampamento de Godorico onde conheci a verdadeira selvajaria dos bárbaros. Lutércia tem árvores altas e chãos fecundos e o mar é tão forte que o seu cheiro chega até aqui nas brisas das manhãs de Primavera.

Xenofonte levou-me a ver o mar. Esse grego velho que eu vi nascer e que é mais velho do que eu é o meu bordão de todas as horas. Na sua paciência infinita preparou tudo e num dia de Junho do ano passado meteu a sua senhora num carro e levou-me. Não te digo quantos dias levei porque prefiro acreditar que não sei esse número e que não os contei. Deixa-me que te fale do mar. Tu andaste nos barcos, mas alguma vez viste a fúria do mar? Quem pode, no resguardo do comandante, onde nos enfiam, ver a verdadeira fúria do mar? Pois eu te digo que o mar dos gauleses é solto e livre, como no fundo também eles, e que a vida de cem imperadores não bastaria para domá-lo. E prefiro que seja assim, que haja algo que fugiu à Ordem e à Norma. Não penses que me perdi nos excessos do orientalismo. Confesso-te, contudo, que gosto de ouvir os magos dos gauleses, a quem eles chamam druídas, e que tenho aprendido muito com eles. Falam-me de coisas distantes de nós e os seus deuses não são senão alma e alheios aos caprichos. Não seria melhor acreditar em deuses assim? Não penses também que aderi ao seu culto, no entanto, ou pior que virei cristã. Não. Cultivei um único ódio na vida e esse foi o ódio pelos cristãos. Não desejo nada de bom a esses semitas sujos e ao seu deus crucificado. Os cristãos trariam mais Norma do que Ordem. Se morro feliz com a idade a que cheguei uma das razões é saber que não serão precisos mais que dez imperadores, ou menos ainda, para que os nomes dessa gente nunca mais sejam escritos.

Mas fecha os olhos agora e não ouças mais os delírios desta velha. Não estou cansada da vida, mas estou já um pouco cansada de ir morrendo. Não sei se verei as folhas caírem e nascerem de novo nas grandes árvores de Lutércia e por certo Xenofonte é agora tão velho que, ainda que quisesse, não me poderia mais levar a ver o mar. E não, não voltarei a Roma. Queres que morra como uma grande matrona num leito de seda do grande palácio que construíste na Urbe? Perdoa o orgulho de uma velha que lhe toma a melhor, mas digo-te não. Uma coisa gostava no entanto, de ver-te outra vez e poisar a minha mão sobre o teu rosto. Também estás velho agora? Quantos anos passaram por ti desde que o meu rapaz se tornou um grande general do Império? Não me digas quantos pois prefiro fingir que os não contei.

Anseio apenas que na tua idade ainda não tenhas aprendido a dizer não como eu aprendi e que sejas tu a aceder ao meu pedido. Vem pelo caminho mais seguro, mas vem depressa, meu filho. Não que morra já, mas porque desejo mais que tudo ter-te a meu lado novamente.

terça-feira, março 18, 2008

Beijos por Lisboa ou Aquilo que levamos da Cidade

Para Rosa de Medeiros Carreiro e Sara Guia d'Abreu que comigo vão vivendo e amando Lisboa que namora o Tejo.


Deixa que na mesa as velhas digam a sua conversa

Lenta, cansada e sempre igual.

E os cães passam e ladram sem caravanas

E as pessoas passam pelas mesas dos cafés

Aos olhos atentos do Pessoa

E Lisboa assim é um pouco mais Lisboa no crepúsculo duma tarde.


Numa esquina ou numa escada

Escorrega as tuas mãos sobre a minha cintura

E cola a tua boca na minha num beijo

Que não quero levar mais nada da Cidade.

quarta-feira, março 12, 2008

Canto do Chegar

Diz-me de chegar

E de tardes com braços abertos

E beija-me de beijos

Que digam coisas

Que mesmo as palavras não dizem.

Lamento de Partida

Diz-me de partir

E leva-me em palavras de consolo

Que embalado em palavras dói menos ir

Onde tenho de ir.

Eu que espero por coisas belas

Canto do cisne e coisas belas,

Como tardes de Primavera e Sol.

Anseio pelo Lótus

Verei plantas e flores de lótus, génio do lago?

Diz-me se verei plantas e flores de lótus.

Retrato de rapariga em casa de praia

Os dedos longos. As mãos. As mãos enroladas em si mesmas. Os dedos entre os dedos. Os dedos longos.


O cabelo caído, um ombro. Os olhos como os do gato. O gato lá atrás. O dos olhos. Atrás dos olhos. Atrás. O Gato. O outro ombro, cabelo caído. Voa como um sopro porque

a janela está aberta. A janela vai dar ao mar. Tem lascas nos caixilhos de ser velha. A janela. Um ombro, o outro ombro; cabelo caído. Velha. A janela branca. Não ela. A cara branca. Jovem. Lisa como uma tira de seda ou como cabelo caído sobre um ombro, ou sobre o outro ombro.


Na casa em cheiro de mar. Entra. Na casa. Maresia. Cheiro de mar. Na sala, pela janela. Velha. A janela e a sala. Branca. A janela, a maresia. A maresia é branca como o rosto. O rosto dela. O rosto dela na janela.

Cabelo, tira de seda, mãos e dedos e cara. E vento, pela janela e que traz o cheiro da maresia. Branca. Como a janela e o rosto dela na janela. E os dedos, e as mãos; um ombro, o outro ombro. E

ela, branca na janela branca, velha de caixilhos velhos, não como ela, mas como a janela

Três salas em três mulheres ou Caminho da inspiração

Uma sala com uma mesa com um livro em cima da mesa.

Uma sala com uma cadeira e uma janela aberta a poente (ponto de luz).

Uma sala com grandes cadeiras encarnadas.


[Silêncio]


Uma mulher lê o livro.

Uma mulher levanta-se da cadeira e corre as cortinas (ainda um ponto de luz).

Uma mulher está estirada numa das grandes cadeiras encarnadas.


[Silêncio]


Saem as três.


(Procuro os gestos, as formas, os estares. Há ainda uma mulher em cada sala.


[Silêncio]


Sento-me eu frente à janela com um livro branco na mão esquerda.


[Silêncio]


Primeiro sonho, ou depois crio, ou antes escrevo?)

Matrimonius ou Tradução em três variações

Ubi Gaia, ego Gaio; Ubi Gaio, ego Gaia.

Onde Gaia, eu gaio; Onde Gaio, eu Gaia.

Onde fores Mulher, eu serei Homem; Onde fores Homem, eu serei Mulher.

Onde tu fores, eu serei.

(votos matrimoniais no casamento romano)

domingo, março 02, 2008

Reencontro dum amigo

Para Filipa Seiceira, feliz de a ter reencontrado.

A noite tem mais graça



(e vejo-a pelo canto do olho) quando se encontra alguém guardado há muito tempo.



(abraço-a) "Sabes que te odeio?" com um sorriso palerma. "Sabes que te amo?" E um abraço ainda mais forte.



E a noite tem mais graça.



Conversamos, conversamos, conversamos, conversas...