Lembro Cecília com certa exactidão. O queixo caído, os olhos também, o cotovelo agudamente apoiado à mesa, a mão aberta segurando a cara toda. Parecia esperar algo de indecifrável. Nunca olhava para mim, mas às vezes olhava Ângela pelo canto do olho. Ângela Carneiro de Albuquerque era uma brasileira cinquentona divertida que tinha sempre ar de quem tinha tomado sol a mais. Lembro-me de Cecília dizer :" Não a achas tão divertida, tão solta. É uma água de côco!"
Cecília gostava de água de côco quando passeávamos pelo Leblon perto das três da tarde quando o calor era ligeiramente insuportável. A sua blusa, sempre de cor clara, virava transparente e colava às costas. Ainda que a mim me impressionasse a Cecília parecia não mexer com ela. Era bom assim, era legal! Cecília era mais tranquila nesses anos. Vestia-se como as actrizes de "Dancin´Days" e gostava de drinks e boites. Tínhamos amigos na Barra que visitávamos aos Domingos e às vezes recebíamos na nossa cobertura. Cecília já dizia a palavra arrastada e com todas as vogais fortemente pronunciadas ao gosto brasileiro. Se foi feliz é raro eu saber, mas gostava daquela vida, eu acho.
Lembro Cecília naquela tarde. O avião tardava por demais. Três horas de atraso! E Cecília esperando algo mais que o avião. Nunca soube o que esperava. Ângela ria, contando estórias alegres da nossa última estadia em Búzios. (Ângela tinha uma casa lá que às vezes emprestava para a gente). O mar de Búzios é inesquecível, mas não era por isso que Cecília aguardava tão abstraídamente. Não era, tenho a certeza. Seu corpo colado ao vestido de linho branco, o grande casaco de peles apoiado no carrinho do aeroporto.
Sei lá quanto tempo passou desde que me perdi olhando Cecília até que ela despertou com a voz da aero-moça chamando para o nosso voo. Lembro com certa exactidão: era o dia três de Dezembro de 1982. Nosso voo foi longo mas passou por nós voando. Cecília estava cansada de ter esperado tanto. Como tinha ficado à espera por mais do que o avião estava visivelmente mais cansada que todos nós. O avião aterrou em Lisboa. Fazia pouco menos de sete anos que não estávamos na nossa terra, terra que o pai de Cecília lembrava saudoso chamando "Nossa Pátria". Chegados à nossa pátria lembro Cecília levantando sonolenta da cadeira do avião, eu colocando o casaco em seus ombros magros. Enquanto descíamos a escada nossos corpos foram os primeiros a saber que tínhamos verdadeiramente chegado: estavam 6 graus! Cecília, que não falava desde o Rio, apertou minha mão cravando as unhas ligeiramente na palma e falou quase como quem berra "Acordei António, não queria, mas acordei!"
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