Para Ana Garcia com carinho, paixão, orgulho e fúria.
A sala era escura. A sala era escura e isso irritava-o. Guardava um medo infantil do escuro, com lugar para monstros e papões, e isso deixava-o mal-disposto. Batia furiosamente com a caneta no apoio de madeira onde tinhas os papéis em branco. Era bom que tudo aquilo acabasse depressa.
Letícia, não era excessivamente alta e decididamente não era excessivamente bela. Era mesmo difícil confessar que tivesse alguma beleza além da vulgaridade daqueles que por um acaso não nasceram feios. Tinha um aspecto vulgar, uma estatura vulgar e um nome vulgar. Escolhera uma música vulgar.
Entrou no palco decidida como quem retoma uma velha posição deixada há muitos anos, ou na verdade uma antecipação disso: reclamava um velho lugar que era seu há muitos anos, mas que por algum acaso nunca tomara. Letícia começou a dançar quando se ouviu a música. Envolvia o corpo em gestos compassados e rítmicos num estudo acertado de expressão e técnica. Gabriel restava para ali, meio alheio a tudo, olhando uma rapariga vulgar, com um corpo vulgar, dançando uma música vulgar. Quando terá ele reparado que ela não dançava de maneira vulgar?
O corpo de Letícia subia de ritmo, como um termómetro em que o mercúrio ameaça explodir. Vinha-lhe de dentro para fora, como se de repente mãos e pés e pernas e braços e ancas e coxas fossem as formas naturais de revelar palavras ocultas, palavras de dizer senão com o corpo. Gabriel deu por si dentro daquele emaranhado de coisas em que o corpo de Letícia se transformava numa rapidez extra-temporal. Letícia era em si uma revelação de algo.
E tomou a caneta e começou a escrever com fúria sobre o papel branco. Acertava cada compasso pelo corpo dela e cada palavra correspondia assim a um gesto.
Laura era branca, como um nevão irremediável que submerge tudo. (risco) afoga tudo. Laura passeando entre as gentes como se fosse (risco) fora invisível.
Letícia agitava-se no palco ao som duma música que já não existia. Como poderia haver música, onde não havia qualquer som? Letícia já nem era a própria Letícia. Era algo exterior a si mesma. Era um corpo que se estende e contrái em gestos que eram como imensos significantes vazios de significados. E esse vazio transbordava da caneta para a folha de papel com a vontade furiosa de escrever, sem que também isso se concebesse em significado algum. Letícia agitava-se em literatura. Era como se urgisse comê-la de um trago e tirar-lhe tudo o que ela oferecia dar.
Laura e Tristão sobre o barco. Laura preparando as amarguras de outras vidas. Laura alheia a si mesma, como se fora duas Lauras.
E a sala já não era escura agora, e ele não queria que isto acabasse. Oh, que não acabasse nunca! Como se Letícia, sem ser já Letícia, fosse a fonte última de inspiração. Como se o corpo de Letícia fosse despersonalizado de toda a personalidade para poder construir esse outro corpo e essa outra pessoa, tão irreais como tudo aquilo, que era essa atormentante Laura, ansiosa e ociosa por nascer. Paria em frases soltas, sem tempo nem espaço, num espaço onde ele era alheio a tudo.
Ouviu num assombro que não se ouvia mais música. Letícia estava parada no palco, de novo Letícia, olhando-o de frente. Ainda assim, não mais poderia ser essa outra Letícia, ainda tão vulgar, ainda tão comum. Laura ali estava, escrita em frases dispersas, tão real em carne e osso como esse corpo dançante a que chamava Letícia.
Olhou o papel nas mãos e a rapariga no palco. Suspirou como quem se entrega à fraqueza.
- Mais uma vez, só mais uma vez, pediu.
Letícia agitou-se no palco. Instantes depois já ele não ouvia a música que tocava.
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